Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando os fatos assustaram os pessimistas

A economia brasileira deve continuar encolhendo em 2016, com mais desemprego e mais empresas quebradas, em novo capítulo de uma recessão iniciada em 2014 e já classificada como depressão ­por alguns analistas. Esse é o prognóstico do mercado financeiro, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).  Além disso, a inflação, embora menor que a deste ano, continuará bem acima do limite de tolerância fixado pelo governo, 6,5%.  A meta, 4,5%, poderá ser alcançada no fim de 2017, segundo estimativa tanto de instituições privadas quanto do Banco Central (BC).

Terrorismo da imprensa? Nem de longe. Os jornais têm acompanhado o desempenho da economia, muito fraco há vários anos, e até indicado as tendências de piora, mas as projeções citadas são normalmente produzidas pelas equipes especializadas de instituições do mercado, de entidades multilaterais e -é importante notar – do próprio governo. As autoridades, com exceção dos dirigentes  do BC, têm mantido por algum tempo previsões  mais otimistas que aquelas produzidas fora de Brasília, mas acabam, com certa demora, revendo suas contas.

As bolas de cristal citadas com maior frequência pela imprensa são  também aquelas consultadas semanalmente pelo BC em sua pesquisa Focus, conduzida nas sextas-feiras e divulgada na manhã das segundas. O relatório divulgado traz a mediana das projeções de economistas de cerca de cem instituições financeiras e consultorias. As estimativas do próprio BC são em geral publicadas em seu Relatório de Inflação, um amplo retrato da economia divulgado a cada três meses.

De acordo com a pesquisa Focus de 4 de dezembro, o produto interno bruto (PIB) deste ano deve ser 3,50% menor que o de 2014. O de 2016 será provavelmente 2,31% inferior ao de 2015. O setor industrial deve continuar com o pior desempenho, recuando 7,60% neste ano e 2,40% no próximo. A inflação de 2015 deve bater em 10,44% e a do ano seguinte em 6,70%.

Atribuir pessimismo aos autores dessas projeções seria até cômico. Na pesquisa de 2 de janeiro, as bolas de cristal indicavam para 2015 um crescimento do PIB de 0,50%, depois de uma expansão quase nula em 2014. A inflação ficaria em 6,569%, pouco acima do  limite de tolerância.  

Na semana seguinte, quando saiu a primeira projeção do PIB para 2016, com crescimento estimado de 1,80%, a expansão esperada para 2015 já havia recuado para 0,40% e a inflação esperada já estava em 6,60%. Mera mudança de humor? Nem tanto.  Cada nova informação indicava um resultado pior no ano recém terminado e perspectivas piores para os meses seguintes. O balanço de 2014 acabou apontando um crescimento de apenas 0,1%, número insuficiente para disfarçar a recessão já iniciada. Nos meses seguintes a perspectiva de um resultado pior neste ano seria confirmada e a estimativas para 2016 ficariam piores.

As projeções de inflação também ficariam gradualmente mais assustadoras.  As taxas mensais deveriam cair em meados do ano e em seguida voltariam a subir. No começo de novembro uma estimativa de 9,99% para o ano foi registrada no boletim Focus. Em 4 de dezembro a mediana já havia subido para 10,445. O relatório oficial de inflação divulgado poucos dias depois mostrou uma alta de preços de 9,62% acumulada de janeiro a novembro. Em 12 meses a variação já havia chegado a 10,48%, a maior taxa para esse período desde novembro de 2002 (11,02%).

Poucos  números ficaram, durante o ano, melhores que as projeções iniciais. Exportações e importações continuaram caindo, como em 2014, mas o tombo do valor importado foi maior que o previsto, por causa da recessão e da alta do dólar. Os dois fatores também frearam os gastos com viagens internacionais e assim afetaram a balança de serviços. Como resultado geral, o déficit em conta corrente, o registro mais amplo das transações com o exterior, diminuiu mais do que se esperava.

