As manchetes da grande mídia precisam ser lidas, neste momento, pelo avesso. ‘BC está preocupado com a lenta queda da inflação’, manchete do Valor Econômico (28.02). Leitura oposta: ‘BC tem medo do crescimento econômico nacional na crise’. A manchete invertida expressa o subconsciente preocupado do sistema financeiro que manda na grande mídia nacional. Por que ter medo ou preocupação com a inflação em meio às tensões deflacionárias? Se a inflação aleija os salários e favorece o capital, a deflação destrói, simultaneamente, capital e salário. Escolha de Sofia.
O mundo capitalista está vivendo a fase que Keynes chamou de ‘eutanásia do rentista’. Excesso de poder econômico e excesso de produção jogaram os preços para baixo, emergindo deflação. O governo entra jogando dinheiro para baixar o juro e aumentar a inflação, escondida na dívida pública, que, dialeticamente, cresce no lugar dela.
Claro, os juros altos vigentes no Brasil tenderiam a cair e, conseqüentemente, diminuiriam os lucros do sistema financeiro, engordados na taxa básica de 11,75% e na de 150% no crédito direto ao consumidor, verdadeira expropriação popular. Configura-se, brutalmente, o crime do colarinho branco, sobre o qual o presidente do STF, Gilmar Mendes, silencia.
A crise mundial, como exemplifica a política econômica em despedaçamento nos países ricos, joga violentamente os juros para baixo, a fim de proteger a estrutura produtiva e ocupacional ameaçada de sucateamento decorrente do empoçamento do crédito podre. Sob deflação, o juro baixo representa tentativa desesperada de produção da inflação como expressão do aquecimento do consumo. Os bancos querem o consumo gelado e o juro quente.
O medo de Meirelles
Por que o BC nacional, comandado por funcionário de ex-banco internacional, Banco de Boston, teria medo da inflação, se a produção está desaquecendo, os empresários diminuindo custos e demitindo trabalhadores, ameaçando o sistema econômico?
Simples, porque a inflação, do ponto de vista bancocrático, significa, no contexto atual, juro baixo. O negócio com dinheiro está começando a ficar problemático para os banqueiros. Os bancos estão quebrando, os bancocráticos buscam socorro desesperado no governo, que se torna sócio do sistema financeiro.
O governo Obama, agora, já está operando diretamente no mercado financeiro brasileiro, ao se tornar dono de quase 30% das ações do Citibank, que dispõe de 26 agências em território nacional, podendo avançar mais, pois o capital do sócio privado apodreceu na especulação. A Casa Branca joga no sistema financeiro global por meio do City, na nova fase capitalista estatizante.
O Estado vira capital investidor e especulador para salvar o concessionário, Citybank, que faliu sob neoliberalismo esquizofrênico. Nesse ambiente, em que os bancos vêem seu capital minguar no juro baixo, sem poder prometer mais nada aos acionistas, subordinados aos juros negativos, como arma econômica anticíclica, qualquer reação que ameace seu ganho vira terrorismo econômico e político alardeado pelo poder midiático apavorado.
Dilma assusta poder midiático
Se a inflação subir mais um pouco, claro, Dilma ganhará a eleição. Dilma-Lula representam estatização bancária em marcha como fator de sustentação da produção a juro mais baixo. Pânico no poder midiático bancocrático. Os juros cairiam para combater a desaceleração, à custa, naturalmente, da redução da rentabilidade dos bancos.
A inflação, ‘unidade das soluções’ (Keynes), em meio à deflação, seria solução, mesmo que temporária, em meio à turbulência geral. Significaria acesso do comércio, da indústria, da agricultura e dos serviços a uma massa monetária mais substancial na circulação capitalista nacional, dada pela emissão estatal. O jogo financeiro estatal oligopolizado, ao irrigar a praça de dinheiro, diminui o ganho do rentista, que, se o mantiver nas alturas, corre o risco da expropriação.
Estão no centro do ringue global, de um lado, o oligopólio financeiro estatal, em nome do interesse público; de outro, o oligopólio financeiro privado, quebrado, pedindo para ser salvo. Olha Obama aí!
Por que juro mais alto?
Se, nos países ricos, eles buscam reduzir os juros, para gerar inflação consumista, transformada em deflação no mar de crédito podre, por que seria mantido, no Brasil, o juro alto, para aprofundar a crise, senão para satisfazer a oligarquia burguesa financeira que, com a ajuda da grande mídia, tem o comando constitucional do Estado na mão, expresso no artigo 166, parágrafo terceiro, item II, letra b?
Tal artigo é a expressão do poder bancocrático nacional, que torna proibido contingenciamento de recursos orçamentários destinados ao pagamento dos serviços da dívida, enquanto libera a ação contingenciadora para todos os demais setores do interesse da sociedade, como saúde, educação, transporte, ciência e tecnologia, enfim, desenvolvimento nacional. Privilégio bancocrático total.
