Quão simples é fabricar uma notícia falsa? Evidentemente, há mais facilidade para quem sabe como funcionam as regras do jogo – a escolha de um título provocador, a imagem chamativa, os aspectos que devem ser realçados no texto… E o propósito. É uma notícia satírica como as do Diário Pernambucano, G17, O Bairrista? Trata-se de um humor crítico, feito i-Piauí Herald e Sensacionalista? Ou é uma notícia falsa com a única intenção de caluniar alguém? O boato como tática de difamação não é algo novo, especialmente dentro do campo político.
Ocorre que aí podemos passar da criação de notícias inexistentes pelo simples prazer lúdico à desinformação, acarretando consequências sérias.Para Umberto Eco, a proliferação de boatos se justifica por um excesso de confiança depositado nas redes – “a internet pode ter tomado o lugar do mau jornalismo”, sugere o escritor italiano. Não existiria uma separação, por parte do leitor, entre fontes “credenciadas” e uma página qualquer da web. O chute de Eco deve ser lido com cautela, pelo menos se considerarmos o público-leitor do Brasil.
A pesquisa sobre os hábitos e consumo de mídia pela população brasileira divulgada esse ano, e comentada anteriormente pela doutoranda Lívia Vieira no objETHOS, conclui que a audiência pouco confia em notícias de sites, redes sociais e blogs.Por outro lado, o semiólogo acerta quanto atenta para o emaranhado de desinformações que povoam a internet. Seu romance mais recente, Número Zero, satiriza justamente isso, embora volte alguns anos para demonstrar que as notícias falsas não são exclusividade do meio digital. Ambientado no início dos anos 1990, na Itália, o romance de Eco conta a história de um projeto de jornal criado para vender factoides. Esmiúça, com o humor típico de seu autor, as relações que povoam redações mundo afora – em certo ponto, o editor do periódico fictício de Número Zero ensina que “hoje, para contra-atacar uma acusação, não é necessário provar o contrário, basta deslegitimar o acusador”.
Curiosamente, o nome de Umberto Eco foi associado ao grupo Luther Blissett, que criava notícias falsas também na década de 1990, na Itália. A ligação, posteriormente desmentida, aconteceu por conta de um romance escrito por quatro membros do coletivo. Chamado Q, o Caçador de Hereges, a trama passeava por temas típicos de Eco, como perseguições religiosas e espionagem. Embora não tivessem nenhuma aproximação com o semiólogo, o grupo Luther Blissett, formado por estudantes, hackers e artistas consagrou-se como uma espécie de prólogo dos usos e táticas de desinformação.
Em um período cujos aparatos mais avançados incluíam fax, walk talks e formas embrionárias da internet, como os Bulletin Board Systems, os Blissett criaram histórias mirabolantes, ao gosto do sensacionalismo local, e emplacavam suas mentiras em jornais como Corriere della Serra, La Repubblica e Corriere di Viterbo. As notícias falsas estão documentadas no site do grupo e incluem temas polêmicos que vão do satanismo à pedofilia e HIV. O intuito das ações, segundo o coletivo, era demonstrar a fragilidade da apuração desses veículos, além de certa predileção dos jornais por temas que abrissem margem à propagação de ódio contra minorias, por meio de discursos racistas e homofóbicos.Em 1999, o grupo acabou e deu origem a um novo coletivo, chamado Wu Ming, focado na publicação de romances coletivos – como o já citado Q. A pergunta que fica é: teriam as ações de Blissett maior sucesso nos dias atuais? Se, por um lado, o jornalismo carrega mais possibilidades de checagem com a internet, por outro, a imersão em uma cultura que preconiza a velocidade como um valor em si acarreta o surgimento de novos erros.
