Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A queima das palavras

Quando as bombas terroristas explodiram o museu mais importante de Nova York, um quadro foi roubado, “O Pintassilgo”, do holandês Carel Fabritius, e graças a isso a pintura de 1654 se salvou, além de transformar em best-seller o romance da americana Donna Tartt. O terrorismo de “O Pintassilgo” (Cia das Letras) foi pura ficção. O fogo desta semana de Natal no Museu da Língua Portuguesa foi real. Mas quem vai salvar as palavras que seriam ordenadas no dia 1 de janeiro de 2016, quando Dilma Roussef prometeu ratificar o Acordo Ortográfico em suspense desde 1990 sem a adesão de Moçambique e Angola? As palavras queimaram na fogueira desta segunda feira como num auto da fé. Foi a demonstração do caótico cenário linguístico criado desde que se resolveu ordenar o português escrito pelos falantes da língua de 800 anos nesta Comunidade de 250 milhões de pessoas.  Elas temem ter de engolir grafias que representam os mesmos fonemas (ch e x: o som de “xis” produziria xuva, xaleira, xegar).

Espalhadas por cinco continentes, já seremos 300 milhões em 2050 e quem primeiro sonhou e realizou a unificação deste universo de língua portuguesa foi o então embaixador do Brasil em Portugal, José Aparecido de Oliveira. Ele criou a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) com o apoio de sempre do ex-presidente socialista de Portugal,  Mário Soares. No mês passado na Fliporto do Recife dedicada a Fernando Pessoa e a Brasil e Portugal, unidos e desunidos pelo mesmo laço, o professor da Universidade do Porto Arnaldo Saraiva defendeu o Acordo. Enquanto ele afirmava com vigor que seus detratores nunca haviam lido o tratado, o jornalista e escritor Miguel Souza Tavares (“Equador”, Cia das Letras) repudiava com todas as forças qualquer tentativa de unificação do que considera impossível normatizar – e se recusa a escrever seguindo as regras impostas, aliás, como fazia José Saramago.

Se a ortografia é a expressão da pronúncia, está difícil impingir que Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor–Leste e Brasil escrevam da mesma maneira.  As diferenças são tantas que nesta semana o Jornal Nacional da TV Globo denunciou o Tribunal de Justiça de Sergipe que exigiu a tradução juramentada de um texto…em português de Angola, justificando tratar-se de “língua estrangeira”. Até hoje, quando Brasil e Portugal já se aproximam bem mais e exportam seus artistas, alguns filmes portugueses são passados com legenda no Brasil. Angola não ratifica o Acordo antes que se reveja 20 das suas 21 cláusulas. Até agora só Brasil e Portugal colocaram as normas em vigor. Timor e Goa, de fora. “Uma velha tipografia manual em Goa pode ser tão preciosa para a Língua Portuguesa como a mais importante empresa editorial do Brasil, de Portugal ou de Angola” foi o editorial do Jornal de Angola numa evidente crítica a Portugal e Brasil.

Num Portugal dividido, o pesquisador em Direito da faculdade de Lisboa, Ivo Miguel Barroso, prega “não cumprir a reforma ortográfica é um ato de patriotismo, a manifestação de amor à língua”. Ele é responsável por uma petição com 6 mil assinaturas pedindo o desligamento de Portugal do Acordo. Saramago não pedia tanto, apenas desejou em “Jangada de Pedra” que o mapa do mundo se modificasse, Portugal se deslocando da Europa para se unir a África e ao Brasil. O que José Aparecido de Oliveira concretizou na CPLP nos anos 1990.

Está difícil prever o que vai dar esse impasse. O desastre que antecipou a ratificação pode ser uma premonição. O Museu da Língua Portuguesa, pioneiro e único do mundo, onde os quatro milhões em 10 anos desde a inauguração em 2005 costumavam penetrar surdamente no reino das palavras, como propôs Drummond. Assim o idioma originado nos cinco continentes em suas várias formas, tomava conta sem regra nem preconceito.

Templo do imaterial, do sensorial, do lúdico, do pudico, do erótico, do singelo, do culto, do popular, do oficial e do inventado, da boca erudita para a boca do povo, o fogo desta semana comeu nossa língua encravada entre os seis mil idiomas do globo. Heranças indígenas, africanas, europeias, asiáticas, recicladas todos os dias, sem normatização. Como José de Alencar afirmou em 1872 numa das Mostras do Museu, o povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba não pode falar uma língua com o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pera, a nêspera. Festa virou gandaia, galhofa, regabofe, e canjica, mugunzá, jenipapo e pamonha dançavam naquele espaço ao som do mambembe e do agôgo.

Mas agora o museu do delírio verbal e do gozo sonoro foi para o espaço. O telão de 106 metros projetando 11 filmes simultâneos do Guarani ao guaraná foi dissolvido. Não se brinca mais com a mágica de, ao toque de um dedo, criar palavras, sufixos, prefixos, inhos e ãos. A admirável iniciativa que no país da bola investiu R$ 37 milhões no prédio de 114 anos da Estação da Luz, mais que no Museu do Futebol, agora é cinzas, e nada mais.

Como Leão Serva escreveu na Folha de S. Paulo (22/12/2015), em tempos de crise econômica vai ser difícil custear sua reconstrução, e a remontagem do acervo, todo digital. E num belo texto (O Globo, 22/12/2015), “Museu da Língua Seguirá com seu Coração Pulsante”, Leonal Kaz, que fez a concepção do Museu do Amanhã e é o curador do Museu do Futebol, lamentou: “Nossa pátria é a palavra. É o território em que nos movemos. Quando a perdemos, perdemos nossos sentidos. Nossos desejos”. Esse drama da perda simbólica Kaz sintetiza, também dramaticamente:  “Lamento ter escrito este texto com palavras. Deveria tê-lo escrito com lágrimas”

 

ACORDO ORTOGRÁFICO EM RESUMO

-o alfabeto de 23 letras passa a ter 26. Reabilita-se o k, w, y

-somem as tremas

-desaparece o acento diferencial, por exemplo pelo (preposição), pelo ( de cães), e pélo (de pelar)

-desaparece o acento circunflexo de palavras terminadas em êem (vêem, dêem, crêem) e em enjôo e vôo

-desaparece o acento agudo dos ditongos abertos éi e ói (assembleia, paranoia)

-desaparece também no i e no u após ditongos (união de duas vogais) em palavras com a segunda sílaba tônica, como em feiúra

-desaparece o hífen quando o segundo elemento começa com s ou r (contrassenso, contrarregra), ou quando começa com vogal (autoestrada, extraescolar). Exceção quando o prefixo termina em r

– em Portugal desaparecem o c e o p mudos (optimo e acto). Húmido e herva perdem o h.

 

NOSSA LÍNGUA É NOSSA PÁTRIA

Estante-escaparate

Válvula de descarga- autoclismo

Ônibus – autocarro ou machimbombo em Moçambique

Privada-pia

Pia-bacia

Vaso sanitário- retrete

Pirulito-chupa-chupa

Chiclete-bala elástica

Miúdos de frango – pipi

Chirrasquinho – prego

Encanador-canalizador

Caqui-diospiro

Mamadeira-biberon

Café-bica

Bonde-elétrico

Restaurante pequeno – tasca

Tela-écran

Vitrine-montra

Fogo-lume

O Gordo e o Magro – Bucha-Estica