Enganam-se os que pensam ser a censura um instrumento do aparato repressivo do Estado. Ela se molda conforme o tempo, a situação e a oportunidade, mas não deixa de existir. Apenas muda, transforma-se e, invariavelmente, ataca da maneira mais sorrateira e vil possível.
A atividade jornalística está longe de ser perfeita, como qualquer outra área do conhecimento humano, mas detém seu percentual de acerto e de responsabilidade. E é a sua função de informar que as presas da censura preferem abocanhar e injetar seu veneno.
No dia 11 de dezembro de 2008 produzi a reportagem que deu manchete da Gazeta Mercantil: ‘Embraer prepara-se para demitir 4 mil funcionários’. O texto revelava os planos da empresa para dispensar 20% de seu efetivo e os preparativos que já ocorriam nesse sentido. Foi uma antecipação da informação, que no meio jornalístico chamamos de ‘furo’.
No entanto, a reação da empresa, particularmente de seu presidente Frederico Curado e de alguns de seus vice-presidentes foi de extrema agressividade, chegando o dirigente máximo da companhia dizer em coletiva de imprensa, depois em rede nacional, que as informações publicadas pela Gazeta Mercantil eram ‘levianas, mentirosas e invenção da cabeça de alguns jornalistas’.
Uma única frase
Na maioria dos casos, o público consumidor de notícias desconhece os bastidores das reportagens. Como dizia um ex-professor de meu curso de Jornalismo, no começo dos anos 1980, ‘jornalista não é notícia’ – embora haja momentos em que esse atrás de teclados, microfones e câmeras seja necessário vir a conhecimento geral. Só assim se consegue contextualizar e analisar o caso sob uma ótica completa.
Permitam-me relatar parte deste artigo na primeira pessoa. Entre apuração e rechecagem das informações, avaliação e análise do conteúdo jornalístico, eu e meus editores trabalhamos mais de 20 dias nesse processo. Um tempo imenso para quem conhece a dinâmica de uma redação de jornal diário, mas necessário para publicarmos a matéria com a maior precisão possível.
Todas as minhas fontes eram off, pois a maioria delas trabalhava na Embraer e estava revoltada com o golpe preparado pela companhia junto aos trabalhadores. No dia 10 de dezembro, tive o cuidado de telefonar logo pela manhã, às 9h30, para a assessoria de imprensa da empresa e repassar todas as informações que eu havia apurado, deixando transparente do que se tratava a reportagem. Pedi que houvesse um retorno, já que o assunto era grave e preocupante.
Depois de diversos telefonemas ao longo do dia cobrando uma posição, só fui conseguir o já clássico ‘a Embraer não comentará sobre esse assunto’ às 17h40, devido à insistência. Foram oito horas de espera para obter uma única frase e também começar um verdadeiro inferno em minha vida, como se eu fosse o objeto catártico de toda frustração da direção da empresa.
Cavalaria em campo
No dia da publicação da matéria (11/12/2008) houve uma cerimônia de entrega de dois aviões para Air France e fui escalado para cobrir o evento. Já ao ingressar nas instalações da fábrica, em São José dos Campos (SP), foi recebido pela chefia da assessoria de imprensa, que sem o menor respeito tentou esconder a fúria sob a ironia cínica e vociferou na frente de outros colegas jornalistas: ‘O que você está fazendo aqui? Ninguém aqui quer te ver. Já não teve seus cinco minutinhos de fama?’
Depois foi grosseria atrás de grosseria, protagonizada não por pégasus alados e mitológicos, mas por executivos despreparados para lidar com a imprensa e com a iminência de uma crise. Extravasaram seus sentimentos mais viscerais, como algo próximo a delicadeza da soldadesca montada da Polícia Militar de São Paulo em dia de clássico no Pacaembu ou nas manifestações públicas nos idos dos anos 1960 e 70. Algo ultrajante e acompanhado por diversos companheiros de profissão, como se os executivos da ex-estatal não tivessem tido informações e tempo suficientes para justificar o conteúdo da reportagem. Mas esse era apenas o prefácio.
Com o passar dos dias fui retirado do mailing list da empresa, proibiram-me de entrar ou cobrir qualquer evento nos limites da companhia, deixei de ser atendido pela assessoria de imprensa tanto por telefone como por e-mail – e, para confirmar isso, eu enviava e-mails e telefonava para todos os jornalistas da assessoria, assim não haveria como me enganar ou a assessoria me desmentir.