Do hoax ao bot
Não à toa, pesquisas como a de Tanushree Mitra, do Instituto de Tecnologia da Geórgia, indicam que quase um quarto do que é publicado no Twitter é falso. Nada de novo no front: apesar da associação quase imediata entre internet e liberdade, parte da web também atua como uma indústria que dissemina boatos, paga por likes e visualizações, e testemunha o nascimento de um exército de perfis fakes com motivações eleitorais. O ambiente digital, afinal de contas, reflete a sociedade: é, também, uma arena política, permeada por disputas narrativas de forças organizadas (MORETZSOHN, 2014).
O período analisado na pesquisa de Mitra foi de outubro de 2014 a fevereiro de 2015 – os dados estão compilados em um banco, disponível para acesso público. Na época, o hoax (termo que se utiliza para boatos que nascem na internet) de maior sucesso se referia a um apocalipse zumbi causado pelo vírus Ebola. Rapidamente, a imagem editada de um morto-vivo, retirado do filme Guerra Mundial Z, se espalhou pelas redes sociais como se representasse uma vítima do vírus.
Nesse sentido, chama atenção a facilidade com que os boatos podem se propagar. Há, inclusive, sites que se voltam exclusivamente para quem deseja criar notícias falsas, com características que potencializam o valor de verdade no rumor. Notícia Falsa, por exemplo, gera um post de Facebook, com a possibilidade de escolher o ícone que acompanhará o texto – pode ser um vídeo, uma imagem própria ou, ainda, o logotipo do Portal R7 e do Esporte Interativo. Alia-se, portanto, a credibilidade do jornalismo ao discurso falso. Notícias Fake segue molde semelhante, gerando posts de Facebook hospedados no endereço fictício recordnews.co. Ainda, a escolha dos ícones que acompanham a notícia é mais diversa do que no site anterior: pode-se optar entre uma imagem de Dilma Rousseff, por exemplo, um carro acidentado, pessoa algemada ou, ainda, um extraterrestre.
O recorte ideológico do site, e de quem o utiliza, parece explícito quando se coloca a presidenta como uma das possíveis ilustrações de um boato – especialmente porque a sua feição, na imagem, não denota nenhum sentido de vitória, mas de constrangimento. Voltamos à compreensão da internet como um campo de forças em disputa: se, por um lado, pode ser divertido zombar de notícias absurdas, como fait divers por excelência, há também consequências que podem causar prejuízos reais.
Uma tentativa de medir o efeito de rumores recentes é encontrada na pesquisa coordenada pelo professor Pablo Ortellado, da USP, às vésperas dos protestos de abril, no país, que pediam pelo impeachment da presidenta. Dos manifestantes que foram às ruas na Avenida Paulista, a maioria ou concordava, ou respondia “não sei”, em relação a frases como “Lulinha é sócio da Friboi”, “PT quer implantar um regime comunista no Brasil”, “PCC é um braço armado do PT”. Um mês antes, próximo às manifestações de março contra Dilma, áudios sobre uma intervenção federal das Forças Armadas no país circularam via Whatsapp. As correntes que se disseminam pelo aplicativo são invisíveis, passando por grupos fechados, diferentemente das redes sociais que estimulam o compartilhamento público. Não significa, no entanto, que o alcance é menor – ao sugerir uma comunicação em grupos, a proliferação de boatos via Whatsapp pode adquirir mais força quando converge com as bolhas ideológicas que encontra.
Outro uso político da internet acontece na criação de perfis fakes em redes – os populares robôs ou bots. A eleição de 2014, por exemplo, denota bem o caso. No Twitter, o uso de contas falsas serve para aumentar a quantidade de retweets em mensagens, além de crescer a hashtag de apoio ao candidato e fazê-lo chegar aos Trending Topics (os assuntos mais citados na rede social). Já no caso do Facebook, a interação através de comentários que caracteriza a rede é utilizada pelos robôs como espaço para mensagens positivas ou negativas em relação a determinados candidatos. Membros das três principais campanhas políticas de 2014 foram entrevistados anonimamente em reportagem da Agência Pública assinada por Natália Viana. Admitem o uso de perfis falsos para angariar popularidade ou, ainda, “compram” perfis reais, com número expressivo de seguidores, e realizam postagens pagas favoráveis ao seu candidato.
