A coluna de Lúcia Guimarães no Estadão neste dia da criança (12/10) enumera o bombardeio de reportagens com pais angustiados por não poder gastar com as crianças o mesmo que no ano passado. Crianças não entendem a comercialização do afeto, por isso mesmo Lúcia confere: é triste ver pais se desculpando por não poder comprar algo, como se fosse uma falha grave na dedicação devida aos filhos. “Comprar, Verbo Intransitivo” é o título da coluna. Comprar, verbo agregado ao Dia da Criança, aumenta a culpa dos pais de forma subliminar ou mesmo aberta, como a loja infantil que em Portugal se chama “O Pai Dá”. O que assusta ainda mais ler o suplemento Casa de domingo (11/10) no mesmo jornal.
Casa escolheu sugerir aos pais (aqueles mesmos endividados) quartos para seus filhos terem um território próprio numa época em que nem manter a casa ou a escola particular está sendo possível. Numa primeira opção o quarto teria até um palco iluminado com espelho (para aumentar o individualismo, a vaidade?) e um varal sobe-e-desce com várias fantasias para a criança exercitar seus heterônimos. A arquiteta explica, como não é possível levar os filhos para brincar ao ar livre todos os dias, o jeito é manter um ambiente exclusivo para eles. Confinados?
Numa segunda opção, se a criança não ficar esquizofrênica com a profusão de cores, penduricalhos, estamparias, cordão de luzes, vai crescer insuportavelmente narcisista, autocentrada e neurótica. Tudo rigorosamente arrumado como num palco, onde a criança seria a estrela. O que uma psicóloga diria disso?
Na terceira opção começa a culpabilização da avó: o arquiteto sugere que a avó, coitada, tão desprovida de recursos como os pais a quem ela provavelmente ajuda com a aposentadoria, deve ter um espaço só para os netos. Big televisão com mesa de pebolim (no Rio, totó, em Portugal, matraquilhos), nichos construídos para abrigar múltiplos brinquedos e objetos divertidos, muita marcenaria. O mesmo suplemento dá uma bolsa de arquitetura: os preços são proibitivos.
Na quarta opção é a loucura total. Módulos, estantes no quarto tríplex, suporte para escalada, um nicho redondo onde a criança deve se entortar para ler, uma cama suspensa protegida por telas para impedir a inevitável queda. No fim, uma brinquedoteca com pelo menos vinte módulos envidraçados iluminados com filamentos de carbono onde a criança identifica seu brinquedo entre milhares.
Convivência vazia
Uma avó horrorizada avisa que esses quartos só podem criar patologias variadas nas crianças. Pais mais horrorizados ainda ficam humilhados por mal poderem reservar um cantinho na sala para a brincadeira dos filhos. E o pior é o que a coluna de Lúcia Guimarães alertou, nesse dia e quando se trata de criança, o verbo é comprar.
A psicóloga Nadia Couri completa o quadro, “na escola o motorista leva e traz, a babá vai às reuniões e o excesso de diagnóstico de distúrbio de atenção só faz aumentar o excesso de medicação. Agora, o excesso de elementos não seriam responsáveis pelo desvio de atenção da criança? Tudo para ocupar a ausência dos pais e o tempo de brincar? Mãe e filho lancham juntos, mãe no celular, filho no joguinho do tablet. Não há parafernália tecnológica ou decorativa que preencha esse vazio da proximidade de convivência entre pais e filhos”
Foi um dia de diferença entre o caderno Casa e o artigo de Lúcia. Com um milhão de culpas entre uma coisa e outra. E no meio uma sugestão funesta sobre o abandono da criança a si própria e a seus desejos, que nada têm a ver com a necessidade de ter. Casa remete à culpa dos pais e à solidão dos filhos nos quartos onde devem figurar muito celulares e tablets para joguinhos. Tudo num mundo de faz-de-conta, como se o afeto e a fantasia desenvolvida com a leitura de um simples livrinho pudesse ser comprada.
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Norma Couri é jornalista