Instigar o pensamento, formar cidadãos conscientes de seus direitos e deveres, atender às reais necessidades de uma determinada comunidade. Esses são alguns dos objetivos das rádios comunitárias, emissoras que nem sempre são compreendidas em seu papel e, na maior parte das vezes, são perseguidas justamente por trazerem em sua essência uma crítica ao modelo de mídia dominante. Na opinião da jornalista Neusa Ribeiro, ‘as rádios comunitárias são instrumentos de democracia que podem contribuir no desenvolvimento das comunidades locais’. Através delas, sublinha, ‘as pessoas irão buscar o conhecimento por seus próprios estímulos, e não só por estarem sendo forjados a um tipo de programação que é meramente consumista e alienante’.
Neusa fala, também, sobre a polêmica a respeito das rádios piratas: ‘Na verdade, não existem rádios piratas. Rádio pirata é um termo usado por alguns setores da sociedade que não concordam com o uso do meio rádio voltado para o interesse das comunidades’. E arremata: ‘Há uma confusão muito grande nesse sentido, e as emissoras comerciais fazem isso com o propósito de boicote, porque não há interesse de que a população seja realmente bem informada’. O papel do jornalista como agente social transformador, que une questões de interesse social com questões de sua formação e aspectos tecnológicos, é outro ponto discutido na entrevista concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Por mais de vinte anos atuando como jornalista, Neusa trabalhou em rádios locais, comerciais e jornais em Porto Alegre. Morou por dois anos em São Paulo, onde trabalhou na Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, na Rádio Eldorado e algumas agências de comunicação. Especializou-se em comunicação comunitária fazendo assessoria a sindicatos de trabalhadores, interessando-se especialmente por rádios comunitárias. É professora universitária desde 2001. Atualmente, ensina na Feevale. Graduou-se em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é mestre e doutora em Comunicação pela Unisinos, com a tese A mediação das mulheres na constituição das redes informais de comunicação.
Sua entrevista.
***
O que muda com o projeto do governo encaminhado ao Congresso para descriminalizar rádios comunitárias ao acabar com a pena de prisão para quem for flagrado operando sem autorização?
Neusa Ribeiro – De maneira geral, muda a perspectiva do uso do meio rádio comunitário e da responsabilidade de quem gerencia o processo e executa, realmente, um trabalho voltado para as diferentes comunidades com o uso da rádio e com a intenção de realmente realizar algo para o desenvolvimento dessas comunidades que têm rádios instaladas. Se houver uma caracterização nesse processo de um efetivo desenvolvimento com o uso da rádio, realmente faz sentido essa descriminalização.
A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (ABERT) disse que o projeto incentiva rádios piratas. Isso tem fundamento?
N.R. – A luta é permanente. A Associação Gaúcha de Emissoras de Rádio e Televisão (AGERT) é completamente contra esse projeto. Há um posicionamento político e comercial a respeito do processo. É uma posição dada e clara dos empresários de comunicação. Com relação à legislação nacional sendo implementada para o benefício, ou para que os procedimentos com o uso das rádios comunitárias sejam efetivamente regulamentos, esta questão da indução ou não de rádios piratas é uma visão muito parcial dos empresários. Na verdade, não existem rádios piratas. Rádio pirata é um termo usado por alguns setores da sociedade que não concordam com o uso do meio rádio voltado para o interesse das comunidades. Na verdade, há uma legislação que caracteriza esse processo, que está sendo regulamentada desde 1998. Trata-se da Lei 9.612. Essa lei está dada e, até hoje, não foi totalmente regulamentada em função da pressão dos empresários.
Quando se fala em ilegalidade nas rádios, num processo que não é abraçado por determinados setores sociais com o uso das rádios comunitárias, há um exagero e um uso indevido dos termos. O termo adequado é rádio comunitária, para qualquer uso do meio rádio. O termo rádio-pirata é pejorativo para o processo, que tenta confundir a população com a adequação do uso das rádios comunitárias. Há um procedimento geral, cultural, inclusive, que não reconhece o processo das rádios comunitárias como um elemento legítimo para o desenvolvimento de determinadas comunidades que utilizam o meio como algo necessário para o aumento de conhecimentos e para seu crescimento em si.
Que mudanças seriam necessárias na legislação das rádios comunitárias? Ainda existe uma herança autoritária na legislação atual?
