Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O peso de um mito

Um dos experimentalismos do jornal RelevO está em admitir um crítico editorial entre as páginas de um jornal literário. E mesmo tal temeridade parece pouco aos diretores, que convocam o colunista a se vestir de apicultor para apreciar ninhos de marimbondos como se fossem aqueles globos terrestres dos professores de Geografia.

Desta vez, o nosso alvo é o culto ao “jornalismo independente”. Afinal, como é que um valor profissional foi se transformar em recurso de marketing? Antes de abordarmos o problema, exibimos um making off: pela metade de cada mês, o editor envia a este ombudsman um relatório. A iniciativa favorece o diálogo entre os agentes da publicação e evita que um texto escrito remotamente perca de vista o “chão da fábrica” do veículo.

A lista dos temas assinala comentários de leitores, impasses de ordem administrativa, projeções editoriais e, em menor medida, dúvidas filosóficas. As sugestões ambientam o ombudsman ao calor das repercussões em vez de o enclausurar em sua solidão de articulista. Em fevereiro, enquanto jurados cariocas concediam mais um “deeeeeez” à Estação Primeira de Mangueira, a caixa postal da ouvidoria recebia as provocações do editor Daniel Zanella. Uma delas saltou para fora da tela:

O que é ser independente? Quando se deixa de ser independente? Um veículo que já circulou com verba pública, via leis de incentivo, é um veículo totalmente independente? Tecnicamente, um veículo que depende de assinantes e anunciantes – como é o nosso –, é dependente deles. E se [o jornal] fosse feito só com o meu dinheiro? Ainda assim seria dependente de mim.

Para entender o porquê desse encadeamento de inquietações do editor, basta lembrarmos como seria fácil listar umas três dezenas de redações, coletivos e agências de jornalismo que buscam colar sobre si o rótulo de “independente” – embora nenhum deles fosse o jornal RelevO. Mas o que é que se esconde detrás de palavra tão cobiçada e tão maltratada pela mídia? A coluna deste mês visita o saboroso pomar da imprecisão e da multiplicidade para saber por que a independência editorial pesa tanto aos ombros.

A interdependência

Professores universitários da UnB, da UFSC e da UEL aceitaram compartilhar conosco o que pensam da independência editorial. Confira os comentários exclusivos para leitores do jornal RelevO, a começar pelo docente de Estética na Universidade de Brasília, Gustavo de Castro:

“A independência é um mito. Um belo mito a ser cultivado – o que o assemelha à liberdade. Na prática, todo mundo depende de todo mundo. E todo mundo independe de todo mundo. Mesmo os jornais, quando querem ser independentes, ficam na ‘dependência’ do reconhecimento, ou na dependência dos patrocinadores, ou da Lei Rouanet. O que existe mesmo é a interdependência.”

“O uso [indiscriminado] do termo ‘independente’ se complica num contexto em que não existe jornalismo cultural brasileiro. Ele é uma piada. Está mais para um ‘negócio entre amigos’ (para usar um termo do Juremir Machado, professor da PUC-RS) do que para uma cobertura honesta, distanciada e profunda”, conjectura Gustavo de Castro, que é também poeta, jornalista e escritor. Ele publicou, em 2015, a biografia da poeta Orides Fontela – O Enigma Orides (Hedra).

Só os nômades!

Silvio Demétrio, professor de Comunicação da UEL e colaborador da revista Cult, busca o abrigo da filosofia para opinar: “a independência pode ser pensada como que remetendo aos domínios da singularidade, do ímpar. Em certa medida, romper com o senso comum é constituir-se como independente. É uma ação para sempre ad hoc [argumento usado com o objetivo de defender uma teoria]”.

“A independência é instável por ser essencialmente moderna. É um ato de acatarmos que o tempo nos perpassa. Ela age como se fosse um solvente de tudo que é fixo. Só os nômades são independentes. Só o são aqueles que encontram satisfação na impureza do risco. Penso, por fim, na relação de esvaziamento que as palavras de ordem do marketing e do espírito de rebanho produzem sobre toda e qualquer ação – e o que ocorre com uma publicação não é diferente.”

“Como não encarar o enunciado ‘jornalismo independente’ como um oximoro? [Expressão na qual se combinam palavras de sentido oposto]. Padecemos com um retorno ao publicismo – recalque histórico do romantismo revolucionário –, que agora ressurge numa versão despotencializada porque a serviço da redundância, da manutenção dos estados de coisas e do sempre igual. [Portanto,] viva a diferença! O múltiplo! Viva o Singular porque sempre outro!”, arremata Silvio Demétrio, que foi também o mentor intelectual do suplemento Gazeta ALT (2008-2009), em Cascavel (PR).

Garantia de autonomia

Para Elias Machado (Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC), este nosso colóquio literário permite perscrutar a cultura dos jornalistas: “A discussão sobre independência serve para destacar a existência de diferentes tipos de jornalismo: partidário, empresarial, público, cidadão, etc. E cada um deles detém princípios e orientações deontológicas bem distintas. O que me parece importante é que, devido às diferenças existentes entre as instituições, a sociedade ‘funciona’ melhor quanto maior for a garantia de autonomia entre suas diferentes instituições.”

“É evidente que as instituições se influenciam. No entanto, não é recomendável que uma se submeta aos interesses da outra. Seria mais ou menos como se um deputado evangélico subordinasse os interesses do Estado – necessariamente plurais – aos interesses da Igreja a que pertence. Do mesmo modo, quanto mais partidário for um impresso, menor será sua capacidade de difusão para um público mais amplo e ideologicamente diferenciado”, compara Elias Machado, que é jornalista e doutor em Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona.

Contra o quê?

Jornalismo não é matemática – ainda não. No entanto, se houvesse alguma equação que o aferisse, a “independência” seria uma de suas “variáveis dependentes”. É que para saber se um veículo é independente, a primeira pergunta que se faz é: contra o quê se é independente? Afinal de contas, almejar a autossuficiência subverte as regências e, em vez de justapor, nós nos contrapomos.

Não basta “ser livre” e “ser contrário”: a publicação precisa identificar o colonizador de consciências que ela rejeita. Senão, carece de ela buscar outro grafismo para gravar feito tatuagem em sua pele. Mesmo que não queira, o RelevO pode ser encarado como independente. Ao menos, o periódico resiste em tratar a literatura como aquela soja ou aquela carne de frango que enviamos ao porto de Paranaguá para trocarmos por produtos da Apple.

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Ben-Hur Demeneck é jornalista, doutorando em Ciências da Comunicação e ombudsman do jornal RelevO