Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Veja


TELEVISÃO
Marcelo Marthe


Gay e patético


‘Numa cena que se verá em breve na novela A Favorita, o playboy Orlandinho (Iran Malfitano) será internado à força numa clínica de desintoxicação. E não por causa de drogas. Seu pai, um fazendeiro conservador, se assustará com algo que a essa altura já ficou óbvio no folhetim das 8 da Globo: as dificuldades de Orlandinho em esconder seus impulsos homossexuais. O rapaz é piloto de Fórmula 3, luta jiu-jítsu e vive cercado de belas mulheres. Tudo pose: ele arrasta sua cabeleira de jogador de futebol argentino (obtida à custa de escova progressiva) para cima de outro homem, Halley (Cauã Reymond). O golpista vem se passando por um tal de Bruninho, amigo que Orlandinho não vê há tempos. A megera Alícia (Taís Araújo), ex-noiva do primeiro, descobriu a farsa e vem obrigando Halley a se fingir de gay, com salto alto, roupas coladas e batom – o que desperta a libido do outro. Orlandinho já quis massagear as costas do colega, comprou blusinhas para ambos e sinalizou que gosta de ‘conteúdo’. ‘Gente da elite, como eu e você, tem de estar aberta a tudo. A nossa alma é muito sensível’, discursou (ele retornará da clínica supostamente ‘curado’ disso). Orlandinho é um gay enrustido – e patético. Esse detalhe faz dele uma novidade nas novelas das 8. De personagens tabus, os homossexuais se converteram num clichê nessas novelas nos últimos cinco anos – e sempre sob enfoque positivo. Assim como investe num clã negro nada abonador, o noveleiro João Emanuel Carneiro também aí vai contra a cartilha do politicamente correto. ‘Por que as novelas têm de ter só gays bonzinhos? Acho isso uma bobagem’, diz.


Não é a primeira vez que uma novela das 8 conta com um gay enrustido (nem a única atualmente a tocar no assunto: em Os Mutantes, da Record, Claudio Heinrich faz um tipo assim). Em Brilhante (1981), de Gilberto Braga, o ator Dennis Carvalho já vivia um pianista beberrão e reprimido pelos pais por sua condição. Havia uma razão até justificável, contudo, para ele não sair do armário. ‘A censura do regime militar não permitia sequer que se mencionasse a palavra ‘homossexual’.’, lembra o especialista Mauro Alencar. O caso de Orlandinho é diferente. A intenção de Carneiro é denunciar a hipocrisia. ‘Sei de playboys enrustidos que circulam com beldades nas altas-rodas só para manter a fama de machão’, diz. As referências ao ‘mundinho’ vão além. Os personagens de Taís Araújo e Cauã Reymond já aludiram a um notório reduto GLS paulistano. O noveleiro explica que fez pesquisa de campo: ‘Adoro aquela boate’.’


CINEMA
Isabela Boscov


Esquerda, adeus


‘Em décadas de carreira premiada no teatro e no cinema, o dramaturgo e cineasta David Mamet, de 60 anos, se tornou uma das grandes vozes artísticas americanas – na capacidade de ver seus personagens pelo lado mais cruel (ou realista, seria possível dizer), nos diálogos incisivos e repletos de profanidades, e na militância à esquerda. Neste ano, contudo, Mamet protagonizou duas guinadas inesperadas. A primeira, que lançou ondas de choque por todo o meio intelectual americano, veio na forma de um artigo publicado em março no Village Voice. Nesse artigo, que recebeu o título provocador de ‘Por que não sou mais um liberal em morte cerebral’, ele renunciou ao pensamento de esquerda por considerá-lo removido da realidade. O mundo, argumentou Mamet, não é justo e nunca será, como querem os esquerdistas (ou liberais, no vocabulário político dos Estados Unidos), porque os seres humanos são imperfeitos – mas, no mundo real do dia-a-dia, isso não impede que continuem a interagir e progredir. A segunda guinada está em Cinturão Vermelho, desde sexta-feira em cartaz no país, que tem no elenco Rodrigo Santoro e Alice Braga e traz o primeiro herói de fato criado pelo diretor: o lutador de jiu-jítsu (o próprio Mamet é um praticante do esporte) interpretado por Chiwetel Ejiofor, que acha que toda competição é uma forma de corrupção – mas que, a certa altura, terá de ‘descer da montanha’. A seguir, trechos da conversa que Mamet teve com a editora Isabela Boscov sobre política, cinema e jiu-jítsu.


Em seu artigo no Village Voice, o senhor diz que abandonou o ponto de vista da esquerda, que descreveu desta forma: ‘O mundo está todo errado e precisa ser corrigido a qualquer custo’. O que isso significa na sua vida prática? Antes de mais nada, vale dizer que o artigo ficou famoso em parte por causa do título ‘Por que não sou mais um liberal em morte cerebral’ – que o Village Voice inventou. Não agradeço a eles, já que o título deu ao texto um caráter inflamatório que eu não pretendia. Isso posto, a questão não é o que mudou na minha prática, mas como mudou a visão que eu tenho dela.


