O amigo jornalista Paulo Paiva Nogueira manda um e-mail de Brasília:
‘Recebi com muita tristeza a notícia do passamento, na sexta-feira (20/2), do grande amigo Cláudio Faviere. Jornalista dos bons, com passagem pela grande imprensa e na combativa imprensa alternativa dos anos de 1970, o conheci na Folha de S.Paulo, nos anos 80, quando o jornal era ainda uma referência na imprensa brasileira, em termos de credibilidade. O Cláudio ganhou prêmios (entre eles, o Vladimir Herzog), mas nos anos 90, acho que antevendo os rumos do jornalismo brasileiro, comprou uma pequena propriedade em Cunha (SP), num lugar mágico, com mata atlântica e várias cachoeiras, e o tornou ainda mais mágico.’
Cláudio Faviere tinha 60 anos, exatamente a minha idade. Somos do mesmo ano, passamos pelas mesmas redações, onde eventualmente nos encontramos. Desencantou-se com a profissão quase na mesma época. Internou-se num lugar ermo, como eu. Viveu algum tempo de indenização, como aconteceu comigo. Investiu tudo o que tinha no lugar que escolheu para viver, coisa que também fiz. Por isso, o texto dele, que só descobri agora, sobre essa experiência, me tocou profundamente.
É de partir o coração, nesta nação que joga fora seus talentos, novos e veteranos, e nos empurra para lugares remotos, quando deveríamos estar no miolo da guerra, contribuindo para o país. O fato é que a ditadura não acaba e dá sinais de longevidade acima das forças de qualquer um. Vamos a Faviere e seu texto antológico.
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No dia em que eu vim-me embora
Cláudio Faviere
Não tinha nada demais. Tinha o vento a favor. Havia comprado o sítio em Cunha sem que tivesse planejado comprar sítio, construído a casa sem que estivesse nos planos mudar de cidade. Tudo aconteceu sem planejamentos e intenções. Coisas do destino ou sabe-se lá do quê. Era 1993. Dois anos depois, ao sair do último emprego, sentia um grande desencanto com o jornalismo, do jeito que passara a ser praticado. Morte da reportagem, imprensa oficialesca, sem investigação e denúncia, império do release, matérias feitas em série como em uma fábrica de salsichas, visões áridas, estatísticas, sem contemplação do ser humano.
No período entre a compra do sítio e a saída do emprego mesclava o trabalho em São Paulo com a construção da casa, nas rápidas viagens de fim de semana a Cunha. Nas conversas de bares na pequena cidade ou nos humildes armazéns da zona rural, nas visitas às casas e nos passeios aos pequenos vilarejos da roça, o contato com novas realidades, novos cenários, novas pessoas. E a descoberta de novas histórias, de uma nova cultura, de um novo e prazeroso relacionamento com os moradores. Tudo em contraste relevante com a metrópole, onde nasci, vivi, trabalhei. O fascínio por tudo isto era grande. Destes contatos e histórias surgiu a vontade de uma nova experiência: escrever um romance ambientado naquela realidade, a primeira entrada no mundo da ficção. Fazia quase 30 anos que praticava o exercício de escrever, mas sempre em cima de fatos e acontecimentos.
Somando tudo: desencanto com o jornalismo, a saída do último emprego, um dinheirinho no bolso, a casa semi-pronta (mas já em condições de morar), as primeiras linhas do romance se delineando nos breves intervalos do cotidiano de São Paulo. Pronto. Lá vou eu. Bye-bye tudo.
Sonho de liberdade
E vim-me embora com o projeto de passar um ano com dedicação exclusiva ao romance. O dinheirinho dos direitos trabalhistas não era muito, mas o suficiente para não ter outra preocupação do que viver plenamente a experiência da liberdade proporcionada pela literatura. E aqui no sítio tudo era a favor: as cachoeiras rodeando a casa, a mata, o silêncio, o sagrado isolamento, as montanhas, o céu que chega a dar um porre de azul.
Só uma coisa não foi a favor: a realidade. O dinheiro acabou, parei o romance quase concluído, fui atrás da sobrevivência, retomei o romance, parei novamente, fui atrás da sobrevivência.
Em 2000, recebi uma pequena herança e construí uma pousada com o claro objetivo de ela não ser um fim, mas o meio através do qual fosse possível atingir o objetivo maior: ler e escrever. Passaram-se quase cinco anos de trabalho árduo para que a pousada se estruturasse, ficasse conhecida, possibilitasse a sobrevivência e, enfim, eu alcançasse a paz e tranqüilidade para terminar o romance.
Penso que assim como o destino me trouxe para cá e me privilegiou com um pedacinho de terra tão sagrado (sem que eu houvesse planejado ou pretendido), o mesmo destino designou a hora certa para concluir este sonho de liberdade. Era inexorável e foi agora.
O livro chama-se Na Cacunda do Lagarto e só falta um pequeno detalhe: editá-lo. Vamos ver. Mas os percalços desta batalha nunca me tiraram a felicidade de estar aqui, mais perto da vivência do que da sobrevivência. [Nota: O título deste artigo e a primeira frase são de uma música de Caetano Veloso.]
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Jornalista e escritor