“É de mencionar, por exemplo, a circunstância de frequentar os salões dos poderosos da Terra, aparentemente em pé de igualdade, vendo-se, em geral e mesmo com frequência, adulado, porque temido, tendo, ao mesmo tempo, consciência perfeita de que, abandonada a sala, o anfitrião sentir-se-á, talvez, obrigado a se justificar diante dos demais convidados por haver feito comparecer esses ‘lixeiros da imprensa’”
Max Weber, em A Política como Vocação
O eclipse da razão se aprofunda. A conjuntura nacional vive dias de breu e de loucura. Os discursos se embaralham uns aos outros, como numa peça teatral em surto, com os vilões tomando para si as falas dos mocinhos e vice-versa. Em meio a tantas confusões, a mais espantosa é a aliança discursiva entre os donos de riquezas privadas acumuladas graças ao Estado e os militantes de esquerda que um dia sonharam em acabar com o capital.
De repente, os porta-vozes de empreiteiras mastodônticas viraram adeptos do media criticism. Já em julho, advogados dessas empreiteiras que adoram o capital, mas detestam o regime de concorrência de mercado, começaram a acusar as investigações da Lava Jato de serem um reality show. De terno e gravata, aderiram às teses de Noam Chomsky, com pitadas conceituais da Escola de Frankfurt. Foi assim que a mais anticapitalista das teorias da comunicação veio prestar socorro às causas de empresas cuja mentalidade anticomunista é mais atrasada que o latifúndio.
E aqui estamos nós. As denúncias de “manipulações” dos meios de comunicação viraram lugar-comum na argumentação das empreiteiras, numa estridente troca de sinal. Os bilionários convertidos ao media criticism lançam mão do mesmíssimo palavreado adotado pelo leninismo degradado em stalinismo e, mais presentemente, em chavismo histriônico. As fabulações de “campanhas difamatórias para derrubar o governo”, de “orquestrações midiáticas para destruir um projeto” e de “complô moralista para desestabilizar as instituições” aparecem tanto nas alegações processuais do capital anticoncorrencial (que quer ficar eternamente no paraíso da acumulação primitiva) como nas perorações fundamentalistas dos que cultuam um bolchevismo que nunca existiu (e nunca quis ser o que seus sacerdotes tardios imaginam que foi). Os herdeiros do patrimonialismo pátrio se aliaram aos herdeiros de uma concepção idealizada da ditadura do proletariado.
É, pois, o caso de perguntarmos: mas o que é que uns e outros têm em comum, afinal? Aparentemente, nada. São antagônicos em suas linhagens históricas. Enquanto uns guardam montanhas de dinheiro, montanhas ainda maiores do que as barragens das hidrelétricas que foram contratados (pelo Estado) para construir, os outros guardam montanhas de pretensões teóricas e se reivindicam seguidores de uma tradição de combate ao capitalismo. Uns e outros são antípodas. Não obstante, estão juntos. Cerram fileiras no discurso. Falam as mesmas frases. Pois bem: por que isso? Se são uns o oposto dos outros, por que se aliaram? Será que os ameaça um inimigo comum? Será que pelo menos isso eles têm em comum, um inimigo?
Parece que sim. A julgar pelo que uns e outros andam dizendo, o inimigo que ambos atacam em parceria é essa entidade que eles preferem chamar de “mídia”. Vejamos, então, as razões por que uns e outros veem a “mídia” como inimiga. Bem sabemos que as razões estão todas eclipsadas, mas, ainda assim, poderemos detectá-las ao longe, mesmo que elas insistam em permanecer invisíveis.
Busquemos as razões. Que “mídia” é essa que eles combatem com tanto fervor reacionário (no caso de uns) ou “revolucionário” (no caso de outros)? Certamente o problema de uns e outros não é a “mídia” em geral. O problema não está nas telenovelas, na indústria de videogames, no mercado fonográfico, nas redes sociais, nos programas de auditório, na publicidade, nos sites eróticos, nos blogs católicos, nada disso. O que os apavora não é a “mídia” em geral, mas a imprensa, só a imprensa. Eles combatem a prática do jornalismo, embora não ousem dizer esse nome. Não pegaria bem.
E por que detestam o jornalismo a esse ponto? A resposta agora é mais fácil: detestam porque o jornalismo vive de expor o que uns e outros gostariam de esconder (ou precisam, desesperadamente, esconder). Uns e outros, claro, dissimulam seus ataques. Não falam contra as qualidades do jornalismo. Seria contraproducente. Em sua estratégia de marketing político, atacam o jornalismo por seus defeitos (e o que não falta é defeito no jornalismo). Dizem que a “mídia” é sensacionalista – e muitas vezes é. Dizem que os “vazamentos” são “seletivos” – e são mesmo. O que os enfurece, porém, não são esses defeitos (dos quais já se valeram inúmeras vezes), pois o que uns e outros não suportam não são os defeitos, mas as virtudes da imprensa: a sua vocação compulsiva de revelar segredos de interesse público.
Nesse ponto, resulta bastante óbvio que uns e outros, contra todas as aparências, têm algo em comum além do inimigo comum: eles são o poder. Uns sempre foram o poder econômico, outros se alçaram ao poder político. E porque são o poder têm outra coisa em comum: os segredos. Há que guardá-los muito bem guardados (na Suíça, talvez). Para guardar os segredos de que são sócios, uns e outros, “os poderosos” desta terra adulam os jornalistas, que convidam para jantar em seus salões. Depois, a sós, se comprazem em xingar os repórteres de “lixeiros”.
Uns aprenderam a falar na língua dos teóricos de esquerda. Outros aprenderam a usufruir a fortuna da direita. Juntos, dizem que o maior demônio do Brasil é a imprensa, quer dizer, “a mídia”. Não aturam ver seu próprio lixo revolvido pelo jornalismo. Para continuar com seus negócios, dependem das trevas e do eclipse da razão. A imprensa, por mais defeituosa que seja, só vive na luz.
***
Eugenio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP