Na primeira parte da reportagem foi mostrada a presença de Odebrecht em diversos segmentos da atividade econômica e social em Angola. Na segunda e última parte da investigação, o foco se concentra nas ligações políticas da empresa brasileira na ex-colônia portuguesa na África. O texto começa com a visualização das conexões com o governo do presidente José Eduardo Santos:
Para a pesquisadora Anna Saggioro, do Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Relações Internacionais (Lieri), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, é impossível dissociar o poder do presidente com o poder da Odebrecht. “A gente vê o grau de autoritarismo do governo angolano, e a gente não pode descolar a Odebrecht desse autoritarismo. A Odebrecht atua junto com o governo angolano em uma série de empreendimentos e também nas suas ligações internas. Não podemos simplesmente dizer que é apenas uma empresa que segue as regras”, avalia.
Ricardo Soares diz que, como pesquisador, é muito difícil analisar a atuação da Odebrecht no país, pois há pouca informação e transparência. “As especulações sobre a relação da Odebrecht com a elite angolana são inteiramente legítimas. Se a Odebrecht está preocupada com a sua reputação, só tem que clarificar a natureza dessas relações. Até que ponto eles são lucrativos, qual é a lógica desses projetos? Por exemplo, eu gostava que a Odebrecht colocasse disponível uma lista exaustiva de seus negócios. Tenho uma lista de exemplos, e não há mês que passe que não venham dizer que a Odebrecht está, afinal, metida aqui ou ali”.
Um país em obras
De fato, são tantos os contratos e investimentos públicos e privados que é muito difícil obter uma lista completa dos empreendimentos da Odebrecht em Angola, ou avaliar os lucros auferidos ao longo de tantos anos. A reportagem pediu essa listagem, mas não foi atendida. A receita total da empresa no país não consta do seu relatório anual 2014, diferentemente do valor gasto com projetos sociais e ambientais, nitidamente visível: US$ 17 milhões em 2014. O que consta, ali, é apenas o “valor econômico distribuído” – impostos, salários, pagamento de fornecedores, investimentos na comunidade, custos operacionais e de financiamentos – no total de US$ 1.851.780.000. À Pública, a assessoria de comunicação da Odebrecht afirmou que a receita foi da ordem de US$ 1,8 bilhão. Ou seja, nenhum lucro. Sobre esse questionamento, a empresa retrucou: “A conclusão não é correta. A Odebrecht teve lucro em Angola e tem todas as suas contas auditadas por auditor independente. Como se sabe, as operações da Odebrecht em Angola são executadas por companhia de capital fechado que não está sujeita à obrigação de publicar as suas contas. De qualquer forma, as contas consolidadas do negócio de Engenharia e Construção da Odebrecht são disponibilizadas para os seus stakeholders”. (Leia aqui as respostas da Odebrecht ao nosso questionário)
Ao longo de meses de pesquisa, a Pública elaborou uma lista extensa – porém provavelmente não exaustiva – dos contratos e investimentos da empresa brasileira ao longo de 32 anos em Angola. Veja na linha do tempo:
Entre as obras, há diversos “elefantes brancos”, imensas construções que não geraram a prometida riqueza às suas populações. Para o pesquisador Mathias Alencastro, a multiplicação de projetos da Odebrecht em Angola cumpre um papel estratégico. “Ela cria a sensação de um movimento de reconstrução permanente, de que o país está mudando, que é a grande retórica que o MPLA criou para sufocar as contestações, legitimando seu poder autoritário. O que importa é que os projetos sejam anunciados, não que sejam bem-sucedidos”, analisa.
Em 2006, a Odebrecht aceitou mais um pedido presidencial ao entrar em uma nova área de negócios: supermercados. Inicialmente, o contrato cobria a construção e implementação da Rede Nosso Super, com 32 lojas em todas as províncias do país e dois centros de distribuição e logística. O objetivo era nobre: prevista para ser operada pelo Estado angolano, a rede deveria absorver a produção local de camponeses. Não foi o que ocorreu. Executado ao abrigo do Programa de Reestruturação do Sistema de Logística e Distribuição (Presild), com assessoria da Odebrecht, a rede acabou entrando em crise por má gestão, sofrendo desabastecimento, com boatos de falência, e suas lojas foram fechadas no fim de 2011.
