AUDÁLIO DANTAS
Juca Kfouri
Audálio Dantas, um cidadão contra a barbárie, 10/6
‘(Discurso de Juca Kfouri na entrega do título de Cidadão Paulistano ao jornalista Audálio Dantas, vice-presidente da ABI, na noite de 9 de junho, na Câmara de Vereadores de São Paulo).
Boa noite, amigas e amigos de Audálio Dantas.
Vocês já viram uma cerimônia em que o orador está mais orgulhoso que o homenageado.
Se não viram, vão ver agora.
Sim, porque desde que fui escalado para falar de Audálio Dantas estou mais pimpão do que ele mesmo, tamanha a honra, tamanho o privilégio, dessas coisas para encabeçar o currículo.
Ele certamente merecia um admirador melhor, mas eu, sem dúvida, não poderia ter uma admiração maior.
Porque não é de hoje que Audálio Dantas deixou de ser um alagoano de respeito para se tornar um cidadão paulistano, um cidadão brasileiro, um cidadão do mundo, um CIDADÃO na acepção do que os gregos imaginaram, alguém mais que livre, alguém capaz de lutar pela liberdade do próximo.
Este é Audálio Dantas.
Eu sei que nestas ocasiões é esperado que o orador trace uma biografia do homenageado.
Mas quem, aqui, não sabe bem que é Audálio Dantas, o repórter, antes de tudo, o líder sindical, o político?
Ora, se eu for contar tudo de bom que Audálio Dantas fez na profissão e pela profissão, no país e pelo país, ficaríamos horas aqui a conversar.
Por isso, ao me congratular com esta casa porque este sim é um homenageado que merece todas as honras, quero contar uma história que vivi perto de Audálio Dantas, que testemunhei, quase minuto a minuto.
É uma história de medo.
Sim, nós tínhamos medo.
Vladimir Herzog estava morto, assassinado covardemente nos porões da ditadura.
Diziam que o meu nome estava numa lista e que viriam me buscar.
Eu tinha medo, muito medo.
Só em dois lugares, no entanto, eu me sentia seguro.
Só em dois lugares eu sentia medo com segurança.
Na Cúria Metropolitana, casa de Dom Paulo Evaristo, Cardeal Arns de São Paulo e na Rua Rego Freitas, no Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo, casa de Audálio Dantas.
E como eu não era nem padre, nem freira e nem sequer coroinha e já era jornalista, eu não saía da casa de Audálio Dantas.
Audálio Dantas talvez nem saiba, mas para muitos de nós, ele era sinônimo de segurança, de proteção.
E vi um homem preocupado, mas sereno, fustigado, mas firme, tenso, mas equilibrado, corajoso sem ser temerário, sensato sem ser dono da verdade, incapaz de uma demagogia, um blefe, uma guampada de boi manso, como dizem os gaúchos.
Estamos acostumados, com justa razão, a lembrar do ato ecumênico da Catedral da Sé como um ato que mudou a História do Brasil e por isso reverenciamos os três pastores que o conduziram, o Cardeal Dom Paulo Arns, o Rabino Henry Sobel e o Reverendo James Wright.
Freqüentemente, no entanto, porque somos o país que somos, propensos a certos esquecimentos, deixamos de lembrar que se não fosse pela atitude de Audálio Dantas naqueles dias sombrios, não teríamos o Ato da Sé.
Audálio Dantas, então, não se notabilizava por ser religioso, nem católico, nem judeu, nem protestante.
Era apenas um cidadão. Um cidadão indignado com a barbárie.
E para que ninguém diga que estou sendo ufanista, exagerado ou corporativista, é obrigatório lembrar de pelo menos mais cinco nomes que foram imprescindíveis para que o Caso Herzog começasse a mudar o Brasil.
Outro jornalista, nosso queridíssimo Fernando Pacheco Jordão, braço direito de Audálio Dantas durante todo o tempo, ponto de equilíbrio.
Os jovens advogados Samuel Mac Doweell e Marco Antônio Rodrigues Barbosa e o juiz de Direito Márcio José de Moraes que, a todo risco, levaram adiante a vitoriosa ação contra a União Federal.
E, é claro, nossa eterna companheira, a publicitária Clarice Herzog, então viúva do Vlado, mãe do André e do Ivo, que foi até o fim.
Audálio Dantas, então, não era filiado a nenhum partido político, era apenas um jornalista que lutava pelo bom jornalismo, pela liberdade de expressão, sem a qual o bom jornalismo é impossível.
Já era o Audálio Dantas da fabulosa reportagem ‘Quarto de Despejo’, com Carolina Maria de Jesus. Ou o Audálio Dantas que reuniria mais tarde em ‘Círculo do Desespero’, 12 de suas melhores, inesquecíveis, marcantes reportagens.
Era o presidente do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo como viria a ser, como é hoje, o presidente da Associação Brasileira de Imprensa em São Paulo.
Não era ainda o deputado federal eleito sem um tostão em 1978 porque as pessoas lhe eram gratas, coisa que também testemunhei porque fui um dos coordenadores de sua campanha sob o lema ‘Vamos virar o jogo’, talvez porque ele seja um empedernido corinthiano…
Deputado, diga-se, apontado como um dos 10 melhores do país, assim como foi eleito uma dos três líderes sindicais mais influentes do Brasil – e olhe que Audálio Dantas nunca foi petroleiro nem metalúrgico.
Audálio Dantas costuma dizer que seu melhor trabalho foi o papel que desempenhou no Caso Herzog.
De fato, porque, então, Audálio Dantas foi testemunha e protagonista, escreveu a História e nela foi inscrito.
É isso.
Audálio Dantas é parte importante, heróica, da História do Brasil.
Tenho comigo mesmo o compromisso de lembrar a todos disso sempre que com ele estiver numa cerimônia pública.
Para que jamais nos esqueçamos de alguém que acredita piamente que quem tem as respostas é o povo e que, por isso, pergunta, pergunta e pergunta, com bem sabem as mulheres que ele amou, os filhos que criou, todos que ele ouviu e continua a ouvir.
Este é um pouco de Audálio Dantas.
Audálio Dantas, é uma honra ser seu contemporâneo!
E, como diria o poeta Vinicius de Moraes, ah, se todos fossem iguais a você…
Juca Kfouri é jornalista, blogueiro, colunista da Folha de S. Paulo, ex-diretor de redação de Placar e Playboy. Blog: http://blogdojuca.blog.uol.com.br/’
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