Guilherme Tuzi, de 34 anos, era dono de um bar às margens da represa e de um barco que fazia passeios turísticos. “Servíamos peixes. Toda a sexta-feira havia um forrozão para a comunidade. Eu e meu irmão tínhamos esse negócio havia três anos. A principal área de lazer da localidade é essa. Pegamos essa área bem largada, revitalizamos. O prejuízo é bem amplo, bem alto”.
Na entrevista (ver parte 2) , Tuzi sugeriu que haveria outros moradores de Santa Cruz do Escalvado que estariam sofrendo ainda mais do que ele com a desgraça do lago. Trata-se das comunidades ribeirinhas de São Sebastião do Soberbo, que foram expulsas dali há pouco mais de uma década e remanejadas pela Vale morro acima. Essa comunidade tinha no rio, antes de seu represamento, sua principal atividade econômica, o garimpo artesanal, individual. Agora a lama expulsou os últimos sofridos garimpeiros que restavam, espécies de mendigos do minério, à procura das migalhas da riqueza das Minas Gerais.
Paulo Ananias de Souza, de 62 anos, é um deles. Levantando uma obra em Nova Soberbo para tentar recuperar as perdas financeiras causadas pela lama, Paulo conversou conosco. Disse-nos que desde 1982 está à procura das pequenas pepitas de ouro que ainda sobravam no rio.
“Agente usa o rio desde que o rio é rio e desde que há moradores por aqui. Veio esse incidente para completar a dor do coração da gente. A gente está bem ressentido. Eu tirava meia [sic] grama de ouro por dia. Uma grama em um dia bom. Vivemos dessa pequena extração. O ouro do rio aqui já era pouco, mas é o trabalho que vínhamos fazendo para o sustento. Agora não tem como. O que a gente fica ressentido é que as oportunidades são tiradas da gente para passar para uma grande empresa. Às vezes, tentam nos impedir de fazer a extração pequena, mas quando uma grande empresa chega, com as propostas delas, o governo facilita para eles”.
Mesmo diante da desgraça, a esperança luta para se renovar. Jogado entre árvores de troncos despedaçados, um singelo troféu quebrado sobressaía à tragédia. A inscrição nele registrava: “4º Torneio de Truco do Bar da Sandra — vice-campeão”. Não havia dúvidas, o prêmio resistira à caótica viagem de mais de 70 quilômetros e agora servia de memória de um tempo de alegria.
ERA DOCE E SE ACABOU
Ao encontrar o Rio Doce, a lama iniciou uma torturante viagem a nordeste em direção a Ipatinga e Governador Valadares. O rio, que já era matado há tempo por lá, agora é morto de vez.
Em direção ao Vale do Aço, o Rio Doce margeia o Parque Estadual do Rio Doce, um dos últimos redutos de Mata Atlântica numa região onde a palavra “floresta” tornou-se sinônimo de plantação de eucalipto. O reduto foi objeto de pesquisa de naturalistas europeus no século XIX, em expedições promovidas pelo próprio dom Pedro II. A viagem da lama pelo parque fica longe dos olhos da maioria, uma vez que o rio corre justamente do lado de mais difícil acesso ao Parque. Mais do que apenas peixes, a direção da unidade mostrou preocupação com a perda da vegetação aquática, uma biodiversidade que pode demorar séculos para ser reconquistada.
Em vídeo desolador, moradores da região do município de Pingo Dágua, logo no começo do parque, mostram o tamanho do desastre ambiental.
Matança de peixes no município de Pingo Dágua.
Matança de peixes no município de Governador Valadares.
Como indica seu nome, há intensa atividade siderúrgica no Vale do Aço, às margens do Rio Doce, como no caso da ArcelorMittal Inox Brasil, no município de Timóteo, ou da própria Usiminas, em Ipatinga, cidade de 255 mil habitantes. A pouco menos de um quilômetro de distância do robusto leito do Rio Doce, a Usiminas despeja fumaça preta no ar. A poluição mata o rio há tempos. Desde a década de 80, o Rio Doce não é usado para banho em Governador Valadares, próxima parada de nossa jornada.
