Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os pastores da política – parte 2

A igreja pentecostal começou a se envolver na política brasileira na década de 1960 através da Brasil para Cristo, que elegeu um deputado federal em 1961 e um estadual em 1966. Depois disso, porém, a igreja só voltaria a eleger candidatos na década de 1980, como explica Paul Freston: “A maior participação vem em 1986, no fim do regime militar, com a Assembleia Constituinte. A Assembleia de Deus é o motor disso inicialmente, e se organiza desde a cúpula para ter um candidato oficial em cada estado, um deputado. Eles se organizam e tentam apresentar esse candidato nas igrejas, falar pras pessoas votarem nele. É o que dá origem à bancada evangélica, é a primeira vez que se fala nisso. E a grande novidade é que a maioria é pentecostal”.

Os pentecostais deslancharam na política com a Igreja Universal do Reino de Deus, que criou um plano político mais estruturado dentro da instituição, segundo a autora da tese “Religião e política: ideologia e ação da ‘Bancada Evangélica’ na Câmara Federal”, Bruna Suruagy (leia a entrevista completa aqui). “No início da década de 1990, a Igreja Universal começou a atuar com um plano político estruturado”, explica. Em sua pesquisa, Bruna chegou ao seguinte desenho do plano político da Universal: “A cúpula da igreja, formada por um conselho de bispos da confiança de Edir Macedo, indica candidatos em um procedimento absolutamente verticalizado, sem a participação da comunidade. Os critérios para a escolha desses candidatos geralmente têm base em um certo recenseamento que se faz do número de eleitores em cada igreja ou em cada distrito. E cada templo, cada região, tem apenas dois candidatos que seriam o candidato federal e o estadual. Ela desenvolve uma racionalidade eleitoral a partir de uma distribuição geográfica dos candidatos e a partir de uma distribuição partidária dos candidatos. Isso mudou um pouco agora porque existe um partido que é da Universal, o PRB, que fica cada vez mais forte no Congresso”, explica, destacando também a importância da mídia religiosa como interface entre a igreja e a política.

A Pública fez contato com a assessoria de imprensa da Igreja Universal e obteve como resposta a que a instituição não se pronunciaria a respeito “porque não se envolve com política”. Ao insistir para obter a entrevista, a assessoria pediu que as perguntas ao bispo Edir Macedo fossem feitas por e-mail e não respondeu mais. Mesmo o site do PRB, que tem grande parte dos filiados ligados à Universal, incluindo o presidente do partido, Marcos Pereira, não deixa clara essa conexão entre o partido e a igreja. Mas, entrevistado pelo deputado federal Celso Russomanno ao vivo durante a festa de dez anos do PRB, no dia 25 de agosto, diante da plateia do auditório Nereu Ramos, Pereira revelou que sua carreira e o PRB caminharam de braços dados com Edir Macedo. Ele contou que é bispo da igreja desde 1999, foi vice-presidente da Rede Record de Televisão em 2003, ano em que também se tornou sócio da LM Consultoria Empresarial – holding que controla todos os negócios da Igreja Universal do Reino de Deus – e então se tornou presidente do PRB em 2011.

Modelo brasileiro

Ainda segundo a pesquisadora Bruna Suruagy, a Universal se tornou um modelo para outras igrejas brasileiras justamente porque a cada novo mandato havia um aumento significativo dos parlamentares. “A Assembleia de Deus, que hoje tem a maioria dos deputados, não funcionava assim”, diz. Ela explica que isso não significa que o funcionamento institucional das duas denominações seja o mesmo. “A Assembleia é uma igreja com muitas dissidências e muitas divisões internas, por isso não é possível estabelecer hierarquicamente os candidatos oficiais. As igrejas têm fortes lideranças regionais e uma fragilidade do ponto de vista nacional. A sede não tem tanta força e, por isso, eles criam prévias eleitorais. As pessoas se apresentam voluntariamente ou são levadas pela própria igreja, e ainda há a ideia de que alguns são indicados por Deus porque mobilizam grandes multidões, ou contagiam, como dizia Freud, o que também termina sendo um critério. Então tem uma lista, depois uma pré-seleção que passa por um conselho de pastores – isso em cada ministério, porque a Assembleia é uma igreja que tem várias subdivisões internas. É interessante que os que pretendem se candidatar assinam um documento se comprometendo a apoiar o candidato oficial caso ele não seja escolhido, para evitar candidaturas independentes e para manter a fidelidade que se tem na Universal.”

