Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quem tem medo da ficção?

Já é lugar-comum afirmar que as mídias mudaram radicalmente nos últimos anos. Com o advento das redes sociais, muitas vozes hoje ecoam – para o bem ou para o mal – com uma repercussão antes impensada. Por consequência, muitos temas, antes enredados nas tramas da invisibilidade, são hoje incluídos nas conversas do cotidiano, nem que seja para sustentar um monte de opiniões infundadas.

Também não é novidade alguma evidenciar aqui a participação dos meios de comunicação no agendamento destes assuntos entre as pessoas. Ao menos desde o início da pesquisa científica desta área, é algo que já temos como certeza: em grande parte das vezes, os veículos de mídia não nos dizem exatamente o que pensar, mas sobre o que pensar e o que conversar entre nós. Há um papel fundamental das mídias no compromisso de levantar certas discussões. Como diz o crítico Maurício Stycer em texto no jornal Folha de S.Paulo, no qual analisa a série Mister Braun (por uma triste ironia, uma das primeiras narrativas das grandes mídias centralizadas em um casal de negros bem-sucedidos), “a Globo dá sinais, enfim, de estar convencida de que a melhor maneira de combater o racismo é reconhecer a existência do problema”. Ou seja, falar sobre, talvez, seja mais importante do que exatamente se fala.

Entretanto, desde sempre nós tememos aquilo do que os produtos da mídia falam. São muitas as “cruzadas” virtuais que levantam discussões sobre a abordagem dada a certos assuntos e sobre as formas que algumas pautas são tematizadas. Creio que o levantamento destes debates costuma ser produtivo e ajude a evidenciar (e a regular) alguns discursos circulantes – por vezes, de forma velada – nos nossos meios. Por outro lado, há em alguns momentos um certo exagero e, ousaria dizer, um medo desmedido quanto ao que a ficção faz ou é capaz de fazer.

Esclareço: há algumas semanas, um debate ganhou certa repercussão nas redes quanto à caracterização de Romero Rômulo, protagonista de A regra do jogo, como um ativista dos direitos humanos. Para quem não acompanha a trama: Romero é um personagem complexo, que faz parte de uma facção criminosa, mas que mantém uma representação de fachada de um líder ativista que acredita no resgate dos seres humanos, mesmo quando são aqueles que se envolvem em atos criminosos.

A sexualidade das mulheres

Em certa cena, Romero tenta entrar em um presídio, a serviço de sua facção, e se apresenta como “membro da Anistia Internacional”, o que gerou críticas à novela e uma nota oficial da entidade, na qual repudia sua ligação com o personagem. A discussão nas redes acerca do fato foi bastante calorosa e levanta reflexões pertinentes quanto à função da ficção. Uma discussão semelhante foi trazida sobre a personagem Nelita (Barbara Paz), que perpetuaria um estigma negativo sobre as pessoas diagnosticadas com transtorno de bipolaridade. Unificando todos estes exemplos, a questão subentendida talvez seja a seguinte: enquanto narrativa ficcional, sem compromisso com a realidade – o que é evidenciado, como bem lembra a Globo, naquelas mensagens que encerram cada um de seus programas ficcionais –, a novela estaria livre para tratar daquilo como quiser, e quando quiser?

A própria A regra do jogo tem trazido certas discussões à tona por meio de suas personagens. Conforme já analisado em outro texto, a novela de João Emanuel Carneiro é primorosa em vários aspectos, que vão da qualidade do roteiro, a performance de seus atores e a fina capacidade de negociar com o público um texto que é simultaneamente simples e sofisticado. Para além da representação do personagem Romero Rômulo, há outros elementos menos evidentes na trama que também poderiam gerar um debate.

Vejamos, por exemplo, a personagem Adisabeba (Susana Vieira), uma ex-prostituta que é reconhecida por todos como “a dona do Morro da Macaca”. Há nesta personagem, evidentemente, uma forte consonância com os discursos necessários sobre o feminismo e à amplificação da voz das mulheres. Adisabeba é respeitada por todos os membros da comunidade e, a toda oportunidade, relembra a todos que é uma ex-prostituta, que não tem vergonha disto e que foi por esta profissão que conquistou tudo que tem. Seu discurso é prontamente reiterado por todos os que os cercam. Ainda que a personagem seja necessária e marque uma posição interessante no debate que hoje ocupa as mídias, há um excesso de didatismo e de pleonasmo na construção de Adisabeba que não faz jus à qualidade de A Regra do Jogo.

Mesmo que desempenhe um certo papel “pedagógico” ao público sobre o tema da sexualidade das mulheres, o discurso de Adisabeba, paradoxalmente, menospreza o espectador (como se ele não pudesse chegar à conclusão por ele mesmo) e revela o certo temor de tratar este tema nesta época em que ele adentra a opinião pública. Faz lembrar de um certo episódio de Seinfeld, em que os amigos Jerry Seinfeld e George Costanza são confundidos com gays por uma mulher em quem Seinfeld está interessado. Eles tentam a todo custo desconstruir esta impressão, mas sempre arremendam: “Não que tenha algo errado com isso (quanto a ser gay)”. De alguma forma, é esta a ressalva que todos parecem fazer (desnecessariamente, ao que me parece) quanto à história de Adisabeba.

O poder dos meios de comunicação

Outra personagem da trama que também, de alguma forma, tematiza esta discussão, é Indira (Cris Vianna), uma mulher poderosa que comanda a vida familiar que mantém com o marido Oziel (Fábio Lago) e os quatro filhos pequenos. Indira desempenha um papel de líder informal no Morro da Macaca, defendendo, inclusive, as mulheres que sofrem com maridos violentos. Suas cenas e falas também são sintomáticas dos discursos que hoje circulam. Em um diálogo com Tina (Monique Alfradique), a babá que contratou e que tem um caso com seu marido, Indira proferiu a seguinte fala: “Aqui na minha casa é o homem que apanha da mulher, e não o contrário. Aqui não tem essa história de Maria da Penha.” Haveria toda uma discussão sobre o tipo de discurso sobre o feminismo que uma fala como esta ajuda a difundir.

Vejamos: ainda que a construção de ambas as personagens talvez peque pelo excesso – pelo didatismo constrangedor em Adisabeba, pela visão meio leviana do direito das mulheres em Indira –, é preciso constatar que a inserção das temáticas relacionadas a elas em horário nobre é algo a ser destacado. Não obstante, creio ser necessário assegurar a independência da ficção. A construção de uma televisão de qualidade, conforme nos mostra o exemplo das grandes séries, se dá pela sofisticação de seu texto e pela confiança que se mantém com o público que a assiste – ninguém acusaria Breaking Bad, por exemplo, de ser uma série que faz apologia ao tráfico de drogas, ou que Tony Soprano, em The Sopranos, foi responsável pela inserção de uma geração no crime organizado.

Talvez a grande discussão aqui ainda seja a centralidade que mantemos em nosso imaginário quanto ao poder dos meios de comunicação, como se formassem uma instituição única e magnânima a determinar aquilo que sentimos, pensamos e falamos sobre. Como se nenhuma outra esfera – leia aqui: família, escola, trabalho, vida a dois – tivesse chance frente aos discursos que saem das mídias que consumimos.

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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha