Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ditadura de “evidência científica”

Em meio às preocupações que se seguiram à confirmação da tríplice praga transmitida pelo aedes aegypti, em dezembro outro receio irrompeu nas redes sociais. Os alertas anônimos de que o zika vírus também poderia atacar o sistema nervoso de crianças com até sete anos e de idosos. Prontamente, especialistas da área da saúde vieram a público desmentir essas versões. O vice-presidente de pesquisa e laboratório da Fiocruz declarou que não existe evidência científica que possa relacionar o vírus zika ao comprometimento nervoso em crianças menores de sete anos e com idosos .

A resposta pôs fim às dúvidas e mandou o assunto para o arquivo das redações, certo? Nem tanto. Ao menos para o jornalismo que não se limita à passividade de mero repassador de informação, aquela resposta não diz muita coisa. Não se trata de dar crédito a boatos, duvidar dos especialistas, alimentar o medo injustificado ou disseminar o pânico. Mas a afirmação de que “não há evidência científica” é um velho clichê que, em certas situações, mais inquieta do que explica. Quando vidas podem ser comprometidas, a falta de demonstração cartesiana dos riscos não significa que eles não existam. Nem torna peremptória a resposta da fonte a ponto de calar nossas interrogações mais íntimas.

Não podemos abandonar o exercício crítico que permite vislumbrar além da hegemonia do discurso científico. Temos de considerar que foi há apenas um século que a ciência reconheceu a teoria germinal da doença. Até então, a resposta de qualquer pesquisador a quem indagasse sobre doenças contagiosas e epidemias poderia ser a mesma fórmula genérica, pois não havia evidências científicas de que alguma doença pudesse ser transmitida de um ser vivo para outro através do contágio.

Na época, a microbiologia era uma criança. Atenta e curiosa, mas sem vacina. Então, enquanto não se chegava a uma conclusão científica em contrário, a peste negra, a tuberculose e a varíola faziam extermínios em massa. O saldo histórico dessas três pandemias foi além de 1 bilhão de mortes.

Essa discussão poderia pertencer ao passado, não fosse por um detalhe: a insuficiência do conhecimento científico persiste. E vai continuar. Imaginemos que há 35 anos algum repórter perguntasse aos infectologistas se as relações sexuais podiam transmitir algum agente capaz de destruir nosso sistema imunológico. Certamente a resposta seria nessa linha: “Não há nenhum fundamento científico.”

As possibilidades de risco

Eis o paradoxo. Ao mesmo tempo em que eles estariam certos se assim respondessem, sua informação em nada protegeria a vida de quem se expusesse ao vírus da Aids. Há apenas alguns meses, provavelmente muitos doutores achariam delírio dizer que o aedes aegypti tem alguma relação com microcefalia em recém-nascidos. Como sempre, muita gente teve de morrer para que o conhecimento científico reconhecesse tais evidências.

Por isso, o chavão já não basta. Chegamos a um tempo em que esperamos ver a vida e a dignidade humanas sobrepostas a formalidades, protocolos e retóricas. Nesse contexto, dizer que não há evidências científicas pode ser o mesmo que lavar as mãos ou, então, afirmar: “Não me comprometa.” Por isso, o repórter não deve se conformar com esse padrão de resposta, pois está diante da típica situação em que vale questionar as declarações genéricas, cobrar visão proativa e instigar a apatia protocolar alojada sob o jaleco branco.

Por mais que se queira evitar boatos, especulações e pânico coletivo, em momentos de ocorrências ou endemias não esclarecidas, o jornalista precisa ter consciência de que não basta saber que falta evidência científica para isso ou aquilo. Tão ou mais importante talvez seja discutir possíveis riscos e, sobretudo, os casos que possam sugerir esta ou aquela hipótese, na medida em que isso seja relevante para antecipar medidas preventivas.

O que mais interessa, afinal? Ignorar possibilidades de risco se não houver evidência ou buscar proteção se houver possibilidades de risco?

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João Ricardo Zini é jornalista