Bancocracia neorepublicana corrupta
Vale dizer, a bancocracia, com a ajuda da Nova República, dominada pelo Consenso de Washington, aplaudido pela grande mídia, estabeleceu um poder efetivo sobre a máquina federal, com apoio político de uma classe parlamentar considerada corrupta pelos seus próprios pares, para fixar seu rendimento no juro alto que, na prática, é o custo inflacionário que é repassado pelo setor produtivo aos preços.
Criou-se, graças à falta de disposição para reagir da grande mídia, o argumento ideológico mecanicista segundo o qual inflação decorre do excesso de consumo que requer juro alto para combater a alta dos preços. O mundo capitalista em crise, como grande escola, mostra justamente o contrário.
A inflação verdadeira está no crédito direto ao consumidor que é alimentado por juro de 150% ao ano e no juro de 80% ao comerciante e industrial que toma dinheiro em banco para girar seu negócio no dia-a-dia. O resto é construção abstrata dos economistas contratados pelos bancos para criar um equilíbrio esquizofrênico entre oferta e demanda, no qual a grande mídia acredita, como se o capitalismo não fosse produto essencial do desequilíbrio que provoca, necessariamente, para promover a acumulação de capital.
Contradição é geral
O contexto é contraditório. Nas crises, como disseram os economistas clássicos e os marxistas, principalmente, os juros sobem. Nos Estados Unidos, na Europa, no Japão, na China, na Rússia etc., os juros, ao contrário, estão negativos, descontada a inflação. O sistema vive a danação keynesiana do rentista sob eutanásia irreparável. Ora, as ações do Citybank caíram de 80 dólares para 2 dólares. Não há nada mais para os rentistas do City a ser distribuído por Barack Obama, o novo dono.
Nesse ambiente, o BC, presidido pelo bancocrático Henrique Meirelles, preocupado com a lenta queda da inflação, conforme manchete do Valor Econômico, revela o inconsciente de classe dele, sob comando do pensamento da bancocracia: seria preciso, à luz da ideologia bancocrática, subir os juros ou mantê-los nas alturas que deixam os pés dos tomadores de crédito bem distantes do patíbulo, puxados pela corda amarrada no cadafalso jurista sob o controle do carrasco Henrique Meirelles.
Os bancos nacionais e internacionais, como se deduz da manchete, querem continuar mamando no juro alto brasileiro, que os mantém, lógico, longe do destino dos seus colegas banqueiros europeus e americanos, obrigados a desfazerem de suas ações bichadas para o Estado com dinheiro do contribuinte. A manchete do Valor tenta influir na decisão do BC, na próxima reunião do Copom, para manter o juro brasileiro longe da pregação de Keynes sobre emergência da eutanásia do rentista.
Inversão da arte de governar
O noticiário da grande imprensa tem destacado que o capital externo tem fugido da periferia. Mais uma vez é preciso ler o contrário. O capital externo ama a periferia, onde, historicamente, engorda. Agora que esse capital apodreceu, busca, desesperadamente, quem o tome. Só que ninguém quer tomar porque pode levar o cano, na contabilidade dos empréstimos feitos com moeda podre, sujeita a desaparecer. Quem garante que uma parte do capital externo pós-crise que entra nas fronteiras nacionais não esteja bichada, podre, doida para ser comida por Obama, subvencionadamente pelo Estado americano?
A ausência do capital externo na periferia é prejuízo para o capital externo. É, por isso, dialeticamente, que a libertação da periferia desse capital que tem grandes chances de estar bichado, mas que, se depender da grande mídia, pode ser salvo pelos trouxas.
Por que pegar esse dinheiro que está sendo degolado pelo governo via taxa de juro negativa, para evitar bancarrota do setor privado?
Se se sinaliza que a inflação resiste e que por resistir merece o remédio amargo do juro alto, a bancocracia, com a inestimável ajuda da grande mídia, sua sócia – sempre problemática, dependente das tetas oficiais… – joga sua lábia para ver se cola. Se colar, colou. Tem colado, espetacularmente, ao longo dos últimos 25 anos de Nova República.
Herdeiros dos governos militares, que deixaram como herança uma estrutura produtiva e ocupacional forte, regada a inflação relativamente alta, adequada à sede de desenvolvimento nacional em meio a um mundo capitalista europeu e americano pronto e acabado, para entrar em colapso, como ocorre, nesse momento histórico, os governo neorepublicanos, de Sarney a Lula, inverteram a arte de governar.
Em vez de comandar, foram comandados. Governaram com a cabeça dos outros, de fora para dentro, como denunciou, certa vez, o deputado Mário Juruna (PDT-RJ), no tempo da ditadura, ao destacar serem os militares anti-populares ao gerir capitalismo exterminador de índios nas fronteiras agrícolas nacionais nos anos de 1970, para atender os donos do dinheiro externo. Juruna acertava-se com Marx, que pregou ser a dívida externa instrumento de dominação internacional, estabelecida pela moeda do país dominante sobre a do país dominado, cobrando senhoriagem, isto é, os juros compostos que se acumulam e sobreacumulam.
