Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo e a generalização da vigilância na internet

A internet, como ferramenta de uso civil, tomou forma e se constituiu nos anos 90 como objeto de aproximação entre os sujeitos. Sejam eles de culturas distintas ou semelhantes. A Geração Y, a primeira a crescer e ser alfabetizada tendo a rede inserida em seu cotidiano, agregou os valores libertários ao meio digital.

Para essa geração, a internet representa muito mais do que um meio de comunicação. Em seu imaginário, a internet é uma ferramenta que lhe permite interagir com a sociedade, mas com regras sociais diferentes das encontradas no mundo físico. Se, para essa geração, o mundo físico nos limita a ideias conservadoras da sociedade, em que as nossas ações – sucessos e falhas – são carregadas para o resto da vida, a ponto de se criar um histórico positivo ou negativo de nossa vida, é no mundo digital, mais especificamente na internet, que encontramos a liberdade para testar e, até mesmo, errar.

“Para muitos jovens, a internet é uma forma de autorrealização. Ela lhes permite explorar quem eles são e quem querem ser, mas isso só funciona se pudermos ter privacidade e anonimato, se pudermos cometer erros sem que eles nos acompanhem. Fico preocupado ao pensar que a minha geração pode ter sido a última a gozar dessa liberdade” (Edward Snowden).

O pensamento de Snowden pode parecer apocalíptico para o senso comum. Comunicação instantânea, transações bancárias, facilitação de pesquisas e empreendimentos. Tudo isso são benefícios inimagináveis antes do surgimento da internet. Porém, ela também se mostrou como uma ferramenta sofisticada para a coleta de dados civis.

O panóptico

Modelo do panóptico de Bentham / Ilustração Wikimedia - licença Creative Commons

Modelo do panóptico de Bentham / Ilustração Wikimedia – licença Creative Commons

No século 18, um filósofo inglês chamado Jeremy Bentham apresentou um projeto arquitetônico de um edifício carcerário que garantia o bom comportamento dos detentos. O projeto partia do princípio de que se os detentos sentissem estar constantemente em observação, a probabilidade de que eles agissem fora do comportamento padrão  – imposto pela casa carcerária  – seria extremamente reduzida. Esse projeto ganhou o nome de panóptico.

“Quanto mais constante as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob vista das pessoas que devem inspecioná-las, mais perfeitamente o propósito do estabelecimento terá sido alcançado. A perfeição ideal, se fosse esse o objetivo, exigiria que cada pessoa estivesse realmente nessa condição, durante cada momento do tempo” (Jeremy Bentham).

Em sua época, Bentham assume que o panóptico pode ser implantado em qualquer área social. Do sistema carcerário ao administrativo. Logicamente, não tinha como Bentham imaginar a internet. Porém, após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA), pensou ser uma boa ideia aplicar o panóptico de Bentham a esse meio.

São diversas as pesquisas no ramo da psicologia que comprovam que, sob suspeita de estarem sendo observadas, as pessoas se limitam a fazer o que é aceitável pelo status quo. Sendo assim, ela fica inibida de se arriscar e alimentar o seu conhecimento e imaginação. Essa questão é também problematizada pelo próprio Bentham, quando ele propõe que o panóptico seja aplicado às instituições de ensino.

“Será que o espírito liberal e a energia de cidadão livre não seriam substituídos pela disciplina mecânica de um soldado ou austeridade de um monge?” (Jeremy Bentham).

Panóptico abandonado em Cuba / Foto Wikimedia licença Creative Commons

Panóptico abandonado em Cuba / Foto Wikimedia licença Creative Commons

Se a aplicação do panóptico é capaz de interferir na criatividade e liberdade da sociedade, não seria exagero afirmarmos que, para o jornalismo, a prática fere o princípio de liberdade de imprensa e sigilo de fonte. Uma vez que a sociedade tem o conhecimento de que os seus metadados são coletados por agências e empresas, ela pode ficar inibida em ter um comportamento desviante do considerado aceitável. E se ela estiver diante de provas concretas, que joguem luz no que o governo faz às sombras, ela pode se omitir ou destruir as provas, pois tem a consciência de que, uma vez vigiada, ela também poderá ser rastreada e sofrer as consequências de um Estado que é mais autoritário do que demonstra ser.