Centro urbano de 275 mil habitantes, Governador Valadares é a mais populosa entre as cidades no caminho da lama. Moradores dos bairros que margeiam o RioGovernador Valadares, com 275 mil habitantes, é a mais populosa entre todas as cidades no caminho da lama. A população que vive nos bairros que margeiam o Rio Doce admite que nem sabia que tantos peixes grandes resistiam à poluição do local. Ficaram sabendo quando, mortos, eles começaram a boiar. No entanto, mais do que lamentar a fauna perdida, a população de Valadares está preocupada com o abastecimento de água. Foi tanta sujeira no rio que o Serviço Autônomo de Água e Esgoto da Prefeitura interrompeu a captação de água na única fonte da cidade, logo que a lama chegou ao local, cinco dias após o desastre.
Nos dias em que estivemos em Governador Valadares, a jornada em busca do líquido vital nos mostrou como é a vida de brasileiros que vivem a seco, e ainda como será o futuro de um país cada vez mais aflito pela escassez de água. Em poucas palavras, o rico irá pagar, e o pobre irá sofrer para carregar a saciedade da sede de sua família. Foi essa a inequação que presenciamos por lá. As fotos são de Gustavo Ferreira.
Na casa de uma numerosa família baiana, conhecemos o casal Maria Eunice, de 52 anos, e Enildo de Jesus Santos, de 55. Para tomar banho e lavar a roupa de toda a semana, que ainda seria batida no leito de um outro rio, eles estocavam água em baldes e tinas. O maior problema, no entanto, era para o serviço profissional de Maria, a faxina. Naquela semana que passara, quatro das cinco patroas que a contratavam para uma limpeza diária, cancelaram a limpeza. Assim, a diarista ganhou apenas 1/5 do que calculava em sua semana.
Com um português enfático, que vamos transcrever para tentar reportar o vigor de suas palavras, ela reclamava, aflita: “Na hora de dar água, a prefeita [Elisa Costa, do PT] só dá água para alguns. Só para os hospitais. E a população fica cuma? Meu trabalho é à moda água! Nós é faxineira! Veve do suor, tem que ter água para trabalhar.”
Outro que suava para conseguir água era o vendedor Alex Júnior de Souza, de 24 anos e com quatro filhos em casa. Encontramos Alex à beira de uma imensa caixa d’água de 20 mil litros, equilibrando dois baldes em seu guidão da bicicleta: “Já é a décima vez que venho hoje. Quero aproveitar hoje que é sábado, porque trabalho durante a semana. Já deu para lavar roupa e agora acho que vai dar para tomar banho.”
Enchendo a caixa d’água a partir da doação de um vizinho que possuía um poço artesiano, o piscicultor Esdras Rulon, de 32 anos, engoliu o choro: “Irresponsabilidade muito grande da Samarco. Pessoal tá visando só lucro, lucro, lucro. Esquece de todo o resto. Irreparável! Não vai ter como! O transtorno é muito grande. Eu tenho uma fazenda de criatório de peixes, quase 400 mil peixes. Eu quase não tô dormindo de medo que a lama invada minha fazenda ali. E aqui tô preocupado com esses mil litros de agora já preocupado com os próximos mil litros de depois. E se o poço dele secar? E se a bomba parar de funcionar? Hoje é sábado, eu queria estar na cama descansando, tô aqui procurando água. Pelo amor de Deus, me ajuda, ô”.
A batalha pela água para quem tem dinheiro é bem mais fácil. Não era raro ver gigantescas camionetes carregando caixas d’água inteiras em suas caçambas. Caminhões-pipa abasteciam hotéis e prédios confortáveis. Por R$ 50, era possível encher uma caixa d’água de 800 litros. Em rodas de classe média, jovens falavam com naturalidade sobre a necessidade de usar pratos e talheres plásticos nestes dias. Sabemos que não são todos que têm dinheiro disponível assim.