N.R. – Eu não diria uma herança autoritária. Penso que há, isso sim, diferentes equívocos políticos criados e constituídos pelos próprios legisladores, que são detentores de canais, emissoras comerciais. Temos, no Congresso Nacional, uma grande maioria de deputados federais e senadores, que são proprietários de rádios comerciais. Esse lobby, e essa pretensa legalidade que buscamos, efetivamente, ou que as emissoras comunitárias buscam, entravam nesses procedimentos políticos que são ‘manuseáveis’ no Congresso. Penso que o que acontece é que há, realmente, entraves colocados pela disputa. O que está mesmo em discussão é a hegemonia da audiência. Quando se fala em disputa de rádios comerciais com rádios comunitárias se fala na disputa da hegemonia da audiência. Então, o sentido efetivo é de uma audiência das rádios comunitárias se formando através de uma programação mais educativa, cultural, menos comercial no sentido da padronização e da pasteurização dos conhecimentos que são colocados nas suas programações. Há uma série de elementos que disputam o conteúdo e a formação intelectual do ouvinte. No caso das emissoras comerciais, é lógico que há a questão dos espaços comerciais, que nesse caso estão forjando uma audiência voltada essencialmente para o consumo de produtos. Essa questão do embate que se dá vem através desses procedimentos. Uma legislação que não está totalmente regulamentada e que não se coaduna com todas as possibilidades das emissoras comunitárias estarem a pleno funcionamento para o interesse e desenvolvimento dessas comunidades ocorre em função de todo esse sistema instaurado.
O que se deveria melhorar na legislação? Aí caberia aos movimentos sociais e às comunidades interessadas buscar essas discussões em seus próprios nichos de organização. Na medida em que as emissoras comunitárias são enfraquecidas legislativamente, em Brasília, com toda essa discussão e aparato, o próprio movimento social se retrai e acaba não conseguindo alcançar um status de poder, que poderia possuir, para olhar suas próprias necessidades usando a comunicação comunitária como instrumento de desenvolvimento local. Nesses casos, sim, há uma evasão de energia das comunidades, que acabam se desinteressando por essas questões. As emissoras comunitárias ficam, assim, na mão de quem não deveriam ficar – os próprios legisladores, que são proprietários de emissoras. Penso que há elementos importantes na discussão final da legislação, como a amplitude do espaço eletromagnético, das antenas, da localização, da transmissão do raio da antena. Há elementos aí que são concretos na legislação, provados ‘por A mais B’ de que há restrições graves. Mas quem deve fazer essas discussões são as próprias comunidades, que devem se beneficiar desse tipo de emissoras.
Qual seria a função social do rádio no Brasil?
N.R. – A função social do rádio no Brasil continua sendo essencial na troca de conhecimentos entre diferentes comunidades, na medida em que nós ainda temos uma população alijada de determinadas instâncias dos saberes, sejam universitários, sejam de níveis intelectuais um pouco mais desenvolvidos. O rádio continua tendo grande importância para as comunidades que vivem nessas condições, com dificuldades de acesso a sistemas mais tecnológicos. Sabemos que a grande massa da população ainda tem dificuldade de acesso a computadores, internet, processos de globalização. Isso ainda existe no Brasil. O rádio tem uma eficiência na divulgação de informações para a grande maioria da população, inclusive aquela que não tem acesso a meios mais desenvolvidos. Por outro lado, com o avanço tecnológico tão acelerado, em contrapartida a essas dificuldades que apontamos, acredito que o rádio é essencial porque é uma mídia que intervém muito rapidamente na transmissão da informação. Essa presença do rádio em locais onde ainda a TV não alcança, onde o computador e a internet não chegaram, é fantástica para o desenvolvimento das comunidades.
Por mais que se transformem a tecnologia, que haja avanços e desenvolvimentos com o uso do rádio digital, que vem por aí, mais se acelera um processo de apropriação que deveria estar na mão da própria população. Há um contraste nisso, porque continuam a acontecer concessões de emissoras para determinados grupos, como um empresariado que é dominador economicamente. Existe uma dificuldade de se estabelecer uma troca no processo de concessões das emissoras em Brasília. Há um processo muito lento de nosso governo federal, que infelizmente não favorece a implantação dessas emissoras comunitárias com mais estímulo e apropriação por parte de suas comunidades.
E essa função social está sendo cumprida?
N.R. – De certa forma, está sendo cumprida na medida em que, bem ou mal, o rádio está no ar. As emissoras estão funcionando, só que com aquela característica mais voltada aos interesses da população, não.
Segundo a Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (ABRAÇO), pelo menos uma rádio comunitária é fechada por dia. Por que essas rádios são tão perseguidas e oprimidas?
N.R. – O processo de discussão do uso da emissora comercial em contrapartida às emissoras comunitárias é muito forte, bem como o processo de disputa. E essa disputa se dá não apenas pelos elementos mais simplistas, como a história de que as rádios comunitárias atuam negativamente, ou que a sua tecnologia atinge a aviação nacional. Tecnicamente falando, isso é um absurdo. Não há nada que comprove que uma onda sonora interfira numa queda de aeronave. São faixas de transmissão diferenciadas. O que haver em uma cabine de avião é a possibilidade de captura de ondas sonoras de diferentes instâncias, que não vem apenas de rádios comunitárias. Há uma confusão muito grande nesse sentido, e as emissoras comerciais fazem isso com o propósito de boicote, porque não há interesse de que a população seja realmente bem informada. Essa é a discussão maior. A disputa se dá por uma ampla audiência.