O senhor pode dar exemplos? Como quase todos os liberais americanos, consumo produtos de corporações e muitas vezes anseio por eles. Então, por que sempre vociferar contra as grandes empresas e dizer que são a encarnação do mal? Percebi que nem tudo está sempre errado à minha volta. Que aceitar uma sociedade de livre mercado é muito mais condizente com a minha experiência de vida do que a visão que eu mantinha antes – a crença de que uma sociedade em que o estado intervém é melhor. E ainda que não posso abominar todos os que são de direita, porque convivo com eles no trabalho, na reunião de pais e mestres, na minha rua, e gosto de muitos deles – só não sei quem são exatamente, porque não ando pela rua exigindo credenciais políticas. E ninguém deveria fazê-lo. Os Estados Unidos foram construídos sobre a idéia de que as diferenças podem e devem conviver. Foi isso que fez o país funcionar.


Em um dos trechos mais polêmicos do artigo, o senhor diz justamente que o presidente que o senhor reverencia, John F. Kennedy, não era tão diferente de George W. Bush. Ambos foram meninos ricos e mimados, assinaram artigos que não escreveram, promoveram guerras discutíveis. Não se chega a ser presidente americano sem uma ambição tremenda e sem fazer um pacto pessoal com o demônio, por assim dizer.


Alguns estudiosos dizem que nunca, desde a guerra civil (1861-1865), o país esteve tão dividido quanto está sob o presente governo. O senhor concorda? De certa forma, sim. Nestes últimos anos os Estados Unidos se tornaram extraordinariamente polarizados. Mas temos muito em comum que nos une. A começar pela Constituição, que deixa grande latitude para as diferenças e a instabilidade. Ela assume que essas são constantes na vida dos indivíduos e de uma nação. Por isso é um documento tão perene: por ser tão humano – ou por conhecer tão bem o que é humano.


A crescente intromissão do pensamento religioso na discussão política americana não contraria esse pensamento fundador? Eu relativizaria essa afirmação: tanto a direita quanto a esquerda baseiam seus argumentos em visões de mundo que não podem ser provadas. A direita se apóia majoritariamente na visão cristã, e a esquerda, na idéia trágica de que o mundo ideal é justo, o real é sumamente injusto e toda injustiça, portanto, deve ser erradicada, a ferro e fogo. Mas o fato é que também a Constituição americana é um documento originado de uma visão religiosa do mundo – na maneira como afirma que todos os homens são criados iguais, ou na referência a verdades ‘auto-evidentes’. A religião está na base da política americana.


Essa não é uma fonte de atrito num país que acomoda cidadãos de tantas origens diferentes? Não necessariamente. As pessoas vêm para cá porque este é um país espetacular. Meus avós vieram da Polônia sem um tostão e mandaram os filhos para a universidade. Veja também o governador da Louisiana, Bobby Jindal: ele é filho de imigrantes indianos que chegaram sem nada. Fez fortuna, fez carreira política e pode vir a ser o vice-presidente americano antes dos 40 anos. Onde mais isso acontece?


Há quanto tempo o senhor está envolvido com o jiu-jítsu? Há seis anos, mais ou menos, desde que vim morar em Los Angeles e comecei a estudar com o brasileiro Renato Magno. O jiu-jítsu desenvolve não só o corpo, mas também a mente e a autoconfiança. Na verdade, acho esse um esporte muito filosófico.


Em Cinturão Vermelho, os campeonatos de jiu-jítsu são retratados como corruptos. foi isso que o senhor observou? Não, não acho que esse seja um mundo corrupto. Trata-se de um retrato ficcional, com um propósito dramático: o de traçar uma trajetória heróica. O protagonista interpretado por Chiwetel Ejiofor acha que a competição é uma corrupção do esporte, mas em algum ponto ele terá de descer da montanha e viver no mundo real. E o mundo real é um lugar bagunçado.


Em seus diálogos, o ritmo e a tônica são tão importantes quanto o que é dito. Isso os torna mais difíceis para atores estrangeiros, como Rodrigo Santoro e Alice Braga? Eles falam inglês melhor do que eu. Se tiveram alguma dificuldade, disfarçaram muito bem, porque eu não a percebi.


Qual é sua expectativa para Cinturão Vermelho? Em Hollywood há pessoas especializadas em sacrificar galinhas para ler o futuro nas entranhas delas. Mas eu não arrisco profecias. Seja qual for o público de um filme, o autor sempre sente que ele poderia ter chegado a mais gente. Tenho certeza de que James Cameron lamenta que haja animais de fazenda por aí que não viram Titanic.’


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