Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O cupim da República

Arlindo Cruz, André Diniz, Leonel e Evandro Bocão escreveram um samba que denominaram Ilicitação (2014) e que retrata muito bem esse cenário de corrupção nefasta: “Não me admirei/ quando mais uma vez eu vi na TV/ um parte-reparte, 100 pra mim, 100 pra você/ Ar condicionado, engravatado vai metendo a mão/ Na fila o pobre coitado é quem sofre o efeito da ilicitação.” Os sambistas descrevem situações que denunciam crimes contra a saúde, segurança e educação, maiores anseios da população. E mostram indignação com a impunidade e a desfaçatez, versejando para indagar: “Como é que pode? Alguém viver e ter prazer em desfrutar da vida sem se arrepender afinal?”

Corrupção prospera a partir da ganância, do excesso de tolerância, da impunidade. Mas tem também a ver, nas banalidades do cotidiano, com a forma pela qual exercitamos valores éticos com a nossa família, com funcionários, com amigos… Desde cedo, os brasileiros vêm sendo obrigados a conviver nesse ambiente marcado pelo baixo-astral. Sobre a ilicitude inaceitável, o jornalista Ari Cunha, em coluna publicada no Correio Braziliense, de 30/09/2015, apresenta parecer conjuntural bastante apropriado: “Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são.”

A frase, colocada por Mário de Andrade na boca do herói ícone do país, Macunaíma, soa atual, como de resto soam hodiernas todas as mazelas que nos assolam desde a chegada de Cabral. No caso da formiga cortadeira, que ameaçava acabar com o Brasil, deu-se um jeito com a aplicação do formicida da marca Tatu. Verminoses, paludismo, chagas e outras infecções dos trópicos subdesenvolvidos podem ter retardado nosso progresso, mas nem de longe podem se comparar em malignidade aos nossos cupins seculares, responsáveis, desde sempre, pela dilaceração contínua dos cofres públicos. No dizer do saudoso Ulysses Guimarães, “a corrupção é o cupim da República, consumindo não só a própria democracia, mas, sobretudo, o futuro da nação, negando-lhe o acesso aos mais elementares direitos humanos”.

Roberto Rachewsky, fundador do Instituto Estudos Empresariais (IEE), sustentou que a chance do Estado está assentada na privatização de setores cruciais para a sociedade como educação, saúde, saneamento, água, entre outros, o que se justificaria pela inaptidão dos governos em gerir os recursos arrecadados. Idealiza que a polícia e a justiça se autofinanciem através das custas judiciais ou taxas por serviços prestados. A tese é conhecida e os argumentos têm aparência de verdade, porque governos são inaptos, pagamos tributos em demasia e desenvolvimento econômico gera riqueza. A conclusão da mercantilização de setores essenciais da vida social como forma de solução é simplista e não conduziria ao propalado resultado, além de implicar agravamento das desigualdades sociais na qual o bem-estar do cidadão está associado unicamente ao seu poder econômico de compra.

A consciência do certo e do errado

Para o poder econômico, esse seria o melhor dos mundos: retira a possibilidade de acesso público a bens essenciais, estabelece condições sem limitação e inviabiliza o acesso a qualquer tutela de justiça para coibir abusos. Desenvolvimento econômico não é garantia de riqueza para o conjunto da sociedade. Em 2016, os recursos acumulados pelo 1% mais rico do planeta ultrapassarão a riqueza do resto da população, aponta estudo da organização britânica Oxfam. A crise, nesse contexto, é antes de tudo ética. A transparência reclamada do público não é praticada pelo privado. A ética deve começar a ser praticada por todos.

Uma comunidade ética é aquela em que o respeito, a admiração e o compromisso com o outro são a essência do viver. Para além dos elementos de sobreviver, dos elementos importantes de adaptação do sujeito ao mundo complexo, a ética se ocupa essencialmente com o viver bem a vida humana. A vida precisa, sob todos os aspectos e sentidos, ser levada e vivida de forma prazerosa. O prazer aumenta nossa condição humana, a bondade, a esperança, a condição espiritual, as formas de ver o mundo, o outro e a nós mesmos. Por isso, o viver com prazer e com alegria é a maior gratificação da existência. Humaniza-nos enquanto estivermos orientados na busca permanente do bom, do belo e do verdadeiro. Nesse sentido, ética demanda discernimento apurado, conforme salienta Fernando Savater, em Ética para meu filho (1993): “Saber o que nos convém, ou seja, distinguir entre o bom e o mau é um conhecimento que todos nós tentamos adquirir – todos, sem exceção – pela compensação que nos traz.”

Quando ouço parlamentares e não parlamentares bradando pela ética aos quatro ventos, lembro-me do seguinte adágio: “Aquele que grita é o que suspeita não ter razão.” Reza a educação comunicativa que evitemos a deselegância absoluta de argumentar na base do volume da voz. A fala mansa, o raciocínio ponderado e o argumentado pensado são expressões de inteligência. Gente alterada promove combate ao invés de debate. Sobre a expressão da alteridade que deve pautar a liberdade de pensamento com responsabilidade argumentativa, quem ofereceu grande depoimento foi o jornalista e escritor Lima Barreto, na crônica “Elogio da Morte” (A.B.C., em 19/10/1918): “Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no cro-magnon e não teríamos saído das cavernas. O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana.”

Coletivamente, precisamos ser responsáveis diretos em promover uma educação de qualidade no âmbito geral – é de cedo que se incute a consciência do certo e do errado, dos direitos e das obrigações, a clara separação entre o público e o privado, a noção de liberdade e justiça, de cidadania e do bem comum.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários