Os profissionais que atuam no jornalismo televisivo vivenciam um cenário de intensa diversidade tecnológica para a realização do seu trabalho. Há hoje uma vasta gama de tecnologias que podem ser empregadas para uma quantidade de estratégias e intenções dos jornalistas. As câmeras, por exemplo, evoluíram, popularizaram-se (na mão tanto dos profissionais quanto da população como um todo), tornaram-se invisíveis, acoplaram-se no corpo daqueles que as usam. Nunca tivemos tantas imagens e ângulos sobre os fatos como temos atualmente.
Mas já é consolidado no senso comum que todos os avanços tecnológicos solucionam certos problemas na mesma medida que ocasionam novos. É essa, aliás, uma das premissas mais básicas do gênero de ficção científica. No jornalismo, certamente, não poderia ser diferente: a evolução das máquinas tem trazido inúmeras contribuições à televisão e ao jornalismo, ao mesmo tempo em que se tornam uma oportunidade para uma reflexão sobre, afinal, o que estamos fazendo com elas.
Uma reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo, “viralizou” na semana que se passou (assista aqui). Os leitores deste texto, caso tenham acessado alguma rede social na última semana, certamente viram o magnífico meme de uma mulher que foge desesperada ao ser confrontada por uma jornalista, que a persegue (veja aqui). Tratava-se de uma reportagem – cuja pauta é absolutamente pertinente, diga-se – que denunciava três servidores da Assembleia Legislativa de Goiás que batiam ponto e iam embora fazer outras coisas (como tomar café na padaria, ir para casa ou contemplar a natureza durante duas horas sentados numa praça).
Uma distorção da função da imprensa
Em termos de recursos tecnológicos, a reportagem é riquíssima. Um espectador que atentar a ela consegue observar a diversidade de câmeras que foram empregadas para capturar os flagrantes dos servidores. Temos as câmeras profissionais, que captam os ângulos mais tradicionais ao telejornalismo em uma imagem da alta qualidade. Temos câmeras que ficam escondidas, invisíveis, pois é preciso registrar uma cena que acontece sem que se saiba que há ali um jornalista trabalhando (uma vez que ter ciência da câmera descaracterizaria o flagrante). Temos câmeras Go Pro, que ficam “encarnadas” no corpo do repórter e causam um registro em primeira pessoa, como se o próprio espectador estivesse presente no embate entre jornalista e o profissional pego no erro.
Ou seja, alguém diria que nunca o telejornalismo foi tão rico, em parte porque nunca tivemos máquinas tão incríveis e tão portáteis. De fato, faz sentido. Mas, obviamente, seria prudente irmos além de um simplório olhar deslumbrado quanto ao uso das tecnologias e nos interrogarmos sobre a serviço de que sentidos todas estas engenhocas têm sido usadas.
Voltemos ao episódio central desta reportagem, ou ao menos o mais “famoso”, que é o flagra da funcionária que corre. O confronto exposto aqui é entre duas situações: a pessoa registrada pela câmera escondida, que age na sua vida cotidiana, normalmente, sem saber que suas atitudes podem estar sendo olhadas por outro, e a pessoa que é “jogada na cova dos leões” e exposta à visibilidade midiática – que, hoje sabemos, é um ponto de virada crucial entre uma reputação e a morte dela. Muitas vezes, esta punição é ainda mais severa que uma condenação judicial.
Tradicionalmente, muito se defendeu e se criticou o uso deste tipo de câmera oculta no telejornalismo. Os que legitimam seu uso falam que ela se tornou o último recurso possível para registrar atitudes ilícitas, aquilo que transcorre por trás dos panos, e que essa, no fim das contas, é a função número um do jornalismo: trazer a público aquilo que forças maiores se esforçam para que permaneça oculto. Os que a condenam costumam acreditar que ela se sustenta em uma distorção da função da imprensa, pois o jornalista que a utiliza acaba por se apropriar do papel de outras instituições, como a polícia. Ou seja, para desvendar uma farsa, o jornalista acabaria produzindo uma outra farsa.
A “viúva confiante”
De todo modo, é preciso observar que este tempo em que vivemos, o das imagens que jamais se esgotam, nos leva a outra reflexão. Afinal, qual é o uso deste flagra? Em que medida a leitura sobre o desvendamento do crime (da fraude de bater ponto sem trabalhar) é mais forte do que o próprio sentido de humor para a qual a imagem serviu? Será que o meme (que foge das intenções da própria emissora, é bom lembrar) não se torna mais forte que a própria denúncia que carrega? Pois a imagem desencarnada do meme, repetida infinitas vezes, enfraquece a possível reflexão que a reportagem poderia suscitar.
O destroçamento da vida de alguém, independentemente da ilegalidade cometida, justifica a exibição do confronto? Talvez, inclusive, haja uma certa leviandade na narrativa construída pelo uso destas imagens, pois ela equivale à reação da fuga (que pode significar várias coisas, é bom dizer) a uma assunção indefensável da culpa.
Penso que valeria a reflexão: em que medida a exposição deste caráter “confrontativo” do jornalismo em televisão (a exibição do constrangimento, do embate e da corrida desesperada – literalmente – atrás de alguém) acaba, no fim das contas, por prejudicar a própria execução da profissão, pois ajuda a sedimentar a ideia de que falar com um jornalista é sempre uma verdadeira tragédia?
Creio que faz sentido relembrar aqui um trecho da brilhante obra O Jornalista e o Assassino, uma análise já clássica da jornalista Janet Malcolm. Ela diz: qualquer pessoa que fala a um jornalista é “como a viúva confiante, que acorda um belo dia e descobre que aquele rapaz encantador e todas as suas economias sumiram. O indivíduo que consente em ser tema de uma reportagem aprende – quando o artigo aparece – a sua própria dura lição”. Pois bem: quiçá valha a pena pensar o quanto às vezes estas incríveis máquinas mais prejudicam o trabalho jornalístico – e a função social dele – que o contrário.
***
Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha