Costumo reafirmar que sou fã do cinema brasileiro. Do cinema autoral brasileiro. Ainda que pese o estereótipo da pornochanchada e a falta da qualidade técnica que marcou a produção dos anos 70 e 80, o Brasil sempre produziu filmes criativos, com ousadia estética e ética e apuro artístico e narrativo. Trata-se de um cinema diverso, com muitas escolas, que produz desde as comédias cariocas do padrão Globo Filmes, até documentários antológicos como Nós que aqui estamos por vós esperamos (Marcelo Masagão, 1999) e o clássico curta-metragem Ilha das flores (Jorge Furtado, 1989).
Teria dificuldade de fazer uma lista dos bons filmes brasileiros a que já assisti, que são muitos. Muitos mesmo, nos diferentes gêneros! Alguns deles praticamente sem repercussão midiática, como é o caso dos perturbadores A festa de Margarete (Renato Falcão, 2002) e A concepção (José Eduardo Belmonte, 2006); outros de projeção retumbante, como O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), Os sete gatinhos (Neville de Almeida, 1980), Central do Brasil (Walter Salles, 1998), Cidade de Deus (Fernando Meireles, 2002) e O palhaço (Selton Mello, 2011). Isto para citarmos apenas alguns.
Apesar da enorme qualidade e diversidade do cinema brasileiro, nossa perspectiva colonizada (que Nelson Rodrigues tão bem resumiu como “espírito de vira-lata”) insiste em jogar na invisibilidade a cinematografia nacional e, quando a torna visível, aposta suas fichas em propostas narrativas pouco ousadas e que buscam reproduzir o que há de pior na estética das comédias hollywoodianas. Apesar disto, e muitas vezes com o apoio de fundos públicos e de grandes estatais, cineastas brasileiros insistem na lapidação de uma linguagem própria e apresentam verdadeiras obras de arte que obtêm reconhecimento de crítica e de público (este, fora das salas de cinema, já que o cartel existente nas redes de cinemas em operação impede o acesso do público à exibição destes filmes na telona). E é nossa perspectiva colonizada que faz com que desejemos tão intensamente um Oscar de melhor filme estrangeiro. Desde 1963, com a indicação de O pagador de promessas à estatueta dourada, os brasileiros sonhamos com este prêmio. Trata-se quase de uma chancela a atestar a qualidade e importância do nosso cinema aos olhos do mundo. Algo como vencer o campeonato mundial de futebol masculino. Um sonho realimentado a partir de 1996, com a indicação de O quatrilho (Fábio Barreto, 1995), ainda que diversos filmes nacionais tenham obtido premiações talvez mais importantes sob o aspecto da qualidade artística, como é o caso das premiações no Festival de Cannes, dentre tantos outros, como Berlim, Sundance etc.
Papéis sociais costuram a trama do filme
Agora, por exemplo, mais uma vez vivemos o anticlímax de uma final de Copa do Mundo com o filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, indicado para representar o Brasil na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Anna Muylaert estreou como diretora de longa-metragem em 2002, com Durval Discos, uma comédia dramática que reuniu personagens neuróticos em torno de um sequestro, tendo como pano de fundo o sentimento de perda diante do avanço do tempo e das mudanças que este carrega consigo. Em 2006, com O ano em que meus pais saíram de férias, filme ambientado na ditadura militar brasileira, o trabalho de Muylaert já havia sido escolhido para representar o Brasil na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, porém não chegou a ser indicado para os finalistas.
Tenho minhas dúvidas sobre o potencial de Que horas ela volta? na disputa de um Oscar. Sob o aspecto da narrativa e da técnica cinematográfica, trata-se de um filme linear, objetivo, que não apresenta grandes recursos, tampouco propõe um diálogo ficcional mais intenso. Por outro lado, para o atual contexto social e político brasileiro, é um filme com grande significado, e sua projeção internacional pode aumentar o interesse do público e contribuir para que seja exibido em mais salas (como vem acontecendo), permitindo a ampliação do debate social que propõe. Porque a principal virtude de Que horas ela volta? não é estético-narrativa, mas político-social.