Prova disso é a fila que se formou na distribuição de garrafas de água mineral, oferecidas pela própria Samarco, e distribuídas com o auxílio do Tiro de Guerra, instituição ligada ao Exército. Na manhã de domingo, quinto dia sem água em Valadares, três mil pessoas amanheceram na maior das dez filas dispostas pela cidade. E olha que cada pessoa poderia pegar apenas seis garrafas de um litro e meio. Algumas senhoras já velhinhas choravam por não conseguirem carregar os 9 quilos de água em seus braços.
A MAIS COMPLEXA DAS MORTES, A MORTE KRENAK
Em Resplendor, os indígenas Krenak perderam aquilo que as palavras ainda não dão conta de contar
Nenhuma experiência de nossa viagem foi tão impactante quanto visitar a tribo dos índios Krenak, no município de Resplendor, já bem próximo da divisa entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. O caminho impõe a travessia de pontes que davam a dimensão da imensa largura do rio — mais de 500 metros em alguns trechos. A trilha de chão batido até a tribo ladeava a Estrada de Ferro Vitória-Minas, mais uma personagem desta triste história, passagem para o minério extraído em Minas rumo aos portos do Espírito Santo. Chegamos à tribo apenas dois dias depois de a lama ter destruído o Watu, nome dado pelos indígenas ao seu querido rio. Chegamos na tribo em pleno velório e fomos recebidos por Batik Krenak, pintado de preto desde a barriga até os lábios inferiores.
“O Watu é fonte para tudo na vida dos Krenak. Desde o banho, a caça, a pesca, principalmente a questão religiosa. A gente tem uma relação forte com o rio, o rio Watu, a gente tem a consideração de que o rio é uma mãe nossa. Com tudo isso que aconteceu, a comunidade Krenak decidiu tomar uma decisão [de sentar sobre os trilhos do trem da Vale]. A gente não pode ficar nesta situação. Os responsáveis têm que vir aqui e têm que conversar, para saber como nós vamos viver daqui para frente. Nós estamos aqui velando o rio, já que ele está morto. Eles acharam que mataram só o rio, mas nos mataram também.”
A violência sobre o Rio Doce não foi a primeira imposta pelas grandes empresas ao povo krenak. A ferrovia, mais de um século atrás, já havia matado parte da cultura krenak. Segue Batik: “Essa ferrovia é antiga aqui no nosso território. Ela corta o nosso território há mais de cem anos. Mas antes disso os krenak já estavam aqui e não havia esse problema. Aqui era mata e nosso povo, até então, sempre viveu em paz. Logo após a construção desta estrada de ferro, veio o problema todo, acabou com nossa floresta, não tem mais mata. Hoje, mais uma vez, nós fomos afetados. Levaram nossa floresta e agora nosso rio também. A gente precisa da água para beber, para nos alimentar, para tudo” .
Djanira Krenak, a matriarca da tribo, nos recebeu com um ramo de erva nas mãos e o olhar perdido. Liderança moral e religiosa na comunidade, é ela, por exemplo, quem batiza todas as crianças nascidas na aldeia.
“É como quem mata gente. É a mesma coisa. Matou o rio, matou o peixe, matou a cobra da água, que é a sucuri. O rio é tudo para nós. Ele é sagrado, faz parte do tudo, da nossa religião, onde a gente ensinava a criança nadar de um lado a outro. Os parentes que já morreram também fazem parte do rio. Acabaram com o nosso povo
“Antes de deixarmos a tribo, o povo krenak quis mostrar sua força sobre os trilhos do trem e, para isso, entoou uma canção de luta. Comovidos, nos despedimos a tempo de ver de frente a força do protesto. Parada perto do centro de Resplendor, uma imensa locomotiva da Vale, com vagões a perder de vista, recheados de riquezas da terra, somava dias de prejuízo — um prejuízo milionário, mas certamente muito menor do que aquele provocado pela Vale na tribo krenak. Afinal, o quanto vale aquilo que não tem preço?
