‘Os jornalistas devem estar atentos ao rigor do que editam até ao mais ínfimo pormenor. Num jornal não existem secções de primeira (a produzir com atenção) e de segunda (que admitem a displicência). Aquilo que para alguns leitores é insignificante, para outros será prioritário. Uma coisa é certa: haverá sempre alguém a escrutinar os mais pequenos detalhes do que se publica num periódico. E pode também depender disso a confiança que um jornal conquista ou desbarata junto do público.
Vem isto a propósito de dois temas que podem parecer despiciendos para quem trabalha no Público, mas que pelo menos alguns leitores – com todas as razões que lhes assistem e não se contestam – levam muito a peito.
Um deles tem a ver com a foto-legenda publicada nas páginas centrais da edição da passada segunda-feira, 26 de Maio. Sob o título ‘Não parece, mas o mar está calmo’, nela se mostra o surfista português Tiago Pires a ‘cavalgar’ uma onda algures numa recente etapa do Campeonato ASP da modalidade, em curso no Pacífico, que a legenda sugere ser relativa ao Billabong Pro, em Taiti, acrescentando tratar-se da sua ‘quarta ronda’. Um segundo parágrafo informa sobre o estado decepcionante da ondulação.
O que para os leitores distraídos não terá passado de uma cativante imagem, com a curiosidade acrescida (e quiçá desconhecida para a maioria) de ser protagonizada por um compatriota competindo numa prova mundial, constituiu um crime de lesa-pátria para os adeptos do surf que acompanham este campeonato com a mesma atenção que hoje outros portugueses dedicam aos preparativos da selecção nacional para o Euro-2008. E já não é a primeira vez que tal acontece com o mesmo tema nas mesmas páginas: no ano passado, o anterior provedor do Público dedicou uma crónica a uma foto-legenda sobre surf que, entre outros erros, transladava Biarritz para o Mediterrâneo.
Que se passou agora? As Ilhas Fiji foram transferidas para Tahiti. A palavra ao leitor Pedro Adão e Silva: ‘A legenda (…) que acompanha a foto de Tiago Pires (o primeiro português a integrar os top-44 que correm as 10 etapas do circuito que apura o campeão mundial de surf, o WCT) está errada do princípio ao fim. (…) A foto não é do Billabong Pro em Taiti, mas sim da quarta paragem do campeonato, o Globe Pro nas Ilhas Fiji – como se pode ler na camisola de competição. Quanto ao segundo parágrafo, ele reporta-se à etapa anterior (que ocorreu há duas semanas) e não à que se iniciou este fim-de-semana. Aliás, é provavelmente essa confusão que faz com que no título se fale em mar calmo – pois em Teahupoo a ondulação não esteve particularmente favorável. Já em Fiji, como bem atesta a foto, as ondas têm estado com um tamanho muito significativo’.
Também outro leitor, Henrique Pereira dos Santos (que aliás já reclamara aquando da retirada de Biarritz do Atlântico), alerta para os ‘disparates facilmente verificáveis (por exemplo, que Tiago Pires não chegou à quarta ronda de nenhuma das etapas até agora ou que a fotografia não é no Billabong Pro do Havai [outra confusão insular – Taiti] mas nas Fiji)’, acrescentando ainda: ‘Que opções editoriais para mim absurdas façam com que o Público gaste mais espaço com os jogos de basquete nos EUA (ou mesmo com o hóquei no gelo) do que, por exemplo, acompanhando Tiago Pires, que está no restrito grupo dos 45 [ou 44?] melhores surfistas do mundo a correr o circuito mundial é uma coisa que não percebo, mas deixo à liberdade editorial do jornal’ (o provedor também deixa).
Pedro Adão e Silva põe o dedo na ferida: ‘Que é que me diz que o Público não comete sucessões de erros idênticos quando trata temas que não domino e sobre os quais confio na credibilidade da informação do jornal? Não saindo do desporto, que seria se o Público tivesse hoje escrito sobre o grande prémio de fórmula 1 da Turquia, realizado há um par de semanas, com uma imagem da corrida do Mónaco, que ocorreu este fim-de-semana, misturando tudo na legenda? O que me parece particularmente grave é que não será difícil pensar em situações semelhantes estando em causa assuntos bem mais sérios. Gostava, quando leio o jornal, de ter a certeza que posso confiar no que nele vem escrito’.
E remata o segundo leitor: ‘Amanhã, quando me apresentarem uma fotografia dizendo que são chapéus de chuva na China, como vou ter a certeza de que não são chapéus de sol no Vietname?’