Também esse movimento foi acompanhado pelos especialistas do mercado e registrado na imprensa. Em 2014 o déficit em conta corrente chegou a US$ 103,60 bilhões. As primeiras projeções para o ano indicavam um buraco de US$ 77 bilhões. Havia, portanto, a expectativa de uma redução considerável. No início de dezembro já era de um déficit de US$ 64,40 bilhões, muito parecido com a nova estimativa do BC, US$ 65 bilhões.

A incógnita da taxa de juros

Entre 2011 e 2014, durante o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, os dados finais da economia, em cada ano, foram sempre piores que as estimativas iniciais dos economistas das instituições financeiras, das consultorias e dos centros acadêmicos de pesquisa. Na imprensa, mesmo os críticos mais severos da política econômica raramente formularam estimativas mais pessimistas que as das fontes habituais, até porque essas fontes são muito mais equipadas, tecnicamente, para produzir projeções. Muitas dessas instituições operam com modelos econométricos iguais aos do BC, respeitados por sua qualidade.

A imprensa, é claro, nunca se limitou a usar os números fornecidos pelas fontes –oficiais ou extraoficiais – tecnicamente mais qualificadas. Boa parte do material divulgado pelos jornais e pelos meios eletrônicos foi obtido em empresas, associações empresariais e organizações dos trabalhadores, como o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). Jornalistas frequentemente levantaram as avaliações de agentes de mercado e produziram, com base nesses dados, informações próprias. Além do mais, ninguém precisa valer um Nobel de Economia para prever uma retração do consumo quando o desemprego aumenta, o crédito se torna escasso e a inflação come rapidamente o poder de compra das famílias.

Mas a atividade  envolve muito mais que a produção de informações, comentários e análises. Parte importante do trabalho é a atualização do leitor  sobre discussões e teses de especialistas. Essa tarefa é bem exemplificada pelas muitas matérias publicadas, neste ano, sobre a hipótese da dominância fiscal, formulada inicialmente por economistas estrangeiros e incorporada no debate nacional.

Se a a dominância fiscal de fato estiver ocorrendo no Brasil, a política monetária será incapaz de conter a inflação alimentada pelo desajuste das contas públicas e, além disso, produzirá efeitos amplamente negativos. Em vez de frear a alta de preços, o aumento dos juros afetará o mercado cambial e a elevação do dólar acabará gerando mais pressões inflacionárias. Além disso, juros mais altos farão crescer a dívida pública e tornarão mais difícil a execução da política fiscal.

Essa tese é provavelmente rejeitada pelos membros do Copom, o Comitê de Política Monetária, formado por diretores do BC. Afinal, eles já indicaram a disposição de  aumentar os juros, mais uma vez, no começo do ano, se o exame dos números atualizados apontar o risco de uma inflação ainda mais intensa que a prevista há poucos meses. A taxa de 10,48% acumulada nos 12 meses até novembro parece favorecer a posição dos defensores de juros mais altos.

Não dá para acusar da imprensa de ter sido muito ranzinza ou muito pessimista em seu tratamento do noticiário econômico e das projeções para 2016.  Ao contrário: jornalistas têm sido até bonzinhos, quando negligenciam, nas coberturas, certos detalhes. Por exemplo: nem sempre o noticiário sobre a balança comercial apresenta com destaque a redução das importações de bens de capital, isto é, de máquinas e equipamentos. No entanto, esse detalhe é especialmente importante, quando se trata de avaliar o potencial de crescimento do País.

Esse potencial, segundo todas as estimativas conhecidas, diminuiu sensivelmente nos últimos quatro ou cinco anos. A economia poderá até pegar no arranque, antes do fim do próximo ano, mas qual será o crescimento possível nos dois anos seguintes? Pormenores desse tipo são especialmente importantes quando se pensa nas condições de retomada. A discussão sobre os entraves ao crescimento poderia ir muito mais longe e ocupar muito mais espaço e mais tempo nos meios de comunicação e no mundo empresarial.  De início, só haveria um dado promissor nesse debate: o reconhecimento de sua importância.

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Rolf Kuntz é colaborador do jornal O Estado de São Paulo e professor de filosofia política na USP