A LAMA DEIXA A SECA AINDA MAIS SECA
Na divisa com o Espírito Santo, no município de Aimorés, acompanhamos a chegada da lama à cidade. Depois de ensinar tantas formas de morte, agora a lama se preparava para matar o gado de sede e as sucuris de desespero.
Em Aimorés, novamente encontramos brasileiros descontentes com o destino do Rio Doce. Motivo: construída há uma década, a hidrelétrica de Aimorés afugentou peixes e separou comunidades próximas. Vizinhos viraram amigos distantes, famílias foram divididas ao meio por um imensa represa criada ali. Seu Antônio, de 82 anos, é uma dessas pessoas. Filho de um soldado alemão que lutou na II Guerra, há seis décadas vive no local. No caminho da represa a ser inundada, negociou sua antiga propriedade com a Companhia Energética de Minas Gerais, a CEMIG, e com o dinheiro pôde comprar um terreno maior morro acima, perto da antiga casa.
A propriedade rural que visitamos, bem no fim de uma estrada de chão, já viveu uma época próspera, repleta de plantações e, principalmente, de gado leiteiro. Hoje, a mais dura seca de toda uma vida perturba quem muito bem poderia descansar em paz, ao lado da esposa Elci. Com o pasto ressecado, só no último mês, 20 cabeças de gado morreram de fome ou foram sacrificadas. A alternativa que restava para saciar o gado, a água do Rio Doce, agora está virada em lama, e as expectativas são as piores possíveis.
E pensar que a Samarco confessa em seu “Relatório Anual de Sustentabilidade”, que usou em 2014 nada menos do que 29,5 bilhões de litros de água, 74% acima do registrado no ano anterior. O volume daria para encher 12 mil piscinas olímpicas e, obviamente, saciar a sede da gente e dos bichos.
A vegetação seca, o rio morto e as tantas lamúrias que ouvimos ao longo da jornada não tinham fim. Tristes, ainda tivemos tempo de ouvir uma nova história, digna de tempos apocalípticos. Fomos alertados para termos cuidados com ataques de sucuris, a cobra d’água, que frequentemente supera os 4 metros de comprimento. A lama havia provocado a falta de oxigenação adequada na represa e, assim, as tantas sucuris da região estavam fugindo da água, lutando pela vida, subindo os morros em fuga.
Sem respeitar as fronteiras que o humano criou, a lama mineira, que é brasileira e internacional, vence os limites de Minas Gerais, estado-Pai da mineração nacional, e agora desgraça um outro Filho, o Espírito Santo.
O DESASTRE CRUZA A DIVISA
Demorou quase duas semanas a agonia dos capixabas. Quando a lama chegou, tudo o que de pior se previa, se confirmou.
O primeiro município capixaba a receber a lama foi Baixo Guandu, na tarde da segunda-feira, dia 16. Cinco dias antes, o prefeito da cidade, Neto Barros (PC do B) encheu as mineradoras de críticas e ameaçou utilizar as máquinas do município para bloquear outra estrada de ferro da Vale em protesto com o desastre. Não se viu nem em Dilma Roussef (PT), nem no prefeito de Mariana Duarte Júnior (PPS), nem nos governadores de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT) ou do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB), uma posição de estadista como a de Neto Barros.
“A Samarco, ou seja, a Vale e a BHP precisam se mostrar mais interessadas em resolver esse problema. É o maior desastre ambiental da história do nosso rio, há elementos na água, já em Valadares, que está descendo o rio e vai nos encontrar e ir para o oceano. Elementos químicos como manganês, arsênio e alumínio, coisas que não são absorvidas pelo organismo humano estão nos rejeitos. Não se tinha um plano de contenção para esse tipo de desastre”, declarou o prefeito.