O amedrontamento da fonte pode ser a principal perda para o jornalista em um Estado de vigilância. Mas também devemos levar em conta que o próprio jornalista pode se sentir amedrontado. São inúmeros os casos em que jornalistas são assassinados devido ao seu trabalho.

O jornalismo no meio disso tudo

Temos dois casos recentes sobre vazamento de documentos secretos que comprovam o autoritarismo dos Estados da democracia ocidental e que tiveram jornalistas e fontes criminalizados. O primeiro caso são as filmagens vazadas pelo soldado Bradley Manning  – hoje Chelsea Manning  –  ao WikiLeaks. Na ocasião, o vídeo de um helicóptero na Guerra do Iraque mostrava soldados estadunidenses matando civis iraquianos e dois jornalistas da Reuters.

Chelsea Manning foi rastreada e identificada pela agência de espionagem estadunidense devido ao uso de um chat. Hoje, a fonte está presa, com uma pena de 35 anos de reclusão por vazamento de documentos secretos. Julian Assange, fundador do WikiLeaks, encontra-se exilado na embaixada do Equador em Londres. Caso saia, corre o risco de ser extraditado para a Suécia e, posteriormente, para os Estados Unidos, onde deverá ser julgado pela divulgação  –  e facilitação no vazamento  –  de documentos secretos do Estado.

O mesmo ocorreu no caso de Edward Snowden. Ex-agente da CIA e prestador de serviços para a NSA, ele vazou documentos ultrasecretos que revelavam a abrangência da agência de espionagem. Snowden foi considerado traidor da pátria e terrorista e agora encontra-se exilado na Rússia. Glenn Greenwald e Laura Poitras, respectivamente jornalista e documentarista envolvidos no caso, também foram taxados de terroristas e acusados de incentivarem o vazamento dos documentos confidenciais. Ambos passaram por vigilâncias severas quando voltaram aos Estados Unidos.

Em seu livro Sem Lugar Para se Esconder, Greenwald faz uma crítica sobre a seletividade na hora de criminalizar os vazamentos de documentos governamentais. Os vazamentos que enaltecem o Estado, diz ele, são aplaudidos e premiados. Enquanto os que rompem com o status quo e mostra o Estado que age às sombras, é rapidamente condenado e crucificado. “Os únicos vazamentos que a imprensa de Washington condena são os que contêm informações que os funcionários do governo prefeririam ocultar”, diz Glenn Greenwald.

Facebook, o panóptico da era digital / extraido do blog Joelle L / via Creative Commons

Facebook, o panóptico da era digital / extraido do blog Joelle L / via Creative Commons

Ambos os casos demonstram um Estado que se baseia na vigilância para identificar e punir os dissidentes. Os jornalistas que ousam desafiá-lo são criminalizados, enquanto as fontes chegam a sofrer punições mais severas. O Estado de vigilância silencia aqueles que trazem à luz as suas ações. Ele trabalha para que ele consiga ver a sociedade, sem que ela o veja. Assim como o panóptico de Jeremy Bentham.

“Ninguém precisa que a Constituição norte-americana garanta a liberdade da imprensa para os jornalistas poderem ser simpáticos e divulgarem e glorificarem os líderes políticos; a garantia é necessária para que os repórteres possam fazer o contrário” (Glenn Greenwald).

Por isso devemos sempre nos questionar: somos livres de fato? Se acaso a resposta for não, então está na hora de retomarmos a nossa liberdade. A internet fez com que o autoritarismo estatal seja silencioso, quase imperceptível. Mas a censura do jornalismo não se dá apenas com a presença de generais dentro das redações.

Bibliografia

BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. 2ª Edição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2008. 199 p.

GREENWALD, Glenn. Sem Lugar Para se Esconder: Edward Snowden, a NSA e a espionagem do governo americano. Tradução de Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Sextante, 2014, 288 p.

***

André Quintão da Silva é estudante