O programa, da forma como estava concebido, não era sustentável, pois tinha custos bastante elevados, reconheceu a ministra do Comércio, Idalina Valente. Seis anos depois de ter entregado as lojas ao governo, a Odebrecht recebeu a concessãode exploração da rede, na qual grande parte dos produtos é importada. Segundo reportagem do jornal O País, há incapacidade de fornecimento de produtos nacionais. “O abastecimento tem sido débil. Temos recebido produtos, uma vez ou outra. No Nosso Super sempre foi assim. O fornecimento e o abastecimento continuam a ser os mesmos. Nada mudou. Só subiram os preços”, informou ao jornal uma funcionária do Nosso Super.
Outro exemplo de investimento frustrado é o aeroporto internacional de Catumbela, na província de Benguela, oeste do país, que fica a apenas 20 quilômetros de outro aeroporto, o 17 de Setembro, este encravado na zona mais elevada da cidade. O aeroporto “internacional” foi inaugurado em 27 de agosto de 2012 com fanfarra: o próprio presidente foi ao local para o evento, realizado a quatro dias das eleições presidenciais. Ambicioso, o projeto previa colocar Benguela no mapa internacional, com rotas de voo de diversos países e capacidade para atender mais de 900 pessoas por hora.
O investimento total, segundo o site Rede Angola, foi de US$ 250 milhões – metade garantido via empréstimo do BNDES. Mas, dois anos depois da inauguração, faltavam ainda o terminal de carga, instalações para alfândega e montagem de equipamentos. Por isso, até hoje a Associação Internacional do Transporte Aéreo (IATA) não certificou o aeroporto. Hoje, atende apenas voos domésticos para Luanda. “Não temos voos suficientes para aproveitar o potencial que existe na província de Benguela”, reconheceu o ministro de Transportes no ano passado. O outro aeroporto, que antes atendia vôos nacionais, hoje só abre alguns dias da semana e é usado por autoridades e vôos privados.
Uma obra contratada para revolucionar a baía de Luanda – a Marginal Sudoeste – também está parada. O primeiro projeto, a construção de pontes para permitir a construção da marginal (baixe aqui o decreto presidencial), recebeu financiamento de R$ 21 milhões do BNDES. Mas a marginal, em si, nunca saiu do papel. Hoje, o trecho reservado a ela, de 8 quilômetros entre a praia do Bispo e o largo da Corimba, na baía da capital angolana, parece um cenário apocalíptico: onde antes havia um musseque com milhares de pessoas, o bairro da Chicala, sobraram destroços das casas, derrubadas violentamente por tratores por noites a fio; sobre elas, alguns antigos moradores fizeram barraquinhas para vender comida e refrigerantes.
“A construção da Via Marginal Sudoeste foi dividida em duas etapas. A primeira, objeto do financiamento citado, foi concluída em agosto de 2012. A Construtora Norberto Odebrecht também foi contratada para execução da segunda etapa do empreendimento, que contempla os trabalhos de aterro hidráulico, proteção costeira, pavimentação, iluminação pública e outros. Esta etapa ainda não foi iniciada”, explicou por e-mail o coordenador de sustentabilidade da Odebrecht, Paulo Campos.
Foi Paulo, um elegante e gentil executivo carioca, quem ciceroneou a reportagem durante uma viagem de quatro dias, em setembro do ano passado, à maior zona contínua de atuação da empresa no país, às margens do caudaloso rio Kwanza. Um verdadeiro mergulho no coração da Odebrecht em Angola
Passeio no rio da Odebrecht.
O carro 4×4, cinza-chumbo, chega antes das 6 horas da manhã. A saída de Talatona, cujo traçado urbano é composto de longos desvios nas suas avenidas de mão única, não ajuda. Antes de conseguirmos sair de Luanda, engarrafamento, caos, atropelamento – passa pelo menos uma hora. Aos poucos, a paisagem se transforma, os musseques, candongueiros (vans) e zungueiras (mulheres que vendem verduras nas bacias que trazem à cabeça) vão dando lugar a terrenos secos, repletos de embondeiros, ou baobás, árvore-símbolo de Angola.
Chegar à província de Malanje, onde corre o médio Kwanza, a bordo de um carro da Odebrecht significa a certeza de acesso não só aos canteiros de obras como às comunidades nas redondezas. Acesso que parece fechado para todos aqueles que não contam com tal sorte. E não é que a reportagem não tenha tentado. “Não temos nenhum trabalho nas comunidades afetadas”, explicou-me por telefone a representante da ONG Adra – Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente, que defende direitos dos camponeses. “Mas apresentamos um projeto para a Odebrecht e, quem sabe, vamos começar em breve um trabalho lá.” No mesmo dia, um jornalista local desculpou-se por não poder nos levar até as comunidades: apenas visitas registradas e autorizadas pelo governo podem circular livremente.
O carro 4×4, cinza-chumbo, chega antes das 6 horas da manhã. A saída de Talatona, cujo traçado urbano é composto de longos desvios nas suas avenidas de mão única, não ajuda. Antes de conseguirmos sair de Luanda, engarrafamento, caos, atropelamento – passa pelo menos uma hora. Aos poucos, a paisagem se transforma, os musseques, candongueiros (vans) e zungueiras (mulheres que vendem verduras nas bacias que trazem à cabeça) vão dando lugar a terrenos secos, repletos de embondeiros, ou baobás, árvore-símbolo de Angola.
Chegar à província de Malanje, onde corre o médio Kwanza, a bordo de um carro da Odebrecht significa a certeza de acesso não só aos canteiros de obras como às comunidades nas redondezas. Acesso que parece fechado para todos aqueles que não contam com tal sorte. E não é que a reportagem não tenha tentado. “Não temos nenhum trabalho nas comunidades afetadas”, explicou-me por telefone a representante da ONG Adra – Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente, que defende direitos dos camponeses. “Mas apresentamos um projeto para a Odebrecht e, quem sabe, vamos começar em breve um trabalho lá.” No mesmo dia, um jornalista local desculpou-se por não poder nos levar até as comunidades: apenas visitas registradas e autorizadas pelo governo podem circular livremente.
Somos recebidas com um farto café da manhã no restaurante VIP da obra. Lá fora, um belo deck de madeira dá vista para o reservatório e a parte de trás do vertedouro. O consórcio liderado pela Odebrecht, junto às empresas Voith, Alstom e Engevix, recebeu o maior desembolso feito até agora pelo BNDES para Angola: US$ 464,4 milhões. De repente, nos apressam: “Precisamos ir, temos muito o que ver”. Ao nos aproximarmos de um edifício branco, alguém comenta: “As crianças estão esperando”. Quando abrem a porta – somos um grupo de cerca de dez pessoas, incluindo os diretores –, cerca de 20 crianças estão de pé olhando para nós. Ato contínuo, começam a cantar forte, desafinadas, batendo palmas num esforço treinado para nos impressionar. “Sejam bem-vindos, vossa presença é um prazer”.
A professora acompanha com um pandeiro. “Uma salva de palmas. As crianças do projeto Xalenu Kyambote são todas aqui da vila, temos a sala de alfabetização para crianças, temos curso também de informática, inglês e francês”, diz a professora, sob aplausos. As crianças continuam cantando quando fechamos a porta. Na sala contígua, três mulheres estão sentadas à máquina de costura, entretidas. Ganhamos um caderno e uma bonequinha de pano como lembrança. O desfile de projetos sociais segue: a Odebrecht beneficia 67 famílias com um programa de agricultura familiar, o PAF. “Todos os vegetais dos refeitórios vêm daqui”, diz o gerente de contrato Gustavo Belitardo. “Fazer hidrelétrica pra quem precisa é a maior satisfação que pode ter.”
No início da noite, chegamos a Laúca, uma cidade inteira no meio da savana. De longe, se vê o clarão amarelado de energia elétrica, onde não há nem uma chama em quilômetros. Somos hospedadas na espaçosa casa de convidados, com quartos luxuosos, ar-condicionado, TV de tela plana – e um cartãozinho de boas-vindas, ao lado de uma caixinha do Boticário com um sabonete rosado e hidratante de marshmallow.
“Tá parada”
Numa manhã calorenta, o tour do dia será conhecer a Biocom, principal e mais vistoso empreendimento do Pólo Agroindustrial de Capanda, projeto considerado prioritário pelo governo angolano, com uma área de 411 mil hectares. A Odebrecht foi contratada para administrar o pólo por US$ 49 milhões, em abril de 2011, segundo o Diário da República (baixe aqui o decreto). A cerimônia de assinatura teve a presença dos ministros da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pesca e Urbanismo e Construção, amplamente divulgada na controlada imprensa angolana.
No entanto, a paisagem desoladora – os pequenos vilarejos de casas de barro dão lugar a um imenso vazio – demonstra que o projeto está longe de render os frutos prometidos. De repente, avistamos uma fazenda – a placa que indica “Pugo Andongo”. Paulo Campos pergunta para o motorista Frederico Huambo: “Não tá acontecendo nada aí na Fazenda Pungo Andongo, né?” “Tá parada”, responde Frederico.
A fazenda, de 33 mil hectares, chegou a ser o cartão-postal do pólo. Foi inaugurada em 2006 – novamente com a presença do presidente José Eduardo dos Santos. A promessa de revolucionar a
agricultura angolana ganhou destaque nos jornais, e uma parceria com a Embrapa, para a reprodução de sementes e treinar técnicos angolanos em experimentação agrícola, foi bastante celebrada na comunicação institucional da Odebrecht. O site oficial mostra como últimos “resultados” da Pungo Andongo a safra de 2010-2011, que produziu cerca de 5 mil toneladas de milho. O que aconteceu depois? Não se sabe. “Não existem informações oficiais sobre a execução desse projeto nem sobre o que se está a produzir”, critica Carlos Cambuta, coordenador de projetos da Adra. “A verdade é que estamos a caminhar para o terceiro, quarto, quinto ano do PAC e ainda não temos visto os resultados. Pode ser que tenham estudado, mas os resultados não foram compartilhados.”
A Embrapa explicou à Pública que assinou um memorando em 2008 com a Odebrecht para viabilizar o convênio, mas ele venceu em 2013 sem ser executado. A Odebrecht limitou-se a informar que “a fazenda Pungo Andongo é objeto de uma concessão para implantação de um polo avícola e está em fase de estudos”.
Já a Biocom nos recebe em pleno funcionamento. A usina de cana-de-açúcar nasceu grandiosa, em 2008, com a promessa de produzir 60% do açúcar consumido em Angola, uma produção de 256 mil toneladas por ano. Somente seis anos e US$ 1 bilhão de investimentos depois, ela fez sua primeira plantação experimental, de 3,2 milhões de toneladas em 2014. Mas a grande estrela do Pólo Agroindustrial ganhou triste notoriedade no Brasil nos últimos anos: em junho de 2014, depois de uma reportagem do jornalista João Fellet, da BBC, foi denunciada pelo Ministério Público do Trabalho no Brasil por manter cerca de 400 empregados brasileiros em condições análogas à escravidão, mediante aliciamento e tráfico internacional de pessoas. Os trabalhadores denunciaram sujeira nos banheiros e cozinha, longas jornadas de trabalho e o isolamento – no meio do PAC, eram vigiados por seguranças armados.
Em 1º de setembro de 2015, a Odebrecht foi condenada a pagar uma indenização de R$ 50 milhões aos trabalhadores. No dia seguinte, chegamos à usina. Fernando Koch, diretor de sustentabilidade da Biocom, um brasileiro com anos de trabalho na Odebrecht, está irritadíssimo. “Isso é um absurdo. Não é verdade”, repete. “Os angolanos estão com vergonha da nossa imprensa”, diz. O telefone toca diversas vezes, com mais pedidos de entrevistas sobre o caso. Ele vocifera: “As provas que nós juntamos no processo não foram em momento algum mencionadas pelo juiz”. A Odebrecht recorreu, negando todas as acusações.