Quando a lama chegou em Baixo Guandu, Neto subiu sobre os trilhos, com a ajuda das máquinas. A Justiça conseguiu liberar a estrada em menos de duas horas. O desastre matou peixes gigantescos e interrompeu o abastecimento de água, assim como na vizinha Colatina, onde o rio é cenário fundamental da cidade.
E o caos tomou conta de Colatina
Por Egle Bartoli, especial para os Jornalistas Livres e Greenpeace Brasil
Em Colatina, cidade capixaba de 122 mil habitantes que depende exclusivamente do Rio Doce para o abastecimento de água, o cenário era de corrida desesperada por água mineral
Em 21 de novembro, sob o sol de mais de 30 graus, chegamos à cidade e nos deparamos com o Rio Doce já imundo e com a falta de água em todas as torneiras da cidade. Nos locais públicos, os banheiros encontravam-se interditados, porque não havia água para a descarga.
A Samarco foi obrigada a garantir o abastecimento da água potável e mineral na cidade por ordem judicial. Para acatar a decisão, a mineradora espalhou pelos bairros da cidade reservatórios com capacidade de 10 mil litros, que deveriam ser abastecidos duas vezes por dia com água potável. Na prática, o que se viu foi algo bem diferente disso. Pessoas relatavam que a água servida cheirava mal e causava alergias na pele.
“A água das caixas é suja, tem um cheiro de cloro e esgoto, causa coceira para tomar banho e está empretejando as roupas brancas. Para piorar, tem muito cisco na água e ela tem de ser peneirada para ser usada. Não tem condições de beber aquela água”, relatou-nos Muriel, moradora do bairro Perpétuo Socorro, que liderava um protesto na sua comunidade, reivindicando a entrega de água mineral que havia dois dias não ocorria.
Apesar da presença do Exército para garantir a distribuição de água mineral de forma organizada, o que vimos é que não existia um plano, alguns bairros eram mais beneficiados do que outros; não existia controle de quantidade de litros de água entregues a cada pessoa; os horários de entrega não eram respeitados e não havia organização das filas. Era só o caminhão com a água potável chegar para distribuir as garrafas, e começava um tumulto, guerra de todos contra todos.
“Era uma baderna. Na quinta-feira (18), só metade das pessoas que estavam presentes, cerca de 2.500, conseguiu pegar água, porque não mandaram caminhões suficientes”, relatou Wilson, vendedor ambulante de galões para armazenagem de água.
“Muitos idosos e pessoas com problemas físicos não conseguem carregar a água. Eles não podem descer até o lugar onde é feita a entrega e, assim, ficam sem nada para beber. O pior é que eles [os responsáveis pela entrega] falaram para a gente que quem não tiver carro ou moto que arrume um jeito de pegar a água porque é assim que vai ser feita a entrega”, alerta Muriel.
“Meu pai está na cadeira de roda, em cima de uma cama, não tem água pra nada, não tem água na torneira. Ontem distribuíram água mineral e deram uma garrafinha só, tá uma crise feia lá no bairro Ayrton Senna. Não tem dinheiro pra comprar água mineral”, desabafa uma senhora que estava retirando água potável de uma das caixas d’água espalhadas pela cidade.
Neste mesmo dia foi marcada a entrega de água mineral no cais do rio às 15h, onde uma fila gigantesca com cerca de 2.000 pessoas foi se formando. Famílias inteiras juntas, para conseguir carregar o máximo de água possível. Eram mães com bebês de colo, idosos, jovens, todos aguardando a distribuição.
Sem a água do Rio Doce, as autoridades de Colatina foram buscar água nas lagoas dos municípios vizinhos. Tratada, essa água foi distribuída à população. Na cidade de Marilândia, cerca de 150 caminhões-pipa eram carregados por dia com a água da Lagoa Batista. O mesmo ocorreu em outras lagoas da região, ameaçando-as de esgotamento, com mais prejuízos ainda para a fauna aquática da região. Na terça-feira (24) a situação em Colatina ainda era tensa, moradores do bairro de Columbia protestaram contra a falta de água fechando a BR-259 por cerca de duas horas. Para coibir a manifestação foi chamada a tropa de Choque da polícia que atirou balas de borracha contra a população e prendeu oito pessoas, que foram liberadas.
