A imprensa americana debateu os limites que separam a liberdade de expressão da prática do racismo. A razão foi uma charge publicada na quarta-feira (18/2) pelo tablóide New York Post, inspirada por um rumoroso caso ocorrido no estado americano de Connecticut: um chimpanzé domesticado que teve um surto, atacou uma amiga de sua dona e acabou sendo abatido a tiros |
Entre os ingredientes que deram ‘noticiabilidade’ ao fato pode-se listar alguns: o animal tinha 15 anos, pesava 74 kg e nunca tivera tido um surto; era treinado para usar o banheiro, sabia vestir a própria roupa e era capaz até de fazer o login no computador da dona; ele havia escapado uma vez em 2003, mas na ocasião ninguém foi ferido por ele até ser encontrado; segundo as primeiras informações, sua dona teria dado a ele o medicamento Xanax na manhã do ataque (o que ela nega); no passado, o chimpanzé atuou como garoto-propaganda em comerciais da Coca-Cola e da grife Old Navy.
Talvez esse último argumento tenha dado o ‘tempero’ especial para que a imprensa sensacionalista dedicasse tanta atenção ao fato. Talvez tenha sido também esta razão que levou o cartunista Sean Delonas a mesclar a comoção gerada pelo assunto com o pacote econômico do presidente Obama. Foi aí que o New York Post e o cartunista escorregaram. Num país que elegeu pela primeira vez em sua história um presidente negro, fazer piada envolvendo o primeiro pacote econômico do governo com um chimpanzé significa dar margem a todo o tipo de interpretações, por mais que não tenha havido qualquer outra conotação na publicação.
Comparação histórica
Tempos atrás, a piada (de mau gosto, diga-se) sobre uma performance de Daiane dos Santos gerou semelhante revolta. Fazia referência aos tipos de bananas (ouro e prata) e à medalha (bronze) que ela conquistara. O fato de ser negra e de bananas serem o alimento predileto dos macacos gerou a interpretação racista da piada. Nesse caso brasileiro, como se trata de uma piada apócrifa, não cabe julgar (ou inferir) sobre as intenções do autor, já que se trata de um desconhecido.
No caso do New York Post, não: há um editor responsável pelo diário e o próprio cartunista pode ser criminalmente responsabilizado por alguma ‘obra’ que venha a ser considerada racista ou discriminatória.
Entre os que ficaram revoltados com a publicação da charge, está o cantor e compositor John Legend. Vencedor de cinco prêmios Grammy, ele escreveu em seu site uma carta aberta ao NY Post, na qual pergunta que motivos teriam levado o jornal a publicar tal charge. ‘Eu imagino que vocês devem ter achado graça em sugerir que alguém que é responsável por elaborar um plano econômico deva ter a mesma inteligência e o juízo de um violento chimpanzé surtado, e que deveria igualmente ser abatido pela polícia para proteger os cidadãos.’
John Legend, que foi descoberto ainda adolescente, quando cantava música gospel na igreja, já teve composições gravadas por cantoras como Alicia Keys e Janet Jackson e tocou na festa de posse de Barack Obama. O artista desafia o jornal a respeito das origens e da biografia do presidente: ‘Não ocorreu a vocês que essa sugestão poderia sugerir uma conexão entre o presidente Obama e o chimpanzé surtado?’ Ele lembra, na carta aberta, que Obama recebeu algumas ameaças de morte desde que anunciou sua candidatura. E que, historicamente, os negros têm sido comparados aos macacos, ‘como forma de racismo ou de escárnio’. E pergunta: ‘Vocês pretendiam invocar esses temas repugnantes quando publicaram a charge?’
‘Escrever com desenhos’
No dia seguinte à publicação da charge, o jornal retratou-se perante a sociedade, seus leitores e internautas (a página com a charge foi, naquela semana, uma das mais acessadas e enviadas pelos internautas a outras pessoas). Com o título ‘That Cartoon’ (Aquela charge), o texto dizia que a charge pretendia ‘zombar de um pacote de estímulo federal que parecia escrito de maneira inepta’. Dizia ainda que foi interpretada ‘como um retrato de presidente Obama, como uma expressão velada de racismo’. O texto afirma que não houve de forma alguma essa intenção e mais: ‘A todos que se sentiram ofendidos, pedimos desculpas’.
