Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Casuais e instrutivos reencontros com o Santo Ofício da Inquisição

Como não circulou no fim-de-semana anterior e ficou de fora do festival de resenhas que encobriram o lançamento do formidável “Spotlight”, a nova edição de Época (18/janeiro) marcou presença na segunda rodada de avaliações. E o fez em grande estilo no texto de abertura assinado pelo próprio Diretor de Redação.

Em busca da história completa” é um título que deveria servir tanto para introduzir um dos principais ingredientes do filme como para justificar o injustificável – a reportagem de capa com a foto do ex-marido da presidente Dilma Rousseff tentando implicá-lo e implica-la na rede de escândalos revelados pela Operação Lava Jato.

É a primeira vez que a imprensa ousa aproximar o círculo de amizades da presidente Dilma – ex-marido e pai da sua filha, o advogado Carlos Araújo, é um dos seus mais próximos amigos. A denúncia é tão frágil e tão adoidada que desta vez sequer foi endossada ou republicada como soe acontecer com o pool de veículos que se reúne em torno da ANJ (Associação Nacional de Jornais). Época ficou sozinha, pendurada na sua ilimitada criatividade.

A própria metáfora da “busca da história completa” não consegue se ajustar a qualquer um dos seus objetivos. Não legitima a leviana acusação ao amigo da presidente da República, nem esclarece o que verdadeiramente se passou na redação do Boston Globe em 2002.

No filme “Spotlight” — a esta altura com seis indicações para o “Oscar” — o recém-chegado diretor de redação (ao contrário do que está dito em Época), faz questão de ir atrás dos padres-pedófilos e através do detalhamento de seus crimes comprovar a cumplicidade oferecida pela hierarquia católica americana e a Santa Sé. A equipe de repórteres do Globe de Boston, identificou 87 sacerdotes prevaricadores e através deles escancarou o ilimitado poder da cúria do estado de Massachusetts numa república que se gaba do sua laicidade, secularismo e isonomia.

Pior de tudo é que servindo-se de um pequeno texto meramente retórico e abarrotado de equívocos, o semanário exime-se de fazer uma resenha satisfatória de um dos melhores filmes sobre jornalismo dos últimos tempos, deixando de lado a história real, as façanhas dos repórteres-heróis, dos religiosos-vilões e seus asseclas.

O que os nossos resenhistas estão tentando ocultar de forma tão canhestra são situações que o filme escancara de forma precisa, cirúrgica. Exemplo é a visita protocolar que o diretor de redação recém-chegado à cidade, é obrigado a fazer ao arcebispo de Boston e a indecorosa proposta que na ocasião o hierarca lhe dirige visando uma sólida aliança das respectivas instituições – igreja e imprensa. Como castigo foi obrigado a ouvir do jornalista que a imprensa só sobrevive quando se mantém distante deste tipo de parceria.

Se Época pretende realmente engajar-se numa competição com Veja valeria a pena examinar a resenha que o semanário da Abril publicou uma semana antes sobre o mesmo “Spotlight” e repetiu abreviadamente na edição seguinte: o grande jornalismo requer um grau de independência para romper paradigmas e compromissos que só se atinge com extrema deliberação. E muita coragem.

Enfim, a Inquisição fora do armário

Além de queimar hereges em festivos espetáculos ao ar livre, o Santo Ofício da Inquisição inventou um arsenal de ardis e sutilezas que prolongou a sua existência e infiltrou-se profundamente nos hábitos, mentalidades e leis dos países onde funcionou, sobretudo latinos – Itália, Espanha, Portugal e respectivas colônias d’além-mar.

Um dos subprodutos da Inquisição – o controle das ideias — foi formalizado poucos depois da invenção dos tipos móveis por Johannes Gutenberg em meados do século XV. O que não impediu a formidável utilização da tipografia para disseminar a rebelião contra a Santa Sé pelo dissidente Martinho Lutero.

Recurso igualmente eficaz para evitar contestações e exercer o poder absoluto foi criação de uma linguagem soft, disfarçada, desprovida de horrores para tornar palatáveis as façanhas do profano Santo Ofício. Em português os asseclas da Inquisição eram chamados de “familiares”, as execuções substituídas por “relaxamentos” e assim por diante (ver Elias Lipiner, “Inquisição, terror e linguagem”). O nazismo usou o mesmo expediente criando uma linguagem oca, adulterada, tal como revelam os diários de Victor Klemperer.

No Brasil, raramente menciona-se a Inquisição, seus feitos e vítimas. Espécie de vergonha coletiva ainda não assimilada por seus herdeiros. Ao longo dos festejos dos 450 anos de fundação do Rio de Janeiro os historiadores de plantão jamais insinuaram que a Cidade Maravilhosa é uma das campeãs em número de presos, denunciados, condenados e executados. A comunidade de cristãos-novos fluminenses foi dizimada no século XVIII, a indústria açucareira esvaziada por força das expropriações ordenadas pelos inquisidores.

A punições efetuadas pela força-tarefa que comanda a Operação Lava Jato levou os advogados que representam os acusados a publicar no dia 15/1 candente protesto contra os métodos de investigação e intimidação dos acusados. Pela primeira vez em décadas saltou dos dicionários e glossários a palavra Inquisição e sua variante, neo-inquisição.

Dos ilustres causídicos que assinam o manifesto poucos se deram ao trabalho de estudar os regulamentos inquisitoriais portugueses, a jurisprudência do Santo Ofício e os postulados de direito canônico no qual se basearam. Na condição de pesquisador diletante, este observador ousa lembrar que o professor Nilo Batista, ex-vice-governador e depois governador do Estado do Rio de Janeiro, é um dos poucos que examinaram a fundo a herança inquisitorial portuguesa em nossa vida jurídica.

Com isso não se pretende dar razão ao protesto dos advogados que enfrentam o rigor da Lava Jato. Apenas lembrar que o Santo Ofício não é uma figura de retórica mas uma aberração consolidada pelos 285 anos de vigência do aparelho de intolerância e fanatismo religioso no Brasil.

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Alberto Dines é jornalista, escritor e cofundador do Observatório da Imprensa