Saturday, 30 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

A hora e a vez dos mega-sellers

Nenhum dos livros anunciados como mega-seller, a nova categoria criada para designar os livros mais vendidos hoje no mundo, pode ser comparada com o desempenho editorial da Bíblia. Fundada em 1973, a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) vende cerca de 170 milhões de exemplares por ano. A mídia não toma conhecimento deste êxito extraordinário. Mas a figura solar de um livro, a Bíblia, está por trás do crescimento assombroso das igrejas ditas evangélicas em todo o Brasil.


Tirante a Bíblia, foi-se o tempo de Umberto Eco e seu best-seller mundial, O Nome da Rosa. Jorge Amado e Paulo Coelho, os dois escritores brasileiros que mais venderam no Brasil e no exterior, também foram ultrapassados pelos novos autores que irromperam no mercado editorial vendendo muito mais do que eles.


Há um novo perfil de autor e de livro na praça. Os exemplos se multiplicam. Uma brutal concentração de vendas em poucos livros está alterando também o perfil de distribuidoras e de livrarias.


O circuito do livro, que começa com o autor, passa pelo editor, chega aos distribuidores, dali às livrarias e finalmente aos leitores, foi alterado pela irrupção do que O Globo (sábado, 28/2/2009), no suplemento ‘Prosa & Verso’, denominou mega-seller – livro capaz de vender sozinho um quantia equivalente a 380 edições-padrão, que no Brasil ainda é de 2.000 exemplares.


A matéria, assinada por Rachel Bertol, é ilustrada com o desempenho de algumas figuras luminosas da nova constelação de autores-vendedores.


Campeões de vendas


O leitor às vezes nada sabe do autor, que lhe chega por editoras já consolidadas no mercado editorial brasileiro, mas que pode vir também pelas mãos de editor iniciante, como se deu com a Intrínseca, que lançou a série ‘Eclipse’, de Stephenie Meyer. Juntos, os três volumes venderam 760.000 exemplares.


A Nova Fronteira vendeu 1,89 milhão de O Caçador de Pipas, de Khaled Hosseini. Do mesmo autor, A Cidade do Sol, plágio descarado do título do clássico do frade dominicano e filósofo italiano Tommaso Campanela, vendeu 820 mil exemplares desde agosto de 2007. Acusado de heresia, Campanella ficou preso 27 dos 71 anos que viveu. Khaled Hosseini festeja há anos o primeiro lugar entre os mais vendidos.


A Sextante lançou O Código Da Vinci, de Dan Brown, em abril de 2004. Já vendeu 1,5 milhão de exemplares. Outros livros do autor venderam entre 350 mil e 700 mil exemplares. É o caso de Anjos e Demônios, Ponto de Impacto e Fortaleza Digital. No resto do mundo, o segundo maior best-seller do autor é Anjos e Demônios, que vendeu 40 milhões de exemplares. O primeiro é o Código Da Vinci, com 80 milhões.


A Rocco vendeu 3 milhões de exemplares da série Harry Potter, de J. K. Rowling, que no mundo já vendeu 400 milhões.


A Objetiva vendeu 250 mil exemplares de A Sombra do Vento, do espanhol Carlos Ruiz Zafón. No mundo, foram 7 milhões. Do mesmo autor, a Objetiva lançou em outubro passado O Jogo do Anjo, que já vendeu 60 mil exemplares.


A Ediouro vendeu 1,5 milhão de O Segredo, de Rhonda Byrne.


O recurso à auto-ajuda


Como andam os brasileiros? O romancista catarinense Cristóvão Tezza arrebatou os principais prêmios literários de 2008 com O Filho Eterno. Lançado em 2007, o romance vendeu 20 mil exemplares, um feito extraordinário para autor brasileiro de qualquer gênero, mas modesto diante do desempenho de obras como O Silêncio dos Amantes, da romancista e poeta gaúcha Lya Luft, que vendeu cinco vezes mais.


A lista não termina aqui. Há muitos outros exemplos de autores que vendem bem, ainda que deslocados do gênero preferencial que praticam.


Os livros que nas duas últimas décadas despontaram na categoria mega-seller não têm a força literária de O Nome da Rosa. Aliás, Umberto Eco não logrou alcançar nos livros seguintes a qualidade de seu romance de estréia. Mas em vez de desqualificá-los ao detectarmos a infindável repetição de conhecidos artifícios presentes em todos eles, convém entender as razões de tamanha receptividade, que pode começar por uma constatação muito simples: o leitor foi desamparado ou se sentiu desamparado. Daí o recurso à auto-ajuda.


Se ninguém faz nada por ele, se os aliados tradicionais com os quais contava para a sua formação o abandonaram – a família, a escola, as igrejas, o Estado, os partidos políticos –, ele recorreu a si mesmo e por conta própria resolveu buscar no mercado editorial um consolo para as suas grandes decepções, que, aliás, têm sido muitas!


Vender é uma coisa; ter qualidade é outra


O sucesso do mega-seller não deve tanto à mídia como se pensa. Ele é tecido como o canto do galo, do célebre poema de João Cabral de Melo Neto.




‘Um galo sozinho não tece uma manhã:/ ele precisará sempre de outros galos./ De um que apanhe esse grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo/ Que apanhe o grito que um galo antes/ E o lance a outro; e de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem/ os fios de sol de seus gritos de galo,/ para que a manhã, desde uma teia tênue,/ se vá tecendo, entre todos os galos.’


Mas daí estaremos falando de outros temas e problemas, de outro tipo de autor e de outro tipo de livro e de leitor, meus prezados internautas. Por enquanto, reina absoluto, no comércio – não na cultura, não na civilização – o sucesso avassalador dos livros de ocasião. Eles passarão e seus leitores descobrirão o gosto de um parágrafo ou verso de um livro que às vezes não chegou a vender direito a primeira edição de poucos exemplares.


Pois, vender é uma coisa; ter qualidade é outra, às vezes incompatível com o momento que coincidiu com a chegada tardia do leitor à galáxia Gutenberg.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)