Um espaço para a contradição
Paralelamente ao mar de desinformações que povoa a internet, surgem também iniciativas que monitoram boatos e desmentem os hoax. Sites como E-farsas e Boatos.org compilam teorias conspiratórias e apontam para notícias antigas que voltam a circular como se fossem atuais. Até mesmo o Senado Federal – também um alvo de rumores, como a suposta aprovação da “bolsa prostituição” – alertou para o risco e preparou um guia para identificar mentiras.
O estímulo à leitura crítica do conteúdo na internet certamente é válido. Mas, afinal, por que rumores tão absurdos conseguem se passar por verdades? De forma bem humorada, o jornalista Leonardo Sakamoto cria um guia para a fabricação de notícias falsas e inclui nos seus itens a estética do título, foto de acompanhamento, nível ortográfico e ambiguidade, de forma a deixar uma dúvida no leitor. No entanto, em meio ao texto, algumas de suas observações são discutíveis. Escreve Sakamoto:
O leitor médio brasileiro não diferencia uma fonte confiável de uma que não é. Nem mesmo sente falta delas em um texto de denúncia. Para ele, a validação do texto está, em boa parte das vezes, no próprio texto. Se a “notícia” lhe parecer factível e for ao encontro de sua visão de mundo (muita gente não admite consumir informações que contestem sua visão de mundo), ele absorve aquilo, forma a opinião e passa o conteúdo adiante.
De fato, o repertório cultural do leitor influencia diretamente na sua leitura da notícia. Mas essa explicação seria suficiente para entendermos o movimento de mensagens falsas via Whatsapp, por exemplo, que passam adiante teorias da conspiração com tanta facilidade – e que rescaldam nos resultados de quem vai às ruas protestar contra mentiras? Há uma disputa ideológica em jogo, mas que parece limitar gravemente a situação, a ponto de “cegar” o leitor que não consome informações contrárias à sua visão de mundo, conforme escreve Sakamoto. Ora, abrir mão do contraditório, por si só, é a morte do jornalismo – afinal, sua base é a dúvida e a incerteza, não no sentido de obscurecer os fatos, mas de apontar os diferentes caminhos que não necessariamente atendem as expectativas e visões de mundo do seu leitor.
Em que bases se assentam os rumores? O jornalismo não estaria na hora de fazer o seu mea culpa? Para Moretzsohn (2014, p. 168), o erro está na ênfase de que informações provêm cada vez mais de pessoas próximas, e não de instituições jornalísticas: “não seria o caso de indagar de onde ‘família, amigos, colegas’ retiram as informações em que ‘as pessoas’ confiam?”. Os rumores não necessitariam de um mínimo de verossimilhança para que se acredite neles? Por exemplo, a afirmação de alguns manifestantes pró-impeachment de que imigrantes haitianos vieram ao Brasil para votar em Dilma é, certamente, absurda. Mas quantas vezes a cobertura jornalística tratou a imigração com um enquadramento positivo? Quantas vezes o estrangeiro não foi representado como um “outro” perigoso, que traria problemas ao país?
Em alguma medida, essa situação está atrelada à perda de credibilidade. Num contexto de total desconfiança, o desafio que resta é, afinal, para quem o jornalismo ainda se julga relevante (KARAM, 2014). Talvez jornalistas devam olhar mais para o seu umbigo e refletir que sim, seu trabalho ainda é necessário– mas as consequências dos seus erros, quando acontecem, podem ser desastrosas.
Referências
KARAM, Francisco José Castilhos. Jornalismo, ética e liberdade. 4ª ed. São Paulo: Summus, 2014.
MORETZSOHN, Sylvia. As sombras de junho. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 163-175, maio 2014.
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Dairan Paul é mestrando no POSJOR/UFSC e pesquisador do objETHOS