Utopia, ilusão. Fabricada pela confluência da teologia, filosofia e a filologia, uma das poucas palavras com certidão de idade, genealogia e validade completa neste novo ano, exatos 500 anos de existência, meio milênio de sonhos e acalantos.
Expulso do Éden segundo a narrativa bíblica, o homem atravessou os demais relatos — dos mesopotâmicos aos gregos, romanos e medievais — buscando e jamais reencontrando o paraíso perdido, jardim desperdiçado. Se a modernidade foi efetivamente fabricada pelo humanismo renascentista, o conceito de utopia é uma das suas mais fascinantes elaborações.
Antes mesmo de batizado, o Brasil tem algum protagonismo na origem desta quimera. Seu criador, o jurista, historiador, estadista, filósofo e santo inglês, Thomas More inspirou-se nas maravilhas relatadas no panfleto “Mundus Novus” com a transcrição de algumas das cartas escritas pelo navegador florentino Américo Vespúcio. E assim armado, embarcou no relato de uma viagem imaginária a uma ilha com as mesmas características do “paraíso terrestre” descoberto pouco antes por Cabral.
Utopos, lugar inexistente, ou eutopos, o bom lugar, é um sutil jogo de raízes e partículas gregas destinado a confundir os leitores deixando-os a mercê da dúvida, divididos entre fantasia e realidade, mas de qualquer forma cientes de que a distância entre estas esferas pode ser abreviada. Desde que entendida.
Sátira ou desafio, livro de viagem ou conclamação política escrita em latim, impressa em Louvain (Bélgica) pelo grande amigo de More, o humanista Desiderius Erasmus, ou Erasmo de Rotterdam, o teólogo que encampou as denúncias de Martinho Lutero contra a hierarquia romana mas recusou dividir a Igreja. A tradução inglesa só foi publicada dezesseis anos após a decapitação de More ordenada pelo desatinado Henrique VIII.
Nada a ver com a sua “Utopia”, mas com a integridade e intransigência moral do Lord High-Chancellor que recusava anular o casamento do soberano inglês com Catarina de Aragão de modo a permitir novas bodas sem infringir as determinações pontificais.
Narrada pelo viajante português Rafael Hitlodeu, “Utopia” desvenda uma sociedade sossegada, disciplinada, sem advogados (as leis seriam fáceis de entender e obedecer), onde a propriedade comunal substituiria a propriedade privada, mulheres e homens teriam a mesma educação, filósofos seriam barrados da atividade política e a tolerância religiosa quase completa – exceto para os ateus incapazes de aceitar qualquer autoridade acima do livre-arbítrio.
Ao longo dos cinco séculos seguintes as premissas estabelecidas por More estão presentes em todas as quimeras, fantasias e miragens políticas, tecnológicas ou místicas — inclusive socialistas e comunistas, razão pela qual o teórico marxista Karl Kautsky considerou a obra de More como libertária e precursora da crítica social.
Os arremedos impostos através de massacres, fornos crematórios e gulagui por tiranos como Hitler, Mussolini, Stalin, Maozedong (para citar os mais recentes e aberrantes), pretendiam ser intocáveis, definitivos, sólidos. Desmancharam-se no ar, como soe acontecer.
Engenhoso, propositalmente enganoso, o neologismo criado por Thomas More em 1516 engendrou outro, sua negação, cerca de quatro séculos depois (1926). Aviltadas pelas delinquências produzidas em seu nome as utopias ganharam companheira inseparável, feroz predadora: as distopias. Fáceis de identificar e remover.