O sistema de escolha de candidatos é confirmado pelo pastor Caio Fábio, enquanto conversamos no belo jardim de sua casa, em Brasília. “A maioria dos políticos que temos hoje foi produzida em berço pentecostal. Portanto, eles nascem do único poder que habita esse ambiente que é o do carisma pessoal. E esse carisma não tem absolutamente nada a ver com inteligência, instrução ou cultura. Por carisma entende-se a capacidade de comunicação popular intensa, tanto mais poderosa quanto menos escrupulosa seja. São em geral pastores, bispos e apóstolos. A Universal é um caso à parte, assim como as igrejas neopentecostais, que são igrejas pós-macedianas, porque o projeto político lá é totalitário, vem do Macedo a determinação de quem é e quem não é”, critica. “As igrejas reformadas [também conhecidas como protestantes históricas] são democrático-representativas. A cada cinco anos no máximo, tem uma eleição de pastores. As episcopais [pentecostais] são mais por sucessão, indicação do bispo. E, se os demais acolherem, eles são afirmados. Nas pentecostais, os pastores vão colocando seus filhos na linha sucessória na igreja e na política. Aconteceu assim com Malafaia, por exemplo. O pai dele era pastor e o filho também é. Os protestantes históricos são mais silenciosos, mas não quer dizer que não sejam homofóbicos, por exemplo. O Bolsonaro frequenta uma igreja batista e é… O Bolsonaro.”

Freston, por sua vez, não vê influência do modelo americano, como os chamados cinturões bíblicos, na política brasileira. Para ele, o crescimento da bancada evangélica tem mais a ver com nosso modelo político. “Quando a imprensa e os acadêmicos começaram a notar a presença dos pentecostais na política, houve algumas interpretações sobre ser cópia dos Estados Unidos, que já tinha a direita cristã, e a ideia de que isso estava surgindo no Brasil, incentivado por esse modelo. Mas eu sempre achei que correspondia muito mais às peculiaridades do sistema eleitoral brasileiro. Porque você tem o crescimento pentecostal em muitos países do mundo, na América Latina toda, em muitos lugares na África, em alguns lugares da Ásia. Mas só no Brasil você tem esses fenômenos de bancadas nos Congressos. Essa aproximação com a direita é mais recente e tem a ver com essa nova direita, que não tem medo de se chamar de direita”, diz o sociólogo.

Outra característica de nosso sistema eleitoral, a de representação proporcional com listas abertas, favorece os candidatos carismáticos, os “puxadores de voto”, que passam a ser cobiçados pelos partidos. “Eles dizem ‘vamos por o pastor candidato que ele traz mais 2 ou 3 mil votos para a gente’. Mas esse cara traz 60 mil votos e se elege sozinho! Esse sistema favorece a eleição desses pentecostais. E muitos países que tem crescimento pentecostal não têm isso. No Chile, por exemplo, onde o pentecostalismo também cresceu muito, você quase não teve políticos evangélicos porque é outro sistema eleitoral. Aqui os líderes pentecostais souberam maximizar suas possibilidades dentro desse sistema.”

E o que querem os políticos evangélicos?

Mais do que os temas morais como aborto, violência, drogas e sexualidade, são os interesses institucionais que unem a bancada evangélica segundo os pesquisadores. “A conquista de dividendos para as igrejas como a manutenção de isenção fiscal, a manutenção das leis de radiodifusão, a obtenção de espaços para a construção de templos e a transformação de eventos evangélicos em culturais para obtenção de verbas públicas estão nesse páreo”, explica Bruna Suruagy. Paul Freston dá um exemplo: “Na época da Constituinte, teve a questão do mandato do Sarney, do quinto ano. Para conseguir esse quinto ano, ele comprou muita gente no Congresso. A moeda de troca para muitos pentecostais era uma rádio, coisas ligadas à mídia”.

Um estudo realizado pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser) em 2009 mostrou que de 20 redes de televisão que transmitiam conteúdo religioso, 11 eram evangélicas e 9 católicas. Apenas a Igreja Universal controla mais de 20 emissoras de televisão, 40 de rádio, além de gravadoras, editoras e a segunda maior rede de televisão do país – a Rede Record.

Larissa Preuss, autora da tese de doutorado “As telerreligiões no telespaço público: o programa Vitória em Cristo e a estratégia de mesclar evangelização e preparação política”, destaca a enxurrada de pastores eletrônicos na televisão brasileira nas décadas de 1980 e 1990. “O RR Soares é o mais antigo, está no ar desde o fim dos anos 70, e o Silas Malafaia entra em 1982. Ele é quem fala mais explicitamente sobre política na televisão, apesar da maior articulação política ser da Universal”, lembra.