No entanto, o fato mais grave – e reconhecido pela empresa – tem raiz na profunda aliança com o Estado angolano. Contratados para trabalhar durante alguns meses, os operários chegavam a Angola com um visto ordinário, e seus passaportes eram entregues ao Serviço de Migração e Estrangeiros de Angola (SME). Sem os passaportes, os funcionários alegaram ter cerceado seu direito de mobilidade. “A lei que diz que empresas de interesse nacional têm o direito de expatriar pessoa com o visto ordinário para que o visto de trabalho seja tramitado em Angola”, conta Koch. “O período que a pessoa fica sem o passaporte, ela tem um recibo do SNE que tá lá dizendo que ele pode circular tranquilamente pelo país.”
Entre uma reclamação e outra, Koch nos mostra os alojamentos dos atuais empregados – bem-apresentados, limpos, amplos. Na colheita, ele nos leva até a “área de convivência”, uma van de alumínio pintada de azul. E vai perguntando para a única operadora de colheitadeira mulher: “O que você acha da Biocom?”. Ao que ela responde: “Muito bom, a Biocom veio aqui para ajudar a gente. Antes não tinha emprego, agora tem, todo mundo tá trabalhando”. Pouco depois, Koch interrompe outro trabalhador, brasileiro, diante dos laboratórios da indústria: “Você gosta de trabalhar aqui?”. “Sim, muito”, ele responde, recebendo um encorajador tapinhas nas costas.
Empreendimento de interesse nacional, a Biocom nasceu de uma aliança da Odebrecht com a estatal petrolífera Sonangol e a empresa Damer Industrial S.A. Segundo documentos constantes em um inquérito conduzido pela Procuradoria Geral de Portugal em 2014 aos quais a Pública teve acesso (Baixe aqui: Página 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7), a empresa pertence ao ao hoje vice-presidente, José Manuel Vicente, além do general Manuel Helder Vieira Dias, o poderoso Kopelipa, chefe da Casa Militar da Presidência, e o general Leopoldino Fragoso do Nascimento, o “Dino”. A Damer tinha 40% do negócio – o que fere a lei angolana da Probidade Pública, já que seus sócios mantinham cargos no governo.
Com base nisso, Rafael apresentou uma queixa-crime para a Procuradoria-Geral da República de Angola. “Recebi resposta de que esses dirigentes não eram sócios da Biocom, incluindo o general Leopoldino Fragoso”, diz (baixe aqui a resposta da Procuradoria). Fragoso foi nomeado consultor do general Kopelipa em setembro de 2010, quando a Biocom já caminhava, segundo a revista americana Foreign Policy. Já o vice-presidente Manuel Vicente era, na época, presidente da Sonangol. “Os dirigentes na presidência facilitaram o negócio pra ficarem com parte da sociedade. É um ato de corrupção claro”, diz Rafael.
Hoje, o nome da Damer sumiu das brochuras da Odebrecht, e não se fala mais nisso. Foi substituída por outra empresa, o grupo Cochan, com sede em Cingapura, cujo presidente é o mesmo general Leopoldino Fragoso. Em entrevista à revista Foreign Policy, o general “Dino” reiterou que, hoje, não ocupa mais nenhum cargo público. À Pública, a empreiteira diz que a alteração societária foi feita em 10 de outubro de 2014, “não sendo do conhecimento da Odebrecht o motivo da transferência”.
A Damer gráfica, que também é de Manuel Vicente, segundo os documentos da PGR portuguesa, foi reformada pela Odebrecht em 2009. A queixa-crime no Ministério Público foi arquivada pelo juiz em janeiro de 2013 “pela inexistência de quaisquer indícios de veracidade”. “Nenhum órgão público investigou absolutamente nada em 30 anos de Odebrecht em Angola”, diz Rafael Marques.
Lauca é um espetáculo
Conhecer a hidrelétrica de Laúca e todos os projetos a ela associados, ponto alto e final do tour, levou quase dois dias. Laúca é a hidrelétrica definitiva de Angola. Projetada para produzir 2.070 MW, ela vai dobrar a oferta de energia elétrica, gerando constantemente 1.200 MW, e promete acabar com a penosa economia à base de geradores.
