Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A epidemia de superficialidade na cobertura do Zika vírus

Segundo o noticiário da imprensa e a julgar pelo número de pessoas infectadas, temos hoje um quadro de epidemia de microcefalia, moléstia causada pelo mosquito aedes aegypti, espécie comum em nosso país desde há muito, mas que nos últimos anos parece ter se tornado verdadeira praga a se combater e cuja responsabilidade para tal costuma majoritariamente ser delegada às esferas federal, estadual e municipal da administração pública.

Muito embora a reprodução do mosquito se dê principalmente no ambiente doméstico e suas cercanias (o que, como dito diariamente pelo noticiário, acarretaria a corresponsabilidade da população no referido combate para torná-lo mais efetivo), em última análise são apenas tais esferas consideradas culpadas quando algo dá errado neste e em outros assuntos.

Afora discussões mais aprofundadas sobre as devidas responsabilidades, o fato é que a degradação sucessiva da qualidade jornalística, por diferentes motivos e geralmente relacionados a questões de natureza econômica, encontra-se presente na superficialidade com a qual muitos assuntos são tratados, notadamente os polêmicos, de grande influência sobre a sociedade e que, por isto, reverberam de forma mais incisiva (e trazendo muitas vezes mais confusão que informação), colaborando assim para uma visão distorcida da realidade.

Reprodução

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Um exemplo disto pode ser visto na matéria cujo título é “Cidades do interior de São Paulo e Paraíba cancelam carnaval por causa do Zika vírus”, no caderno de Ciência e Tecnologia da edição eletrônica do Jornal do Brasil de 24/01/16, que trata do cancelamento dos carnavais de 2016 pelas prefeituras das cidades paulistas de Nova Odessa e Capivari, bem como das cidades paraibanas de Patos, Santa Rita e João Pessoa. O título em si cumpre o seu papel de informar, mas o subtítulo da matéria vai de encontro a um longo histórico de credibilidade que o jornal possuiu durante décadas e que lamentavelmente vem perdendo a passos largos de alguns anos para cá, pelos motivos já expostos. Ao dizer que “ao invés de combater a doença, prefeituras suspendem a festa mais aguardada do ano”, o leitor é exposto a uma superficialidade cada vez mais comum no meio jornalístico, induzindo-o a concluir definitivamente que as prefeituras citadas na matéria não cumprem a sua parte no combate ao mosquito transmissor do vírus Zika, sem apresentar suas respectivas realidades ou mesmo ouvir o que seus representantes teriam a dizer sobre. É notório que há tempos o poder público não representa um padrão de eficiência e eficácia perante a população, o que não significa que não possa haver ao menos alguns bons exemplos; mais ainda, mesmo diante de um cenário desfavorável neste sentido, um jornalismo sério deve sempre oferecer um contraponto, sob o risco de parecer superficial e, principalmente, parcial.

Iniciar, portanto, a matéria dizendo que, “seguindo os rigores do alerta enviado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA” (que recomendou às mulheres grávidas não irem para países onde há incidência do vírus Zika), tais prefeituras cancelaram os respectivos carnavais, parece algo superficial, incompleto, restrito; pior, induz a pensar que, se todas as demais prefeituras pelo país não fizeram o mesmo, estas são irresponsáveis, uma vez que o aviso dado refere-se a países, não somente a determinadas localidades destes. Por outro lado, diante do quadro (amplamente noticiado pela mídia nacional) que se apresenta a respeito do avanço da microcefalia pelo país, seria desnecessário que órgãos estrangeiros nos alertassem a respeito. Somos ainda um país em vias de um desenvolvimento mais vigoroso em termos políticos, econômicos e sociais, mas já comprovamos muitas vezes que temos a capacidade de nos organizar e enfrentar adversidades quando necessário e por nós mesmos.

Ministério percebeu e reconheceu a ocorrência de um evento incomum

A superficialidade da matéria pode ser facilmente comprovada também ao se realizar uma rápida pesquisa no Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, ferramenta de consulta elaborada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pela Fundação João Pinheiro (FJP). Nele consta que, segundo informações obtidas junto ao censo nacional de 2010, apenas Santa Rita possui um IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) considerado mediano (0,627); com IDHM de, respectivamente, 0,750, 0,763, 0,791 e 0,701, Capivari, João Pessoa, Nova Odessa e Patos têm um índice considerado alto; a média brasileira do IDHM é 0,727.

Uma vez que na composição do IDHM encontram-se a longevidade, educação e renda (considerando o contexto brasileiro e a disponibilidade dos indicadores nacionais), talvez se possa afirmar que tais cidades possuiriam condições no mínimo satisfatórias para enfrentar adversidades. Portanto, em que se baseia a matéria ao sugerir que, se houvesse um melhor preparo e organização no combate ao mosquito, os carnavais destas cidades seriam mantidos?

O autor da matéria provavelmente não teve tempo (ou interesse) para se aprofundar na questão do cancelamento do carnaval em Nova Odessa. Do contrário, teria descoberto que, como apresentado pelo portal de notícias G1 em 03/02/15, a prefeitura da cidade resolveu cancelar o desfile de escolas de samba e blocos de rua daquele ano porque a estiagem que atingiu todo o estado de São Paulo naquele ano reduziu em 60% o nível das represas que abastecem a cidade de água (em janeiro de 2015, choveu na cidade a metade do esperado para o mês inteiro), o que traria um risco de desabastecimento na cidade por conta do natural fluxo de turistas.