A pesquisadora conta que estudou os programas de Malafaia de 2014 para entender a relação de seus discursos com as eleições. “Ele assume que existe uma briga política e deixa claro que quer influenciar e por isso não se candidata. Ele fala diretamente ao público, mas também fala muito aos líderes religiosos, tanto que Malafaia dá cursos de formação de pastores em locais como a Escola de Líderes da Associação Vitória em Cristo (Eslavec) e está construindo um império, hierarquizando igrejas dentro da Assembleia de Deus, que não tem essa cultura. O Malafaia se coloca no lugar do profeta, que é aquela autoridade que unge o rei e denuncia o sacerdote, e isso é muito forte. Ele incentiva os líderes a influenciar seus fiéis para que Deus possa agir na política.”

A hipótese de Larissa é que os pastores midiáticos migram para a política justamente para garantir as concessões de radiodifusão. “Porque as outorgas são ratificadas ou podem ser abolidas pelo Congresso. Então é uma retroalimentação: eles estão na televisão, influenciam a eleição de certos candidatos que vão garantir sua permanência na televisão. A informação hoje é poder. A imagem é uma moeda valiosa. E os evangélicos estão na política como nunca. Basta dizer que o tema da última Marcha para Jesus foi ‘faxina ética’”. 

Municipal

E não é só em âmbito federal que a bancada evangélica tem se fortalecido. O número de projetos de leis temáticos também tem crescido entre os vereadores e deputados estaduais evangélicos, que recentemente também barraram a discussão de gênero em planos municipais de educação em várias cidades, incluindo a capital paulista. E não é só isso. A pastora e deputada estadual Liziane Bayer, do PSB do Rio Grande do Sul, protocolou em abril o PL 124/2015, que prevê o ensino do criacionismo nas escolas públicas e privadas do estado. Liziane, cujo slogan de campanha foi “compromisso com a fé, a família e a vida”, conta que começou a se interessar por política e a conversar sobre o assunto no grupo de mulheres de sua igreja. Ela diz que sabe que o projeto é polêmico, mas defende o ensino do criacionismo para dar uma opção aos alunos. “Eu acho o comunismo ruim, mas ele é ensinado nas escolas. O criacionismo pode ser visto da mesma forma, mas, até pra que tu digas que não é correto, tem que saber”, opina.

Em Cuiabá, o vereador Marcrean dos Santos (PRTB) criou um projeto que virou lei para feriado evangélico na cidade (Lei n° 5.940/15); em Itapema (SC), o vereador Mouzatt Barreto (DEM) também criou um PL para obrigar a leitura da Bíblia nas aulas de história das escolas públicas e particulares; em São Paulo, o vereador Carlos Apolinário, que em 2011 conseguiu que a Câmara aprovasse o “Dia do Orgulho Heterossexual”, vetado pelo então prefeito Gilberto Kassab, apresentou um projeto de lei para criar banheiros públicos em restaurantes, shoppings, cinemas e em casas noturnas para gays, lésbicas, bissexuais e transexuais e chegou a declarar que “não é possível minha mãe entrar em um banheiro e encontrar um homem vestido de mulher”.

Em Manaus, a vereadora Pastora Luciana (PP),  que prefere ser chamada de pastora – “vereadora é só uma promessa, pastora é pra eternidade” –, é autora de três projetos temáticos: O PL 125/15, que visa autorizar por lei manifestações religiosas como palestras e pregações nos terminais de ônibus da capital com o uso de caixas de som; o 075/15, que propõe a instituição de uma capelania na Guarda Civil Metropolitana, e o PL da Cristofobia, que prevê multas para quem tiver “atitudes discriminatórias em face da religião cristã, palavras e práticas agressivas contra a figura de Jesus Cristo, ameaças, estereótipos pejorativos, induzir ou incitar a discriminação contra a Bíblia Sagrada”. Mas o projeto de lei mais bizarro é do vereador de Santa Bárbara do Oeste Carlos Fontes (PSD). O PL 29/2015 proíbe a implantação de microchips em seres humanos, comparando-os à marca da besta prevista no livro de Apocalipse (veja a entrevista em vídeo que gravamos com o vereador).

A MARCA DA BESTA from Agência Pública on Vimeo.

“Se a presença de um evangélico na política melhorasse a política, humanizasse a política, as igrejas seriam édens, oásis, paraísos de bondade humana, altruísmo, inclusão, tolerância, misericórdia, de amor de verdade, equidade, solidariedade. Mas, enquanto o diabo continuar a existir pra eles da forma como existe, eles podem continuar roubando porque o diabo pagará a conta das acusações. Em nome de Deus, a canalhice é santificada”, conclui Caio Fábio.

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Andrea Dip é  repórter da agência Pública / Guilherme Peters colaborou na produção da reportagem