A escolha do que vai ser manchete é questão muitas vezes subjetiva, mas acho que vale a pena discutir com o leitor alguns critérios –ou o que parece falta deles. Há dois domingos, critiquei neste espaço o título “Delator diz ter repassado R$ 2 mi para nora de Lula” (16/10). Observei que não era bem aquilo: Fernando Baiano declarou que havia dado dinheiro ao pecuarista José Carlos Bumlai e que este dissera que era para uma nora de Lula. Era telefone-sem-fio, Bumlai negou o diálogo, o enunciado forçou a mão. Não valia.
Na última quinta (29), ocorreu o inverso com a revelação de que Luis Cláudio Lula da Silva mora de graça em um apartamento da família de Roberto Teixeira, amigo polêmico de longa data do ex-presidente. A notícia saiu no alto da “Primeira Página”, em tamanho discreto.
A reportagem era uma apuração exclusiva, bem amarrada, ouviu todos os personagens e os outros lados. O fato sozinho já tinha valor jornalístico: morar de favor não é ilegal, mas o caçula de Lula repete o padrão de histórias imobiliárias pouco convencionais que envolve a família. O próprio Lula morou durante anos em uma casa do mesmo Roberto Teixeira; o filho mais velho vivia em imóvel de alto padrão registrado em nome de sócios, mesma situação da chácara em que os Lula da Silva passam férias e feriados.
A notícia ganha mais força diante do contexto: Luis Cláudio está sendo investigado por ter recebido R$ 2,4 milhões de um escritório acusado de fazer lobby pró-montadoras, e o imóvel foi comprado de uma offshore das Bahamas, cujo procurador é marido de uma empresária de transporte público em São Bernardo –berço de Lula e do PT.
Tudo somado, o material valia o título principal, mas perdeu a posição para uma intriga política: “PT é fratricida e se equivoca na economia, afirma PMDB”. O título era baseado em um documento preliminar repassado à reportagem.
No mesmo dia, o partido divulgou o documento oficial sem os ataques “revelados” pelo jornal. A notícia de que as críticas haviam sido retiradas sumiu da “Primeira Página”, onde, por coerência editorial, deveria constar. O jornal ficou na miúda, como se o fato de ter avisado que o texto final poderia mudar o abonasse de desatar o enrosco.
O vice-presidente Michel Temer e o ex-ministro Moreira Franco, responsável pelo documento, declararam ao jornal “Valor Econômico” que o programa divulgado pela Folha era apócrifo e que nunca passou por eles. Pode ser jogo de cena? Claro. Como também pode ser que a reportagem tenha recebido o conteúdo de outra ala do saco de gatos peemedebista. Uma ou outra, o jornal ajudou a passar a mensagem.
A Direção de Redação diz que a versão de texto apócrifo foi criada após a publicação, para desfazer o mal-estar entre Temer e o Planalto. Afirma que não cabe a hipótese de vazamento por obra de disputa interna, porque o material –51 páginas timbradas e com o logotipo do congresso do partido– foi passado por pessoa alinhada ao vice.
Usar a imprensa para enviar recados é do jogo, mas o bom jornalismo político se diferencia pela capacidade de traduzir suas entrelinhas. Sem o trabalho de interpretação, feito por quem conhece os meandros da arena, seus personagens e os interesses que os movem, sobra o papel de pombo-correio.
Há duas semanas, o jornal abriu manchete de domingo para Rui Falcão dizer que o ministro da Fazenda devia sair do cargo caso resistisse a mudanças no ajuste fiscal. A frase do petista vinha embrulhada em senões: “[…] Se Levy não quiser seguir a orientação da presidente, deve ser substituído. Se ele não quiser, caso ela determine”. Dilma deu resposta na dia seguinte, pautando todas manchetes: ‘Opinião do presidente do PT não é a do governo, Levy fica’. Era claramente um balé concertado; a quem se destinava?
É esse papel analítico o que mais perdeu espaço no “jornal enxuto”. Os leitores ficamos sem piloto