Enquanto houver uma programação pasteurizada, com ‘musiquinhas’ comerciais, americanas, ou do Brasil, que pegam o ‘hit’ nacional de um cantorzinho da moda, e não houver a possibilidade de uma discussão sobre isso, num outro campo, mesmo na programação de uma rádio comunitária, isso se caracteriza como um lobby forte de manipulação sobre a população. Se dermos esse tipo de programação permanentemente aos jovens, eles acabarão assimilando um gosto cultural e musical nesse formato. Mas se dermos uma programação variada, que fale de cultura geral, de músicas do mundo, do folclore nacional, dos outros países, de uma história musical brasileira, estaremos oferecendo uma formação intelectual aberta, passível de discussão de conhecimentos com mais sabedoria. As pessoas irão buscar o conhecimento por seus próprios estímulos, e não só por estarem sendo forjados a um tipo de programação que é meramente consumista e alienante.
Em que sentido as rádios comunitárias são uma expressão e exigência pela liberdade de comunicação e, consequentemente, por mais democracia?
N.R. – Essa é a grande questão. Na medida em que se abrem as portas para discussões desses âmbitos, em que podemos, abertamente, falar sobre o que é a mídia no Brasil hoje, numa programação de rádio, por exemplo; se tivermos um grupo de discussão numa rádio comunitária que discuta sobre a mídia local, esse é um processo democrático importante. Esse processo dá ao cidadão a noção de que ele é um ser que tem direito de opinar e pensar sobre o que lhe é colocado à disposição nesse formato de programação midiática. Isso é democracia, isso é reconhecer a sabedoria do cidadão que faz parte de um processo democrático e que constrói a sua realidade com os seus saberes. E, na medida em que esse cidadão vai descobrindo tais caminhos, se torna uma pessoa com muito mais possibilidade de definir o que é melhor para ele na questão política, inclusive. Ele terá acesso a mais conhecimento, a mais estudos, condições de poder opinar e ter o domínio de sua própria vida, diferente de uma questão que lhe é imposta, dada, manipulada, e na qual ele deve pensar daquele jeito.
Nesse sentido as rádios comunitárias são chave para aumentar a inclusão social em nosso país?
N.R. – Sem dúvida. As rádios comunitárias são instrumentos de democracia que podem contribuir no desenvolvimento das comunidades locais. Há experiências no mundo inteiro, sobretudo na América Latina, nas regiões andinas, do Equador, Chile, Venezuela, com emissoras comunitárias em que as comunidades aprendem a lidar com seus processos de comunicação de uma forma em que isso venha a melhorar a qualidade de vida dessas comunidades. Então, essas experiências, desde as rádios mineiras da Bolívia, em 1948, são experiências que tem um registro histórico que, bem ou mal, tem se consolidado ao longo dos processos de comunicação de diferentes países e diferentes comunidades. No Brasil, temos muitas dificuldades por uma legislação engessada em alguns conceitos, alguns processos voltados e mais vinculados a essas questões das rádios comerciais.
Que exemplos de rádios comunitárias significativas a senhora citaria no Brasil?
N.R. – Não podemos deixar de falar na Rádio Favela, de Belo Horizonte, que ganhou prêmio da ONU. É uma emissora que, desde 1983, atua muito fortemente junto à comunidade da Serrinha. Ela fez história. Há um filme que foi baseado na Rádio Favela: Uma onda no ar. No Rio de Janeiro há outras rádios comunitárias importantes, algumas delas recentemente fechadas. Cito a rádio Novos Rumos, uma emissora que lutou muito contra o fechamento. Em São Paulo há várias outras importantes.
E qual é a importância da formação do jornalista no aprofundamento de um fazer comunitário de comunicação?
N.R. – Penso que é um dado fundamental que, nos processos de ensino dos cursos de comunicação hoje, as emissoras comunitárias são colocadas em disciplinas que são de modelo optativo para o estudante. Eu considero isso algo de um sentido bastante equivocado nos currículos escolares porque, se falarmos de comunicação comunitária, falamos em comunicação social, e quando falamos de comunicação social trata-se de comunicação social para a sociedade, e com a sociedade. Um estudante de jornalismo que se forma hoje tem muito pouca noção desses processos sociais que envolvem o desenvolvimento local e a ação do jornalismo especificamente voltada para esses interesses da sociedade. Temos um ensino que visa a formação do jornalista, mas com um cunho mais generalista, e não com um cunho mais aprofundado para as diferentes comunidades.
Como professora universitária há nove anos, e trabalhando com essa disciplina, penso que devemos formar um estudante e um jornalista com um olhar e perspectivas sociais, de seu crescimento, olhando a sociedade e desenvolvendo um processo profissional em que ele atue com esta perspectiva, valorizando as questões sociais. Isso é uma referência muito importante no processo de formação do jornalista.
O jornalista é, hoje, mais do que nunca, um agente social transformador, e neste caso, tem que aprender a associar as questões de interesse social com as questões de sua formação e os aspectos tecnológicos que estão sendo ofertados no mercado. Essas ferramentas devem servir ao desenvolvimento da sociedade, e não ao desenvolvimento de grupos de empresários que acabam manipulando e detendo o poder dessas questões. É preciso olhar aguçado para as questões sociais.