A propósito de chuva e sol, passemos ao segundo tema: a informação meteorológica, que todos os dias ocupa a última página do caderno P2. Além do mapa nacional com a previsão do tempo para o próprio dia, publicam-se na secção mapas mais pequenos (só do continente) com a antecipação dos três dias seguintes. E é aí que tem residido o problema. O leitor Albano Nogueira Guedes reclamou com este exemplo: ‘Nos dias 18 e 19 de Maio, respectivamente domingo e 2.ª feira, (…) a sinalética (…) para os dias seguintes indicou SEMPRE ‘quarta-feira’, ‘quinta-feira’ e ‘sexta-feira’… Não será possível um pouco mais de cuidado?’
Também o leitor Abílio Ferreira não deixou de reparar na discrepância: ‘Parece inadmissível que esse erro não tenha sido detectado. Nem hoje nem em edições anteriores. E porque actualmente já despendemos semanalmente quase oito euros para ler o Público [argumento muito pertinente – entende o provedor], parece-me lícito solicitar maior atenção’.
Não se trata de ocorrência única. Já em Março, o leitor Carlos Dantas Teixeira (um octogenário que se orgulha de ler o Público desde os primeiros tempos do jornal) comunicou ao provedor os casos de 12 e 13 desse mês, em que a primeira das previsões para os dias seguintes era relativa ao dia de edição do jornal (ainda por cima, a 12, com informações contraditórias no mapa grande e no mapa pequeno – chuva num e sol parcial noutro). ‘Sinais claros de desleixo’, classificou o leitor. ‘Se a informação meteorológica não interessa ao jornal, acabe-se com ela. Se interessa, que se faça bem. O espaço no jornal não tem valor e pode ser preenchido com disparates?’ (A resposta é ‘sim’ à primeira questão e ‘não’ à segunda).
A meteorologia é provavelmente ignorada pelos responsáveis do Público, e o mais certo é que nenhum jornalista sequer a supervisione. Mas, como tudo o resto, também esta secção contribui para construir a credibilidade do jornal. Escreve Albano Nogueira Guedes: ‘Habituado a ter o Público como uma referência, acho estranho que esteja a ser muito frequente o descuido com algumas informações que podem parecer pouco importantes ou simples rotinas para muitas pessoas, mas na verdade são consultadas amiudadas vezes’.
Recomendação do provedor. Os ‘critérios de rigor’, proclamados no segundo ponto do Estatuto Editorial do Público, devem ser aplicados em tudo o que o jornal publica, sem excepção. Faça sol ou faça chuva.
CAIXA:
De tudo um pouco
Dois leitores reclamam quanto a um ‘excesso’ de informação desportiva no Público. Escreveu André Marques: ‘Comprei o Público de 11 de Maio e reparei que a edição deste dia tem um defeito muito grave: dedica 11 páginas ao desporto e apenas duas à economia. Uma vez que o Público não é um jornal desportivo, esta disparidade é inexplicável. Gostava de me informar acerca do preço do petróleo, por exemplo, mas não encontro informações sobre este tema. Por que é que a edição do Público de 11 de Maio foi tão pobre em relação à economia?’ E Luís Santos acrescentou, logo dois dias depois: ‘Quando eu quiser ter acesso a DOZE páginas de desporto [por essa altura, o máximo que o provedor contou foram 11 páginas], compro um dos ditos jornais desportivos! Assim não!’
Estaremos perante aquilo que José Pacheco Pereira, na sua crónica de 17 de Maio neste mesmo jornal, criticou como sendo ‘a cultura da irrelevância’? O provedor não vê nesta matéria razões de censura ao Público (desde que não deixe, porém, de informar do preço do petróleo), dado que o jornal se mantém dentro dos parâmetros de variedade temática que caracterizam a sua linha editorial: ‘O Público aposta numa informação diversificada, abrangendo os mais variados campos de actividade e correspondendo às motivações e interesses de um público plural’ e ‘estabelece as suas opções editoriais sem hieraquias prévias entre os diversos sectores’ – lê-se no Estatuto Editorial.
Em tempo de Euro-2008 e de Jogos Olímpicos, enquanto terminava o campeonato nacional de futebol, se caminhava para a final da Taça de Portugal e se discutiam as implicações dos apitos ‘Dourado’ e ‘Final’, o desporto terá sido incontornável na hierarquia informativa do Público. Um jornal generalista faz-se de tudo um pouco, de ‘grandes’ e ‘pequenos’ temas, ‘sérios’ e ‘frívolos’, que importam às mais variadas camadas de um público necessariamente diversificado. O Público, que, tanto quanto saiba o provedor, não aspira a grande educador do povo, também não pretende trocar este povo por outro.