O jornal, que foi fundado em 1801 e desde 1993 pertence ao magnata da imprensa Rupert Murdoch, diz ainda no seu editorial que o episódio foi explorado na mídia por pessoas que, no passado, tiveram ‘diferenças’ com o Post – ‘e que viram nesse incidente uma oportunidade de revanche’. E completa: ‘A esses, não pediremos desculpas’.
Apesar da conotação ideológica que o jornal tentou dar ao episódio, é mais prudente limitarmo-nos a entendê-lo como uma série de reações exageradas a um ato de criação de um desenhista-humorista talentoso e insuspeito em relação ao racismo.
Vale lembrar que, em junho de 2008, o mesmo Obama, ainda candidato, foi alvo de episódio semelhante, quando a revista New Yorker publicou na capa uma charge dele e da mulher, Michelle, vestidos como terroristas muçulmanos (ver, neste OI, ‘New Yorker pegou pesado contra Obama‘). A revista, fundada por Harold Hoss há exatos 84 anos, produz um dos melhores exemplos de jornalismo de qualidade no mundo, também é insuspeita em relação a qualquer conotação racista. O autor da capa ilustrando Obama como terrorista é Barry Blitt, que batizou seu desenho de ‘A política do medo’.
Certa vez, Eugênio Bucci definiu, neste Observatório, o cartunista Chico Caruso como ‘um dos mais sagazes cronistas da política brasileira (…) que escreve com desenhos em lugar de frases’ (ver ‘A quem cabe o papel de Chapeuzinho Vermelho‘). A mesma definição poderia ser aplicada a Barry Britt e a Sean Delonas.
Atos explícitos
Britt é autor de outras tantas capas da New Yorker, que mostram talento e independência ideológica ao retratar situações políticas. Em resposta às críticas feitas à sua charge, o artista disse à época que seu objetivo era mostrar que ‘os que chamam Obama de antipatriótico (por isso, representado como terrorista) são irracionais’. Segundo ele, a intenção foi mostrar o quanto ridícula é a cultura do medo que cercava a campanha de Obama.
Já o cartunista Sean Delonas é responsável pela charge da página 6 do NY Post há mais de 10 anos. Desenhista e cartunista premiado, é também autor do afresco do altar da nova Igreja St. Agnes, em Nova York, reconstruída em 1997 após ter sido destruída por um incêndio.
Verdade é que o New York Post não é a New Yorker, assim como o seu jornalismo está a anos-luz atrás do praticado pela revista semanal. Fato é também que uma foto de uma celebridade espancada pelo parceiro ocupará seguramente a primeira página do jornal, enquanto a revista continuará optando por publicar charges e desenhos em sua capa, sem título, como o faz há mais de 80 anos.
Mas daí a concluir que houve uma intenção de ser racista é outra história. Basta lembrar que um dos dirigentes do jornal, em seus primeiros anos de existência, ainda no século 19, quando se chamava The Evening Post, foi Oswald Garrison Villard. Seu avô William Lloyd Garrison foi um notório abolicionista. O próprio Oswald foi membro fundador da Associação Nacional para Integração dos Negros e da União Americana pelas Liberdades Civis. Claro que a Era Murdoch em nada se assemelha ao passado do Post. Mas mesmo um tablóide que vive de manchetes sensacionalistas sabe que tem uma reputação a zelar – e que atos explícitos de discriminação racial ou religiosa afugentam até mesmo os leitores ávidos por notícias sobre o Big Brother.
E isso, no entender do Rupert Murdoch, representa queda no faturamento. Nem que fosse por esse motivo, o New York Post não publicaria deliberadamente uma charge racista.
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Jornalista e professor da Faculdade Cásper Líbero