Abaixo do nome Jornal de Santa Catarina (Santa), edição de 16 de outubro, uma imagem se estende por toda a largura da capa passando da metade da página. Somos inevitavelmente tomados pela imagem de uma mulher que nos olha enquanto segura firme uma criança no colo. Seu olhar atento está na direção focada pelo fotógrafo quando registrou a imagem.
Na relação jornal e consumidor, somos nós que ocupamos esse lugar. No lado de dentro do enquadramento, traços de uma destruição, já, fora, a cena certa para disputar os olhares de consumidores ávidos por notícias fresquinhas.
A personagem em cena parece inquieta diante do enquadramento que duplicaria um recorte de sua vida depois de ser sacolejada pelas fortes chuvas. Quanto maior a tragédia, maior o valor-notícia. Mas, como fica a vida “tomada de assalto” para se tornar capa de jornal?
A mulher está entre casas humildes e ao lado de uma cama atravessada sobre um terreno inclinado. Somente depois, ao ler a legenda, ficamos sabendo do que de fato se trata: “O drama de 2011 se repetiu na quarta-feira: estrondo, deslizamentos de terra, parte da casa destruída e móveis perdidos.”
Em seguida, a manchete: “Como se vestir para a Oktober”. Os olhos se voltam imediatamente para os trajes da mulher em meio aos rastros de destruição. Entre a foto e a manchete, a pequena legenda fica quase ilegível. A Oktoberfest, criada em Blumenau/SC em 1984, por conta das enchentes de outubro, foi reduzida à matéria de etiqueta. A própria página da festa, no link que conta sua história, já não faz mais referência à enchente. Agora, a festa, na manchete, fez vazar água sobre a imagem de moradores que vivem o drama causado pelas fortes chuvas na região.
Qual traje vestir? É evidente que um conteúdo não tem relação com o outro. Mas é evidente também que estamos diante de uma moradora com trajes apropriados para enfrentar a situação. Poderíamos até dizer que não se trata de erro de diagramação. No entanto, o espetáculo a que se refere a manchete dá a dimensão da espetacularização da vida na foto convertida em valor-mercadoria neste produto à venda, que torna todos os conteúdos equivalentes.
A questão não é do conteúdo da matéria ao abrir o jornal, mas da capa do jornal que reúne conteúdos variados, descontextualiza os referentes num sistema para chamar a atenção do possível consumidor. Este é um exemplo de como o valor-notícia fica sucumbido ao apelo comercial. Quando o jogo de equivalência (nessa relação de igualdade entre elementos diferentes de um dado conjunto, neste caso, do sistema que se forma na capa) falha na percepção dos consumidores, é como se o próprio sistema em que ele mesmo está estruturado desmoronasse.
Diagramar é construir uma sintaxe visual
A diagramação de um jornal é o processo de construção da sintaxe visual, fazendo repousar sobre o papel-jornal: textos, linhas, formas geométricas, imagens, cores. A tinta dá corpo às formas que entram numa esfera virtual, a dos signos – é evidente que para sua completude é necessário passar da forma para o conteúdo, como no significado de uma palavra ou da significação de uma imagem.
Desde a invenção da prensa móvel, pelo alemão Johannes Gutenberg, em 1450, um longo caminho foi percorrido sobre o que poderíamos chamar de arte da composição ou, simplesmente, diagramação. Inicia-se com o repertório de desenhos das tipologias em conjunto de caracteres desenhados sob o mesmo estilo, divididos em corpos e gêneros. As humanísticas, como a fontes romanas, surgem no século 15, diferente das modernas, que só aparecem no século 19.
Consideremos ainda outra classificação de fontes importantes para os jornais, os tipos com serifa e sem serifa. A tipologia mais conhecida com serifa é a Times New Roman, classificada pelos prolongamentos que ocorrem no fim dos filamentos das letras. Essas fontes têm a função de produzir sensação de conforto visual, como no corpo das matérias, já que as serifas reduzem a distância entre letras e palavras e criam uma linha imaginária que ajuda o leitor a não se perder da posição da leitura – o que se faz desnecessário em título e legendas pelo tamanho do texto. Assim, um simples desenho de letra carrega consigo a herança de mais de meio milênio de história da imprensa.