A velha cabeça do capital externo esteve à frente sobre os governos neorepublicanos ditando suas regras, regras que, sob desregulamentação total, destroem, neste instante, o próprio capital, por meio da eutanásia do rentista.
Capital desvalorizariza sem periferia
Do ponto de vista do capitalismo periférico, historicamente dependente do capital externo, sujeito à dominação na condição de objeto, falsamente, soberano, tal fenômeno eutanasiano-rentista representa, simplesmente, a libertação da periferia do capital externo.
É o inverso a leitura que deve ser feita das manchetes da grande mídia. O Estado de S. Paulo, também na segunda-feira (2/03), alardeia, invertidamente, que ‘Colapso da exportação de emergentes preocupa BCs’. Ou seja, os BCs estão preocupados com resistência à queda da inflação brasileira e com o sufocamento financeiro dos emergentes. Não seria o inverso?
Os emergentes precisariam tomar dinheiro emprestado apodrecido dos ricos nos bancos falidos e absorvidos pelos Estados soberanos que darão o cano nos acionistas? Entrariam nessa fria? Por que tomar dinheiro emprestado a juro alto – preço que o governo paga para rolar seus títulos – se esse dinheiro bichado?
Os banqueiros europeus e americanos gostariam que os tomadores do mundo inteiro corressem para fazer o que fazem os governos, tomando o dinheiro, não para esterilizá-lo, em nome do interesse público, mas para reproduzi-lo absurdamente numa praça como a brasileira, onde a taxa chega a 200% ao ano. Paraíso no inferno da eutanásia.
Está na cara da manchete do Estadão que os bancos temem que os emergentes não tomem mais dinheiro que apodreceu. Pintaria o oposto, a periferia poderia nacionalizar suas riquezas e lançar moedas nacionais ancoradas em cima dessas mesmas riquezas, em vez de considerar moeda podre como fator de troca global seguro. Certamente, esse será o papo terrificante, para a burguesia financeira falida, a emergir na próxima reunião do G-20, onde os governantes do capitalismo cêntrico, como Sarkozy, prometem refundar o capitalismo. Reconstruir o que faliu.
Sujo falando do mal lavado
A lenta libertação da periferia capitalista é transformada, nas manchetes da grande mídia, em alarme contra falência dos emergentes dado por quem já está falido. Entre o já falido, os ricos especuladores e a possibilidade de falência dos pobres, que já acostumaram com estado crônico de semi-falência stop and go, que sempre pagaram o pato pela especulação, a vantagem comparativa é inquestionavelmente favorável aos emergentes.
Nesse contexto, embora a mídia faça crer o contrário, o Brasil, por exemplo, pode, se tiver, tipo Getúlio Vargas, vontade política para contrariar os vaticínios dos editoriais do poder midiático, caminhar para uma boa. Afinal, dispõe de base industrial sedimentada, forte, competitiva; de terras que dão até três safras anuais; de petróleo, renovável e não renovável, cana e oleaginosas; de minérios estratégicos; de biodiversidade infinita etc.
Por que os japoneses, em crise de deflação, cheios de títulos podres no caixa dos bancos, estão interessados em fincar base de sua indústria automobilística no Brasil? Se aqui estão as matérias-primas e mão-de-obra de primeira, por que pagar carreto do aço, do Brasil ao Japão, atravessando os mares, se pode ser feito aqui, sem custos de transportes, elevando a produtividade e a competitividade?
Não foi isso que norteou os japoneses na década de 1970, quando estavam abarrotados de nipodólares, a comprarem ativos e instalarem indústrias japonesas nos Estados Unidos, outrora grande consumidor, agora, enforcado pelo excesso de poder, produção e endividamento, que bloqueia o crédito direto ao consumidor?
Na crise, o Brasil, como destaca o empresário brasiliense Sebastião Gomes, é, sobretudo, vendedor. O negócio, diz ele, é produzir e deixar as mercadorias nos portos, para os compradores chegarem. Eles é que dependem, como sempre aconteceu, desde o descobrimento. A riqueza que acumularam virou fumaça. Dizem, agora, que a periferia, que sempre foi a teta, está em perigo. Perigo encontram eles de perderem a teta, que poderá alimentar outras bocas.
A manchete do Estadão, lida com o olho do capital financeiro em crise, significa o desespero do capital diante da impossibilidade, por ter apodrecido, de continuar sendo atraente àqueles a quem sempre explorou impiedosamente. Nesse ambiente, no qual o BC prognostica inflação resistente à queda, os juros mais baixos seriam bem piores para a bancocracia, que tem a socorrê-la a grande mídia, por onde escoa seu discurso furado.
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Jornalista, Brasília, DF