Laúca é tão importante que recebe um desfile de autoridades todo ano. Em junho de 2012, o então ministro de Estado Manuel Vicente lançou a pedra fundamental junto com uma comitiva de ministros e a embaixadora do Brasil. Em setembro de 2014, o presidente José Eduardo dos Santos visitou as obras da barragem, sendo recebido por milhares de pessoas; na ocasião, houve até uma reunião do conselho de ministros no canteiro da obra da Odebrecht. Um ano depois, foi a vez da ministra da cultura Rosa Cruz e Silva. A contar o histórico de obras da empreiteira em Angola, o desfile deve se acelerar em 2017, ano de eleições para presidente.
A construção da hidrelétrica marca o auge de uma era de empréstimos do BNDES para obras de construção em Angola. Ela é o maior financiamento cedido desde 2002 para um só empreendimento. Será de mais de US$ 2 bilhão de dólares, segundo anunciou Dahia Blando. O BNDES reconhece apenas uma parcela desse valor. Um investimento de US$ 146 milhões, já desembolsados, e outro no valor de US$ 500 milhões – o que não lhe tira a liderança nos empréstimos.
Há ainda um financiamento do Deutsche Bank de US$ 1,4 bilhão, e o valor total é de mais de US$ 4 bilhões. A obra é tratada com visível carinho pela equipe da Odebrecht em Angola. As cerca de 60 famílias que terão de ser removidas já participam de discussões sobre como serão as casas a ser construídas, que terão estrutura de saneamento básico, uma escola, um posto médico e estradas de acesso. Uma enorme melhoria em relação à situação atual, garante Maria Tchikanha, a eficiente engenheira agrônoma que é responsável pelo setor de responsabilidade social da AH Laúca. “Fizemos um levantamento socioeconômico na área, e o que verificamos é que as comunidades eram mesmo paupérrimas. Para além de não ter rendimento, não tinha saneamento básico, não tinha escola, não tinha nada, viviam só de subsistência”, diz Maria. “O governo começou a construir uma escola, não terminou, por alegada falta de verbas. Construíram um hospital que vivia fechado. Não tinha nenhum mercado para poder comprar um produto. As pessoas viviam aqui de cavar poço e das mandioqueiras.”
Estamos diante da escola da comunidade do Muta, na estrada que leva a Malanje, cuja obra foi terminada pela Odebrecht. Não é à toa que, quando entramos em uma das classes onde cerca de dez meninos e meninas assistem à aula, eles respondem em coro:
– Vocês sabem o que é o Brasil?
– Nãããããao!
– Vocês sabem o que é a Odebrecht?
– Laúca!
– E pra que estão fazendo Laúca?
– Pra produzir energia…
– E vocês já têm energia em casa?
– Nããããããããao – gritam em uníssono.
Fechando a porta da escola, Maria mostra um bebedouro com algumas torneiras e tanques, o “fontanário” construído pela Odebrecht que atende, como a escola, cinco comunidades que ficam até 2 quilômetros de distância. O plano inicial, diz, era requalificar todas as comunidades, garantindo a provisão de luz e água de maneira mais eficiente. A terraplanagem até começou, mas foi interrompida por ordens superiores. “Seria obrigação do governo provincial dar energia às comunidades”, explica Maria. “Nós temos que trabalhar sempre junto com o governo.”
Visitamos também comunidades que fazem parte do projeto social Kukala Ku Moxi, pelo qual homens e mulheres de 700 famílias foram capacitados a plantar uma variedade de verduras inexistente na região. A cada duas semanas, a Laúca realiza uma feira no canteiro de obra, e as mulheres vendem o que podem, chegando a até 45 mil kwanzas por viagem. As verduras servirão ao enorme refeitório, onde os cerca de 4 mil funcionários comem 15 mil refeições por dia. As hortas que visitamos são vistosas, e as mulheres, sorridentes. “Na minha lavra tem mandioca, milho, jingunba, todo tipo de produtos. E assim pra comer aqui graças a Odebrecth”, diz Maria Celeste, uma das lavradoras apontadas como entrevistadas pela equipe de comunicação.
