Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Repetições, engodos e castigos de Sísifo da Silva

Rebelde, malicioso, o mais astuto dos mortais, capaz de enganar os deuses e até ludibriar a morte — não apenas uma, mas duas vezes — Sísifo foi pintado pelo renascentista Tiziano no momento em que cumpria um dos lances do interminável castigo que lhe foi imposto: empurrar morro acima a pesada peça de mármore e, chegando ao topo, assistir a uma poderosa força fazendo-a rolar até o chão. Em seguida, tudo recomeçava, sem alteração ou interrupção.

A lenda grega e sua carga simbólica inspiraram o franco-argelino Albert Camus, um dos pais do existencialismo, a compor durante a ocupação nazista, aos 28 anos, “O mito de Sísifo”, ousado ensaio onde lança a sua filosofia do absurdo com a mais inquietante afirmação do pensamento moderno: “só há um problema filosófico verdadeiramente sério — o suicídio”.

Sísifo, por Titan, quadro do Museu do Prado / via Wikipedia / CC

Sísifo, quadro do Museu do Prado / via Wikipedia / CC

O Sísifo que nos interessa não é o de Camus, é uma versão mais próxima do original com os pés no chão, finório, autêntico vivaldino tropical, Sísifo da Silva ou de Andrade, contumaz explorador da exuberância e da fartura à sua volta e, por isso, impaciente, sôfrego e insatisfeito, avesso ao esmero, descuidado. Enérgico e fatigado, triste mas eufórico, trágico nas contradições.

“Vai dar certo, basta começar”, seria o moto do seu brasão, se tivesse o tempo, gosto ou empenho para desenhar um brasão e dar acabamento ao que iniciara. Inventivo, de certa forma incansável, confiante e desperdiçador, não repara em detalhes, nem percebe caminhos já percorridos. Incapaz de enxergar repetições – curva-se a elas. Não se dá conta dos retornos, reiterações, do já visto, já vivido e já experimentado.

Neste ponto é que se dá a fatal convergência entre o Sísifo de Éfira e seu homônimo da Silva, Não percebem o absurdo a que foram condenados nem a monstruosa repetência a eles impostas.

No discurso proferido no final do ano passado em Campinas ao receber o título Professor Emérito, Carlos Vogt, ex-Reitor da Unicamp lembrou nosso cacoete de utilizar o adjetivo novo/nova para disfarçar velhas fórmulas e venerandas experiências: Nova República, Estado Novo, Cinema Novo, Bossa Nova, Novo Jornalismo, Escola Nova, Cidade Nova, Não completamos as tarefas, simplesmente as renomeamos e vamos em frente esquecidos que estamos marcando passo ou indo para trás.

Quantos surtos inflacionários já debelamos nos últimos cem anos? Quantas medidas desesperadas foram adotadas para conter os gastos desde que Campos Sales decidiu suprimir o papel-moeda? Quantos mares de lama já foram encontrados a partir do momento em que se desvendou que as burras do Estado — e não os postes — são imbatíveis em eleições? Quantas reformas político-partidárias foram paridas depois dos generais e marechais decretarem que só admitiriam duas agremiações – a do Contra e do a Favor – e em seguida liberadas desde que seus nomes começassem com um “P” ?

Quantas vezes já erradicamos a febre amarela nos últimos cem anos? Mas não acabamos com o aedes egypti  Aedes aegypti nem com os mortíferos vírus que continuamente hospeda e espalha. Acontece que este mosquito-vetor — Coisa Ruim até no nome — se dá o direito de aderir ao darwinismo, de acreditar na sobrevivência dos mais fortes e na evolução das espécies. Nós, Sisifos da Silva preferimos os atalhos das vacinas a atalhar o mal pela raiz.

Quantas vezes mais seremos iludidos por uma suposta liberdade de expressão porém proibidos de verificar o quanto é verdadeira?

O pecado dos Sísifos daqui ou d’alhures não foi o de ofender os deuses mas o de resignar-se a percorrer os mesmos caminhos sem alarmar-se com repetições . Os revolucionários russos em 1917 adotaram a Marselhesa sem lembrar que a Revolução Francesa fracassou em grande parte por conta dos próprios revolucionários.

Diz a lenda que Sísifo teria sido um dos primeiros gregos a usar a escrita. Nesse caso serviu-se do conhecimento para impor suas espertezas, engodos e auto-engodos sem recorrer a um elemento essencial da condição humana: o impulso para se libertar.

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Alberto Dines é jornalista, escritor e cofundador do Observatório da Imprensa