Pouco mais de um século e meio depois da invenção da prensa no Ocidente, temos registros dos primeiros semanários e, com eles, abria-se um novo campo de partilha do sensível. O olhar foi aos poucos se habituando a textos divididos em várias colunas, assim como conteúdos diferentes numa mesma página, como sendo da natureza de um jornal. Numa longa duração, o jornal foi se modificando ao passo que novos dispositivos eram inventados. Formatos, qualidade de impressão, resolução, inclusão de imagens, de cores etc. Diagramar tornou-se um verdadeiro quebra-cabeça.
Mas, o jornalismo tal qual o conhecemos, constituindo-se como a “alma” dos jornais, foi um acontecimento do século 19 – o século do positivismo –, ao inventar a notícia como sendo um discurso objetivo que se diferencia do opinativo. A diagramação também ganhou ares de cientificidade. Saberes sobre quais áreas de uma página têm mais visibilidade (basta lembrar da importância da gestalt), assim como a natureza dos signos na arte de persuadir para exercer poder na sociedade. O que vemos em um jornal é, antes mesmo, a orquestração de um outro olhar que objetiva regular os nossos processos de significação. Esse outro olhar não é de um indivíduo, mas a extensão de um campo de saberes elaborado ao longo do tempo e corporificado por sujeitos que atuam nas instituições jornalísticas.
A diagramação tornava-se um saber/fazer complexo, mas, também, pela repetição criava automatismos visuais: um simples espaço maior entre um bloco de texto e outro bastava para o leitor identificar a passagem de um conteúdo ao outro; ou um retângulo cinza no fundo de um texto para caracterizar a retranca (sem mesmo que o leitor soubesse nomear as marcações gráficas) de uma matéria etc. O mesmo para diferenciar conteúdos a partir do corpo do texto, ou a partir do alinhamento.
Mas se, por um lado, os séculos de experiências com jornais subjetivaram uma espécie de sintaxe visual – no sentido que os leitores de jornais assimilam os sentidos das formas que compõem as divisões do jornal –, isso não significa displicência na hierarquia dos elementos. De fato, num grande jornal quase nunca se trata de displicência, há sempre algo a mais.
Quando a narrativa falha, o sujeito não se sustenta
A capa do Santa talvez nos leva a efetivar um antigo clichê na área, o de que “uma imagem fala mais do que mil palavras”. É evidente que a função icônica de uma foto é muito pobre, ela equivale ao sentido de denotação. E no jornalismo menos ainda se tem a dizer quando uma simples legenda regula todo olhar. Salvo quando o automatismo da racionalidade técnica falha. Aí sim, uma imagem rompe com as amarras da representação por semelhança e faz ruir um silencioso sistema imaginário de completude entre leitor e periódico. O que se abre daí é uma cadeia significante para reestruturar o campo simbólico que sustenta o próprio sujeito – esse rompimento como o que nos levaria a falar mais de mil palavras sobre a imagem, como um trauma em que o sujeito é mobilizado sempre a colocar algo no seu lutar para apaziguar (fantasiar) e tornar suportável a realidade. Não seria isto que fez com que as pessoas – me inserindo neste processo – falassem sobre esse infeliz encontro entre a imagem e a manchete?
O consumidor de um jornal se identifica com a realidade fabricada (com o recorte visual de um enquadramento, com a palavra nomeando o que se vê na imagem – legenda – e com a narrativa na matéria fazendo ver o que está ausente para o leitor, ou seja, o que não aparece na imagem), como se ele dependesse sempre de um outro para que seu próprio olhar pudesse ver a “completude” de algo que passa a fazer parte de seu campo simbólico. Quando essa narrativa de completude falha, o próprio sujeito consumidor falha. No caso do Santa, o que mobilizou a falha não foi da ordem dos conteúdos, mas de seu ordenamento estético, da diagramação e da perversidade do sistema de valores que torna todas as coisas equivalentes. Na capa em questão, a equivalência da imagem com a manchete agrediu o próprio consumidor ao se deparar com a fragilidade com que seu campo simbólico é estruturado – de outorgar ao outro o poder selecionar o que é importante e de dizer a verdade como se ela existisse para além do discurso.