A enormidade da obra é clara enquanto rodamos pelo canteiro; os trabalhadores angolanos que esperam à beira da estrada pelo transporte provido pela empresa – transporte público é inexistente –, devidamente uniformizados e com capacetes, parecem formiguinhas na enormidade da obra. Apenas o muro de concreto para a barragem terá utilizado, ao final, o equivalente a dez prédios de oito andares. Tudo é majestoso, organizado e bem-apresentado. O canteiro de obras tem salão de beleza, quadras esportivas, academia de ginástica, cinema, posto de saúde e equipe médica. O projeto inclui ainda tanques de tilápia, piscicultura, que abriga mão de obra da região; um enorme canteiro onde mudas locais são reproduzidas para ser replantadas, e um impressionante sistema de reúso de água reaproveita quase 40% do total da água utilizada. Os cuidados com a segurança são coroados com a presença da mascote “Javaluca”, um desenho com o capacete da Odebrecht cujas dicas estão espalhadas em cartazes e nas revistinhas mensais publicadas pela administração da hidrelétrica.
O diretor de contrato, Marcus Azeredo, não esconde seu orgulho ao conversar com a reportagem. “A nossa central de britagem é a maior do mundo em operação; a nossa central de concreto é uma das maiores do mundo, com capacidades elevadíssimas. Coisas desse tipo nos permitiram dar para Laúca uma forma diferente de construir uma hidrelétrica. Extremamente moderna, extremamente qualificada”, diz. De cabeça, o engenheiro lista o cronograma da obra – e é enfático: não há nenhuma possibilidade de atraso.
“Em julho de 2017 nós entramos com duas unidades de energia; em agosto, mais duas, e setembro, as últimas duas”, diz. Juntas, as seis unidades correspondem a 2 mil MW. Ao mesmo tempo, a Odebrecht constrói mil quilômetros de linhas de transmissão que prometem levar a energia até Luanda. “A linha fica pronta junto com Laúca”, garante Azeredo. “É um cronograma extremamente desafiador. Se nós conseguirmos, e vamos conseguir, gerar energia aqui nesse prazo, que é um prazo de 56 meses para a produção de energia, nós vamos ser mais eficientes que a própria construção que nós estamos fazendo no Brasil”, diz.
Ali na casa de visitas, onde estamos hospedadas, é frequente a presença de jornalistas, conta o diretor. “Acho que não tem uma semana que a gente não receba. E, quando eles não vêm, a gente convida a mídia. A gente abre as portas justamente para que possa se divulgar para o país tudo o que o governo tá fazendo”, diz. O relatório anual 2014 da Odebrecht respalda a sua impressão: naquele ano, cerca de 98% das notícias sobre a empreiteira na imprensa angolana foram positivas. O que o relatório não menciona é que, no país, há um único jornal diário, o estatal Jornal de Angola, e que as TVs abertas se resumem à TV pública, TPA, a TV Zimbo, privada, que tem como acionista o vice-presidente, Manuel Vicente, segundo levantamento de Rafael Marques.
A cobertura positiva tem razão de ser, aos olhos de Azeredo: o empenho de Laúca em melhorar a vida das pessoas. “Temos um alojamento de excelente qualidade, todos os quartos praticamente são suítes, e no máximo quatro pessoas por quarto, todos com ar-condicionado, chuveiro com água quente. A qualidade da alimentação aqui é excelente. Investimos em equipamentos novos, pagamos um bom salário, pagamos prêmio de produtividade…”, diz.
“Eu diria que, se não tivéssemos esse tipo de condição, nós não conseguiríamos fixar essa mão de obra aqui e aí teríamos um problema sério com nosso cronograma”, completa.
Laúca vai sair, garantem todos, durante a nossa despedida. E só uma voz solitária, entre os funcionários da Odebrecht, fala alto o que poucos se arriscam a dizer. “Tem que ficar pronta. Vai estar a produzir energia no ano de eleger o presidente. E ele já tá com 73 anos…”.
De fato, pouco depois o presidente José Eduardo dos Santos determinou que as eleições presidenciais serão em agosto de 2017 – um mês após a inauguração de Laúca. E haverá festa, haverá cerimônia e manchetes em toda a mídia angolana.