O filme de Muylaert coloca em cena a discussão de classe social no momento em que tantos afirmam a dissolução deste conceito, ao mesmo tempo em que apresenta a hipocrisia existente no discurso da democracia social tão propagado no Brasil ao contar a história da empregada doméstica Val (Regina Casé), que emigra do interior para se submeter a uma vida servil no seio de uma família de classe média urbana. O que move Val à servidão e ao abandono de si é a necessidade de sustentar uma filha e assegurar seu futuro. Por outro lado, Val assume enquanto sua a condição em que vive, e é incapaz de perceber a opressão a que está submetida. Mesmo morando em um minúsculo quarto de porão em uma casa de imensos espaços ociosos, a empregada não questiona o lugar em que é colocada, tampouco percebe como são injustos os papéis sociais que costuram a trama do filme (e da realidade brasileira). É a chegada da filha Jéssica (Camila Márdila), há muito distante e, até certo ponto, desconhecida pela própria mãe, que promove a possibilidade do choque com esta realidade e da sua superação, representada principalmente pela cena da empregada na piscina.
Um cinema vivo, diverso e comprometido
Nitidamente, o filme de Muylaert aponta a educação como mola para a transformação social. Jéssica, apesar de viver no interior, estudar em uma escola pública e ser filha de uma empregada doméstica ausente do convívio familiar, encontrou no estudo e na obstinação por cursar uma faculdade o caminho para construir sua autonomia e questionar o ordenamento social opressivo, cuja representação simbólica está no direito do filho dos patrões usufruir do melhor sorvete e da piscina como impeditivo aos trabalhadores da casa.
Algo como dizer que o direito ao ócio e ao lazer é exclusivo às classes economicamente privilegiadas, e não direito de todos e componente essencial da condição humana. A referência que Jéssica faz ao papel representado pelo professor de História é a chave para compreendermos a proposta do filme. Jéssica, por meio de uma educação crítica, apropria-se do capital simbólico que lhe permite ler o mundo, questionando-o e confrontando-o, assumindo-se assim como sujeito histórico da sua própria mudança. É esta autonomia da filha da empregada que desencadeia o caos no ordenamento social de uma classe média hipócrita, que sustenta um discurso de tolerância desde que as classes sociais menos favorecidas economicamente não reivindiquem o espaço a elas sempre negado. Algo como dizer que um aeroporto parece uma rodoviária porque o preço das passagens aéreas deixou de ser acessível apenas às elites econômicas.
A ousadia de Muylaert está nesta perspectiva de levar à classe média o espelho onde possa se reconhecer e se envergonhar. Está neste retrato de um país que passa por intensas transformações em suas estruturas sociais e, ao mesmo tempo, confronta-se com velhos preconceitos e, consecutivamente, resistências, representadas no plano da realidade, por exemplo, pelo debate acerca da aprovação da ampliação dos direitos dos empregados domésticos, travado naquilo que Ricardo Antunes chamou de “a revolta da sala de jantar” (O Estado de S.Paulo, 12/03/2013).
Por outro lado, Que horas ela volta? escorrega ao propor uma solução apaziguada, onde todos os problemas acabam resolvidos. Seja sob o aspecto da realidade social (com a qual o filme dialoga intensamente), seja sob o aspecto da verossimilhança, Muylaert cai numa espécie de ingenuidade que não convence, ao tentar solucionar os conflitos das protagonistas a partir das decisões individuais. A promessa de felicidade vislumbrada da sacada de uma pequena casa alugada na periferia (ainda que cortada pelos fios de eletricidade expostos ao alcance das mãos) soa apenas como uma tentativa de tornar o filme mais palatável a um público que, parece-me, a diretora procurou provocar e constranger desde o princípio.
Apesar de não contar grandes interpretações (Camila Márdila não chega a convencer em seu papel e Regina Casé está aquém daquilo que se espera de uma atriz experiente), Que horas ela volta? é um bom filme. Se não apresenta nada de novo sob o aspecto da técnica cinematográfica ou do roteiro, por outro apresenta um produto cultural capaz de dialogar com um público amplo, colocando a arte a serviço da reflexão social.
Não é provável que receba o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Também não importa. Que horas ela volta? vale a pena, principalmente porque foi capaz de reconhecer e se posicionar no atual cenário da sociedade brasileira, mostrando que nosso cinema persiste vivo, diverso e comprometido.
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Viegas Fernandes da Costa é historiador, escritor e professor do Instituto Federal de Santa Catarina