Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

A imprensa e a economia falharam

O sistema faliu. Agora o mundo busca ressuscitá-lo, ou seja, fazer com que as coisas voltem a funcionar como antes. Do mesmo jeito, só que com alguma regulamentação a mais pelos Estados nacionais. Ou por um órgão supranacional, como um Conselho Econômico à imagem do Conselho de Segurança da ONU. Se for tão eficaz quanto este, nada mudará.

A imprensa publica informações e diagnósticos de economistas e outras ‘autoridades’ que explicam as causas do desastre, técnicas e humanas. Entre as causas técnicas colocam os produtos financeiros excessivamente sofisticados (criativos) que escaparam das regulamentações existentes, a leniência das autoridades controladoras do mercado, a excessiva alavancagem das instituições financeiras. Como causas humanas são apresentadas a ganância, a irresponsabilidade em relação ao uso dos recursos de terceiros e as relações promíscuas entre reguladores e (pretensamente) regulados. As propostas para a recuperação dos mercados em geral focam as causas técnicas. Quanto às humanas, muito pouco tem sido dito ou proposto. E, quando o são, demonstram uma visão fragmentada da realidade.

Um sistema sofisticado

A mera reprodução das propostas técnicas sem a busca de explicações sistêmicas para os problemas que a sociedade humana enfrenta mostra que a imprensa está falhando em seu papel crítico. A economia é a parte visível dos dramas que se desenrolam. Talvez por isso tenha apelo tão grande. Mas a falta de entendimento das raízes destes acontecimentos fará com que soluções mágicas, como o aumento de regulamentação por parte dos governos e o derrame de recursos públicos, sejam vistas como eficazes. Não serão. Na sua função crítica e educativa, a imprensa deve demonstrar que toda a cultura que levou a esta situação precisa ser mudada radicalmente.

Uma das causas desses problemas é a própria concepção de desenvolvimento econômico e sua mensuração. A principal medida do desenvolvimento, adotada pela grande maioria dos países, é o PIB, Produto Interno Bruto, composto pela somatória de consumo privado, gastos públicos e investimentos. Ou seja, o desenvolvimento é medido pelo consumo mais o que alavanca o consumo. O máximo que esta medida avança em termos de indicação do bem-estar é a divisão do PIB pela população, o PIB per capita. Outras medidas, como o índice de Gini, a razão entre os de maior e os de menor renda em determinada comunidade, dão indicações sobre o nível de distribuição da ‘riqueza’, ou seja, da capacidade de consumo. A partir de indicadores tão superficiais, não é de estranhar que alguns presidentes de países pouco afeitos ao pensamento mais elaborado peçam às pessoas que consumam mais para superar a crise.

Por trás do PIB temos todo um sistema sofisticado para organizar a vida das pessoas em torno do consumo, da ganância e do hedonismo. Vamos a alguns exemplos.

Formar outros consumidores

As decisões dos executivos de grandes corporações sobre o que produzir e em que quantidade são tomadas, em grande parte, pelo desejo de dominar o mercado, e não necessariamente pela determinação de atender às demandas das pessoas. Isto leva à expansão das capacidades produtivas além da demanda, o que, por sua vez, leva à necessidade de propaganda intensiva para vender os produtos (fazê-los preferidos em relação aos da concorrência), o que leva a mais anúncios e mais receitas para os veículos de comunicação. Os anunciantes dependem dos veículos para incentivar o consumo de seus produtos e os veículos, por sua vez, dependem dos anunciantes para custear suas operações. Um círculo autorreforçador que leva a mídia a ser simpática ao aumento desenfreado do consumo.

Outro ângulo de análise. A sustentação financeira dos governos depende, em grande parte, de impostos cobrados sobre a produção e circulação de bens de consumo. Ou seja, aos governos também interessa que haja cada vez mais consumo. Além disto, governos são grandes anunciantes e, em muitos lugares, responsáveis pela sobrevivência de veículos que não conseguem receitas suficientes através da publicidade privada. Mais um círculo autorreforçador.

Também é preciso ‘educar’, formar os consumidores. Os ambientes escolares são um campo propício para isto, através de cadernos, livros, mochilas, lápis, caneta e todos os apetrechos usados no processo e que se tornaram objetos de moda. Mais uma vez os veículos de comunicação são importantes, pois propagandeiam os últimos lançamentos. E vão além, através dos programas infantis recheados de intervalos comerciais dos mais diversos produtos que incentivam o hedonismo.

Visando a formar outros consumidores, mensagens direcionadas ao culto ao corpo e às mais diversas formas de satisfação de necessidades materiais supérfluas povoam as páginas de jornais e revistas para todos os públicos e os intervalos comerciais de rádios e televisões, mantendo o foco no consumo e o círculo vicioso de dependência mútua entre imprensa e produtores de bens e serviços.

Raiz está nos valores

Esta dependência dos veículos de comunicação da publicidade se revela no teor editorial das publicações especializadas em negócios, sejam revistas ou cadernos dos grandes jornais. Nelas é exaltado o desempenho econômico das empresas, seu faturamento e lucro, os índices de retorno sobre os investimentos, a parcela de mercado dominada e os investimentos em aumento de produção.

Muito pouco se analisa o impacto que essas organizações têm nos ecossistemas dos quais fazem parte. É curioso olhar a premiação das ‘maiores e melhores’ empresas de alguns anos atrás e observar que muitas das que foram consideradas exemplos de administração bem-sucedida hoje já não existem mais. Isto não é estranho, já que a mídia também é um ramo empresarial, sujeito ao mesmo tipo de análise de desempenho.

As explicações sobre a valorização do consumo são superficiais, quando não tautológicas e até contraditórias. Os analistas dizem que o consumo cria empregos que geram bem-estar. Bem-estar entendido como a capacidade de consumir. O consumo também gera impostos, que dão condições de os governos proverem infra-estrutura para a produção de bens e serviços, facilitando o consumo. Isso quando o governo não produz, ele próprio, bens e serviços onde não há interesse dos investidores privados. E, claro, o governo também gera empregos diretamente para manter a burocracia estatal.

A busca pelo domínio do mercado, entretanto, faz com que as empresas cada vez mais busquem redução de custos para poderem praticar preços diferenciados (excetuando-se os cartéis). A automação da produção de bens e serviços é um dos meios utilizados. Com isso, menos trabalhadores são necessários, o que reduz o número de consumidores. Então, as empresas se voltam para os segmentos de alta renda (dirigentes de empresas, integrantes do médio e alto escalão dos governos, ídolos populares), menos afetados pela automação. A lógica do retorno sobre os investimentos é implacável.

Um dos pontos de sustentação deste sistema complexo é o das estruturas políticas. Usando as mesmas técnicas de indução do consumo, as organizações dos mais variados ramos, incluindo o sindical, elegem seus representantes para o Congresso, as Assembléias, as Câmaras e para os postos executivos. Com isto, toda a produção de normas do país e sua execução acaba por favorecer os interesses de quem está no comando desse sistema.

Criticar é ampliar o ângulo e o horizonte da percepção, aprofundar a busca de causas essenciais, clarear as explanações para aumentar o entendimento. Focando apenas ângulos superficiais da economia para explicar a crise atual, a imprensa não exerce a crítica. A raiz dos problemas não está na economia. Está nos valores que determinam as decisões econômicas.

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Psicólogo, sociólogo, administrador e consultor, Santana de Parnaíba, SP