Não contentes com as privações a um profissional de imprensa em pleno exercício da profissão, a gerência de comunicação da Embraer e sua direção passaram a exigir minha demissão e a retratação em primeira página ‘das mentiras publicadas pelo jornal’.
Na edição de segunda-feira (2/3/2009) da Gazeta Mercantil, o jornalista e diretor do grupo CBM, do qual a Gazeta faz parte, Augusto Nunes, esclareceu em seu artigo mais um dos deprimentes episódios:
‘Os exemplares com a informação incômoda começavam a ser distribuídos quando diretores da Embraer chegaram ao prédio do jornal com um dossiê que, além de desmentir a degola agora efetivada, pretendia transformar o autor da reportagem num inimigo jurado da empresa. A chefia da Gazeta não perdeu tempo com a fantasia’.
Além de ter virado o bode expiatório da Embraer, a empresa passou a usar de expedientes visando meu prejuízo profissional e pessoal.
Minha relação com a companhia sempre foi pautada pela boa educação, pelo respeito mútuo e sem a menor rusga durante os três anos em que estou na Gazeta Mercantil, iniciados em fevereiro de 2006. Nesses últimos anos dediquei atenção especial ao pólo aeronáutico, particularmente à Embraer – empresa que cubro há mais de vinte anos como profissional de imprensa, dez deles pelo Estado de S.Paulo.
Entre fevereiro de 2006 e dezembro de 2008, produzi 208 matérias jornalísticas enfocando a Embraer pela Gazeta Mercantil, várias com grande repercussão. Foram 79 primeiras páginas assinadas e diversas manchetes nas editorias de Transportes e Nacional.
O jornal
Apesar de a Embraer lançar sua enorme estrutura contra mim, inclusive me desmentindo e me desqualificando constantemente junto a outros órgãos de imprensa, o dia 19 de fevereiro último foi especial. Ali vivi um misto de tristeza pelas 4.273 demissões – a maior da história da fabricante nacional – e pelo impacto sobre a economia do pólo aeronáutico, mas também um sentimento de alívio e de comprovação da seriedade com que tratei o assunto, desde o início.
A verdade tinha prevalecido, assim como o desafio de enfrentar um poder econômico gigantesco como o da Embraer. A liberdade de imprensa foi resguardada pela direções da Gazeta Mercantil e do grupo CBM, num voto claro de respeito à informação responsável e procedente.
Meus editores, que apostaram nas minhas apurações e partilharam comigo os momentos de agonia, puderam comemorar a vitória sobre a truculência de quem acreditou que submeteria o jornal à censura, desta vez de ordem econômica e sob o jugo do poder do capital privado.
Vários colegas de Redação me telefonaram emocionados, alguns chegaram a chorar, pois partilharam a tensão diária que vivi nesses últimos dois meses. Muitos deles tiveram experiências semelhantes ao longo de suas carreiras. Éramos, ali, todos Quixotes contra as pás do moinho da vaidade, da prepotência e da arrogância.
Pesos e medidas
Meu companheiro Luis Nassif não deixou barato as demissões e mandou em sua coluna, no dia 22 de fevereiro, o artigo ‘ A Embraer e o mito’:
‘Ainda não estão claros todos os motivos que levaram a Embraer a promover a maior demissão que uma empresa privada já fez no país: 4.270 funcionários, 20% de sua força de trabalho. É um gesto com muitas consequências. Numa ponta, indispõe a empresa com os governos estadual e federal, por quem ele sempre foi apoiada. Rompe com uma relação histórica de respeito com os funcionários e com a comunidade joseense. Junto à opinião pública, quebra uma imagem de respeito e invencibilidade.’
Nassif voltou à carga mais duas vezes, a última delas no domingo (1/3), sob o título ‘A Embraer, segundo seu presidente’:
‘Recebo do presidente da Embraer, Frederico Fleury Curado, carta sobre os problemas enfrentados pela empresa, que culminaram na demissão de 4.200 trabalhadores’.
Pelo visto, a Embraer e seus diretores e assessores são contra a informação, não contra a opinião. Pois em nenhum momento houve qualquer tentativa do exercício da humildade e reconhecimento da verdade, por mais explicita que ela seja e esteja. Eu e a direção da Gazeta Mercantil ainda aguardamos explicações sobre tanta ânsia em censurar a verdade e o exercício do jornalismo.
Termino com algo que escrevi em minha defesa na própria Gazeta Mercantil: ‘Jornalismo não é feito para agradar ou desagradar ninguém. Sua função é informar e formar a sociedade da melhor maneira possível’.
******
Jornalista, pós-graduado em jornalismo científico