O outro como âncora do sujeito
De fato, o sujeito identifica-se com as imagens. Notadamente, em 1936 o psicanalista Jacques Lacan apresentou sua “teoria do estádio do espelho”, no qual descrevia que a criança de seis a dezoito meses reconhece triunfantemente a sua imagem especular. Antes disse, o que a criança via de si era somente partes de seu corpo, diferente do outro à sua frente. O reconhecimento especular como unificador da imagem do sujeito o coloca sempre em falta, já que é a projeção fora de si que o faz perceber como um corpo inteiro e não fragmentado.
Quando a imagem especular falta, a fantasia triunfante – de completude – já não se sustenta, levando o sujeito à experiência do corpo fragmentado. Talvez por isso, por mais que do ponto de vista lógico não há erro na diagramação da capa do Santa, ao levar em consideração aspectos subjetivos no qual o desejo de completude do sujeito faz sempre antecipar amarrações, a composição, além de espetacularizar a tragédia pelo jogo de equivalência, levou o consumidor a sentir sua própria fragilidade ao se deparar com ambas notícias que compõem o produto e que ele próprio é o consumidor. Essa é a cena traumática que incide o olhar e abre espaço para se falar exaustivamente, sem dúvida, mais do que mil palavras.
No plano psíquico, basta lembrarmos do fort-da, elaborado por Freud a partir da observação da brincadeira do seu neto, que, muito ligado à mãe, não chorava quando ela estava ausente (fort significava “foi” e da, pra lá). Freud observava que a criança tinha o hábito de jogar um carretel amarrado a uma linha para fora de seu campo de visão, para depois repetir o movimento de puxá-lo e tê-lo novamente em mãos. Movimento análogo ao de sua mãe, que saia de casa, mas sempre retornava. Tanto a mãe se apresentava para ele como imagem de completude, como o carretel, na brincadeira, funcionava como metonímia (Lacan) da mãe. A isso, podemos também chamar de estruturação do campo simbólico pelo outro, seja a mãe como início da série, seja pelo carretel, ou posteriormente, pelos jornais.
Foto e manchete sem relação
O que se viu no Santa é prática comum. Em alguns casos, uma infeliz coincidência, mas, sem dúvida, motivada pela lógica da equivalência e da notícia como mercadoria. Temos um outro exemplo, já antigo, mais importante em que o jogo da equivalência não parece ser uma coincidência, mas a indução de produzir uma possível realidade. Na capa do jornal Folha de S.Paulo, de 30 de abril de 2002, encontramos dois grandes apelos visuais – duas imagens (14,5 x 20cm). Elas relacionam entre si a tragédia. A primeira, na parte superior, na vertical, à esquerda, localizada no ponto inicial do olhar ocidental (este olhar se caracteriza pelo movimento da escrita e leitura que segue da esquerda para direita). A foto se refere a um ônibus em chamas. A segunda foto, localizada no meio da página para baixo, à direita (num breve olhar ao todo da página, deslizaremos do ponto superior, da esquerda, em direção ao rodapé da página, no lado direito) também ganha um lugar de destaque, na forma que está posicionada. Nesta foto, encontramos quatro homens carregando um corpo em direção aos militares. São dois apelos visuais e no campo textual uma grande chamada: “Bancos dos EUA veem risco maior com subida de Lula”. A relação entre signos diferentes se torna inevitável. Ao lado da grande chamada, a foto protesto. Abaixo, após nota referente ao PT, a foto dos quatro homens carregando um corpo. As duas fotos formam um “L” emoldurando e ilustrando o risco de um partido de esquerda com grande potencial de mobilização de massa chegar ao poder.
Como se vê, há uma sintaxe visual que se constitui em discurso que pode chocar, no caso do Santa, o consumidor no sentido de afetar seu campo simbólico. Mas há também o avesso dessa falha no jogo das equivalências dos conteúdos – ou seja, da redução de todo conteúdo em mercadoria – que é o seu par ideológico, como observado no caso da Folha, mas, claro, sempre atrás dos mantos da suposta objetividade.
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José Isaías Venera é jornalista e professor