Enquanto a situação não estiver normalizada a Samarco é obrigada a manter a entrega de água mineral e água potável por caminhões-pipa como determina o Termo de Compromisso Socioambiental (TCSA) preliminar assinado pelo Ministério Público do Espírito Santo, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho e a mineradora.
O governo local informou que o resultado da análise da água do rio Doce, depois de passar por tratamento, encontra-se dentro dos padrões estabelecidos pelo Ministério da Saúde e que a captação já foi retomada. Para clarificar a água, está sendo usado um floculante natural, que força a precipitação da lama dissolvida.
O Velório do Rio Doce em sua foz
Por Egle Bartoli, especial para os Jornalistas Livres e Greenpeace Brasil
O menino com seu olhar doce se despedia do rio que, também Doce, aguardava a lama que escureceu suas águas e decretou sua morte. Assim como Lucas, que tocou a água com suas mãos e pés, talvez pela última vez, a população de Linhares velou e se despediu do Rio Doce no dia 18 de novembro, um dia antes de a lama tóxica da mineradora Samarco invadir as águas da região, santuário de reprodução de tartarugas e outros tantos seres vivos.
Neste mesmo dia, no cais de Linhares, uma antiga placa já parecia antecipar a tragédia: “Sou vida, gero vida. Deixe-me viver.” Assina: Rio Doce. Em torno da placa, curiosos, pescadores, jornalistas, biólogos, mulheres, crianças, todos observavam os pequenos barcos de pescadores que chegavam com caixas de isopor repletas de exemplares de peixes típicos da região, como o charuto, a moreia preta e o pitu, entre outras.
Chamada de operação “Arca de Noé”, a iniciativa do Ministério Público Federal do Espírito Santo e do Ministério Público Estadual em parceria com associações de pescadores e com entidades ambientais demonstrava o carinho pelo rio que atravessa e faz parte da história da cidade. Como no antecedente bíblico, tratava-se de salvar espécimes nativas de um dilúvio (agora, um dilúvio de lama), a fim de que elas repovoem o mundo quando a bonança voltar. O que se quer é evitar a possível extinção de tantas espécies endêmicas no rio.
Depois de serem pescadas no rio Doce, as amostras foram recolhidas pelos representantes do IFES (Instituto Federal do Espírito Santo), que trouxeram em seu carro os equipamentos necessários e um tanque com água preparada para receber os peixes. Os espécimes foram então despejados sob os olhares atentos das pessoas que cercavam o carro oficial.
Em seguida, as amostras dos animais foram encaminhadas à sede do órgão que as classificou e separou, na esperança de que um dia o Rio Doce renasça e estes peixes possam voltar a viver em suas águas. Esta mesma medida foi realizada em toda a região.
É incrível o silêncio que se alastra pelas cidades, agora que o rio está prestes a atingir o mar. Se a tragédia do rio Doce começou com um imenso estrondo, o estrondo da ruptura das barragens, agora o que incomoda é o silêncio opressivo. Em silêncio, como em um velório, a vila de Regência, no município de Linhares, onde as águas do rio Doce se encontram com o mar, é só tristeza. Todos os cantos deste pedaço idílico da terra lamentam a perda do rio.
O local, que vive da pesca e do turismo, esperava a lama como quem espera pelo desenlace final. Como nos relatou Wesley do Nascimento, pescador local: “É como se estivéssemos na UTI, só esperando a morte chegar”.
Os pescadores da vila estavam desolados e desesperados diante da situação, sem apoio de nenhuma autoridade para criar um plano que pudesse garantir sua sobrevivência, já que desde o dia 9 de novembro foram proibidos de pescar, tanto no rio como no mar, sob a ameaça de serem presos caso descumprissem a medida. “Não sei se vou estar vivo para voltar a pescar neste lugar um dia”, disse Wesley.