Publicada em 1 de Junho de 2008
DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR (cartas dos leitores):
Bem sei que o assunto é surf, modalidade normalmente vista como marginal (por remeter frequentemente para a contra-cultura, mas, também, por apenas esporadicamente ultrapassar as fronteiras da comunicação social especializada), mas ainda assim, e tendo em conta que o assunto ocupa as páginas centrais da edição de hoje [26 de Maio], não posso deixar de fazer notar que a legenda de dois parágrafos que acompanha a foto de Tiago Pires está errada do princípio ao fim. Aliás, já não é a primeira vez que tal acontece quando o surf é escolhido para ilustrar o jornal. Em Setembro, o Público também publicou uma foto de duas páginas, de uma etapa do WCT, com uma legenda sem sentido nenhum (tema que na altura foi justamente tratado pelo provedor de então).
Vamos aos factos: a foto é de facto de Tiago Pires (o primeiro português a integrar os top-44 que correm as 10 etapas do circuito que apura o campeão mundial de surf, o WCT) e corresponde a uma onda da eliminatória contra o norte-americano de origem mexicana (e não americano, como erradamente se escreve), Bobby Martinez. Tiago Pires ganhou também o heat com as pontuações assinaladas. Acontece que a foto não é do Billabong Pro em Taiti, mas sim da quarta paragem do campeonato, o Globe Pro nas ilhas Fiji – como se pode ler na camisola de competição. Quanto ao segundo parágrafo, ele reporta-se à etapa anterior (que ocorreu há duas semanas) e não à que se iniciou este fim-de-semana. Aliás, é provavelmente essa confusão que faz com que no título se fale em mar calmo – pois em Teahupoo a ondulação não esteve particularmente favorável. Já nas Fiji, como bem atesta a foto, as ondas têm estado com um tamanho muito significativo.
Dir-me-á que o assunto é surf, ou seja, relativamente marginal. Mas, tendo em conta que é um assunto que acompanho com muita atenção – e que como tal conheço –, que é que me diz que o Público não comete sucessões de erros idênticos quando trata temas que não domino e sobre os quais confio na credibilidade da informação do jornal? Não saindo do desporto, o que seria se o Público tivesse hoje escrito sobre o Grande Prémio de fórmula 1 da Turquia, realizado há um par de semanas, com uma imagem da corrida do Mónaco, que ocorreu este fim-de-semana, misturando tudo na legenda? O que me parece particularmente grave é que não será difícil pensar em situações semelhantes estando em causa assuntos bem mais sérios. Gostava, quando leio o jornal, de ter a certeza de que posso confiar no que nele vem escrito (se nada mais, pelo menos do ponto de vista factual). Ao ler as páginas centrais de hoje, é-me sugerido que nem sempre é assim.
Pedro Adão e Silva
Há alguns meses, dirigi-me ao seu antecessor por causa de um pequeno texto sobre outra fotografia de surf nas páginas centrais do Público. O pequeno texto tinha tantos disparates que até colocava Biarritz no Mediterrâneo. O seu antecessor dedicou uma página inteira ao assunto, de tal maneira era disparatada a prosa. Mas pelos vistos o jornal não aprendeu.
Hoje [26 de Maio], outra fotografia de surf (aliás óptima) e mais disparates.
Declaração de interesses: aos fins de semana emprestam-me uma prancha para eu ir molhando o fato sempre no nível básico da escola de surf. Os meus quatro filhos fazem surf, duas fazem competição e uma é a campeã nacional. Não sou pois um leitor isento.
Que opções editoriais para mim absurdas façam com que o Público gaste mais espaço com os jogos de basquete nos EUA (ou mesmo com o hóquei no gelo) do que, por exemplo, acompanhando Tiago Pires, que está no restrito grupo dos 45 melhores surfistas do mundo a correr o circuito mundial, é uma coisa que não percebo, mas deixo à liberdade editorial do jornal. Mas que me faz confusão que um jornal como o Público reduza-o deixando de fora uma das modalidades de maior crescimento no país (para além das fotografias de que se gosta quase sempre – basta ver o prémio na categoria do World Press Photo com um body boarder na Nazaré, o único prémio português), lá isso faz.
Agora que, por essa miopia do editor de desporto, o jornal resolva escrever disparates como os que escreveu hoje, disparates facilmente verificáveis (por exemplo, que Tiago Pires não chegou à quarta ronda de nenhuma das etapas até agora ou que a fotografia não é no Billabong Pro do Havai mas nas Fiji), já me parece de mais.
Amanhã, quando me apresentarem uma fotografia dizendo que são chapéus-de-chuva na China, como vou ter a certeza de que não chapéus-de-sol no Vietname?
Henrique Pereira dos Santos’