Tal atitude parece contrariar, portanto, a ideia de despreparo e desorganização por parte da prefeitura de Nova Odessa, sobretudo diante de um evento climático talvez inesperado, mas certamente incomum e atípico, como a longa estiagem de 2015. Por outro lado, não houve uma preocupação maior em se apurar o eventual cancelamento do carnaval de João Pessoa, que será mantido, mas que terá uma redução de 50% no investimento da prefeitura na estrutura do projeto “Folia de Rua”, o que, no entanto, não o prejudicará significativamente, conforme apresentado pelo portal de notícias G1 em 07/01/16.

A suposta deficiência apontada pela matéria em relação à mobilização do Ministério da Saúde para enfrentar o problema foi também superficialmente apresentada. Segundo o Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS/MS) deste ministério (2015, p. 1), em 22/10/15 houve a notificação da ocorrência de casos de microcefalia pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES/PE), seguindo-se então da notificação à Organização Mundial de Saúde (OMS) em 23/10/15, de uma reunião entre a SVS/MS e gestores da SES/PE em 26/10/15, de uma nova notificação à OMS em 29/10/15 (desta vez classificando os casos como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – ESPII – “por apresentar impacto grave sobre a saúde pública e por ser evento incomum/inesperado”, conforme o Anexo II do Relatório Sanitário Internacional), da ativação em 10/11/15 do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública no âmbito do Plano de Resposta às Emergências em Saúde Pública e, por fim, da publicação em 12/11/15 da Portaria GM n° 1.813, de 11/11/15, que declara uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), “tendo em vista alteração do padrão de ocorrência de microcefalias no Brasil”.

Esta sequência cronológica mostra claramente que o Ministério da Saúde acompanhava a ocorrência da microcefalia no país de tal forma que, em aproximadamente 20 dias, percebeu e reconheceu a ocorrência de um evento incomum, inesperado, informou o fato à OMS, acionou seus especialistas e planos de resposta e notificou a população sobre o que ocorria. Mais uma vez, em que se baseia a matéria ao sugerir que, se houvesse um melhor preparo e organização no Ministério da Saúde, não estaríamos sujeitos à epidemia que se iniciou?

Ineditismo e imprevisibilidade

A resposta a esta pergunta parece ter sido fornecida pelo próprio conteúdo da matéria, ao apresentar uma declaração desastrada do ministro da Saúde, no qual este diz “torcer” para que as mulheres contraiam o vírus Zika antes de sua fase fértil, evitando assim a contaminação do feto e a microcefalia propriamente dita. Ressalta ainda que o ministro mencionou que se convive com o aedes aegypti há 30 anos, do que se utiliza então a matéria para justificar a constatação do despreparo e desorganização do poder público no trato da moléstia.

Afora o comportamento lamentável do ministro, isto não deveria ser generalizado para os demais integrantes de seu ministério, que não podem ser responsabilizados e, conforme a cronologia anteriormente apresentada, cumpriram com seu dever conforme previsto. Tem-se aqui outro indício de que o autor da matéria agiu com superficialidade, utilizando-se de uma generalização que se tem tornado cada vez mais comum no meio jornalístico, com a perda de credibilidade de veículos de comunicação outrora louváveis.

Como sugere a matéria, a melhoria no saneamento básico das cidades e os investimentos em pesquisas de desenvolvimento de uma vacina eficaz contra a microcefalia certamente são medidas a que se devem dedicar todos os esforços possíveis, o que não quer dizer que, por ainda não se ter atingido a plenitude nisto, o que se tem à disposição para o combate ao mosquito aedes aegypti revele despreparo e desorganização por parte das prefeituras e do Ministério da Saúde; há questões que transcendem estas esferas, como uma abordagem mais cuidadosa pela matéria poderia revelar, devendo-se ainda considerar o ineditismo e a imprevisibilidade do que hoje se enfrenta. Conscientizar a grande maioria da população que vive num país como o Brasil a respeito de sua responsabilidade neste e em outros assuntos, bem como elevar o nível de saneamento básico disponível, é algo que caminha como a ciência: um passo (firme) de cada vez, em direção a um progresso coletivo sustentável.

Referências

“Cidades do interior de São Paulo e Paraíba cancelam carnaval por causa do Zika vírus”. Jornal do Brasil, caderno Ciência e Tecnologia, 23 de janeiro de 2016. Disponível em: http://www.jb.com.br/ciencia-e-tecnologia/noticias/2016/01/23/cidades-do-interior-de-sao-paulo-e-paraiba-cancelam-carnaval-por-causa-do-zika-virus. Acesso em: 24 de janeiro de 2016.

Ministério da Saúde (Secretaria de Vigilância em Saúde). Boletim Epidemiológico. Brasília, v. 46, n° 34, nov. 2015. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2015/novembro/19/Microcefalia-bol-final.pdf. Acesso em: 24 de janeiro de 2016.

“Nova Odessa cancela Carnaval para investir em ação de combate à dengue”. Portal G1, caderno Piracicaba e região, 18 de janeiro de 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2016/01/nova-odessa-cancela-carnaval-para-investir-na-saude-e-combate-dengue.html. Acesso em: 24 de janeiro de 2016.

“Nova Odessa cancela o carnaval de rua neste ano e alega falta de chuva”. Portal G1, caderno Piracicaba e região, 03 de fevereiro de 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2015/02/falta-de-chuva-obriga-nova-odessa-cancelar-o-carnaval-de-rua-neste-ano.html. Acesso em: 24 de janeiro de 2016.

“Prefeitura de João Pessoa reduz em cerca de 50% apoio ao Folia de Rua”. Portal G1, caderno Paraíba, 07 de janeiro de 2016. http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2016/01/prefeitura-de-joao-pessoa-reduz-em-cerca-de-50-apoio-ao-folia-de-rua.html. Acesso em: 24 de janeiro de 2016.

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Mauricio Augusto Cabral Ramos Junior é administrador de empresas e mestrando em Administração