“Desde o dia 9 deste mês estamos proibidos de sair tanto para o rio quanto para o mar. Então, tudo vai dificultando, porque as contas chegam, conta de água de energia e não tem como a gente pagar porque não temos mais de onde tirar o sustento. Fomos proibidos mesmo, o que foi passado pra nós pescadores foi que se nós saíssemos a gente ia ser preso tanto no mar pela Marinha tanto no rio pelo IBAMA. Estamos sendo tratados como bandidos. Estamos vivendo de cesta básica, doações, mas chega só o básico, arroz, feijão uma lata de óleo e mais nada.”
Diante da situação, muitos pescadores se viram obrigados a trabalhar temporariamente para seus algozes, contratados que foram pela própria Samarco para colocarem boias de contenção na água. Segundo a mineradora, a providência impediria o avanço da lama.
Ainda que descrentes, por uma questão de sobrevivência os pescadores aceitaram colocar em prática o plano da mineradora para tentar minimizar o impacto ambiental na vila. Um deles deixou clara a falta de confiança nas medidas da Samarco: “Eles querem colocar esta boia — que é pra conter petróleo derramado — para conter lama, e é óbvio que não vai resolver nada. A gente é pescador e eles acham que a gente é ignorante, mas na verdade a gente não é. Essa medida não tem lógica, se uma coisa é pra conter petróleo — que fica por cima, na superfície — eu acho que não resolve nada para segurar a lama que está em toda a água”.
Ele tinha razão.
A prática da pesca e a sobrevivência por intermédio deste tipo de trabalho estão ameaçadas. Ninguém tem ideia de quando será possível pescar e consumir o peixe do Rio Doce ou do mar que recebeu a lama tóxica.
Am colega faz um apelo e pede atitude das autoridades: “Tomem uma providência, apareçam pra ver a real situação da coisa, porque eles já colocam milhões no bolso enquanto isso os mais prejudicados somos nós que somos os mais fracos, a classe fraca, o pescador, o ribeirinho, não só na área de pesca, mas tem muitos outros que tiram o sustento do rio de outras formas, que eles tomem uma atitude, porque nós vamos viver de quê? E nossos filhos?”
Neste mesmo dia, enquanto estávamos entrevistando os homens da pesca, a lama chegou em Linhares. Era o começo da tarde do dia 19 de novembro. Sobre a ponte, dava para ver o rio, agora maciçamente marrom.
No cais, um aglomerado de gente acotovelava-se para ver de perto a tragédia. Agora, ninguém estava nos barcos, nenhum voluntário salvava peixes, só havia uma mulher lavando roupa nas águas sujas como quem não quer aceitar que a rotina será outra a partir de agora.
E agora, o que esperar? A morte dos peixes, a contaminação das águas da região, da vegetação, a fuga dos animais que se alimentavam das águas do Rio Doce? No céu, bandos de milhares de gaivotas atiçavam-se em sobrevôo frenético, sem saber que não haverá amanhã.
No domingo, dia 22, a mais de 700 quilômetros de distância de onde tudo aconteceu, o rio Doce, vermelho de lama e ferro, sem vida, lançou sua imundície no mar verde. A diferença de densidade e temperatura entre os dois fluidos fez com que eles se não se misturassem por um bom tempo. E formou-se um desenho sinistro, que lembrava uma imensa bandeira com a logomarca da Companhia Vale, sócia com a BHP Billiton do maior acidente ambiental da história do Brasil.
Por último, Vale lembrar os versos de João Cabral de Melo Neto em “Morte e Vida Severina”.
E foi morrida esta morte,
irmãos de almas,
essa foi morte morrida
ou foi morte matada?
Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta morte foi matada,
numa emboscada”.
Veja também a parte 1 e a parte 2, da reportagem especial “Do lucro a lama: uma viagem de Mariana ao fim do mundo.
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Caetano Manenti é jornalista do projeto Jornalismo em Pé.