Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Emails: a memória de nosso quotidiano

E-mails são parte de nossas vidas há tempo suficiente para serem considerados capítulos escritos de nossa história. Pais e filhos trocam e-mails. Amigos, conhecidos virtuais, parentes distantes, colegas de trabalho — todos usam e-mails em todo o mundo. O que nossos entes queridos nos disseram antes da morte? Qual foi a sua última carta mais significativa, aquela que ainda vive na caixa de correio dos que estão vivos? Que lembranças virtuais guardamos deles?

O comissário de bordo Rod Sánchez me escreveu contando sua história com Sandra Martins, sua colega de trabalho em uma companhia aérea.

“Nós havíamos feito 13 vôos juntos, na mesma tripulação, entre os dias 18, 19 e 20 de março de 2006, a maior parte delas na ponte aérea Rio-São Paulo (Brasil). Fizemos algumas fotos e depois decidi mandá-las para a Sandra por e-mail”.

 

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Enviado: 21 de março de 2006
Assunto: “nossas fotos”

Oi, Sandra!

Aqui vão as fotos que a gente tirou no vôo! Adorei ter voado contigo! Quando ​se trabalha com pessoas de bem e com o astral positivo, ​a gente ​sai do vôo com ​outra energia. Obrigado!

Me adiciona no Orkut!

Grande beijo,
Rodrigo.

 

Sandra respondeu o pedido de amizade no Orkut.

“Quando nos aproximamos mais ela passou a me chamar de “gurizinho”. Meses depois, desembarcando de um voo em que eu viajava como passageiro, encontrei a Sandra na saída da ponte de embarque. Lembro dela dizendo sorridente e carinhosa “E aí, gurizinho, como é que tu tá?” Se não me engano, o avião seguiria para Porto Alegre e ela aguardava o embarque para visitar os parentes no Sul.

No dia 29 de setembro de 2006 eu estava passando pela recepção do hotel e vi que um colega da companhia chorava muito. Me aproximei e perguntei o que havia acontecido. Ele disse que um dos nossos aviões havia caído. Horas depois, ainda na recepção, em silêncio, um papel passava de mão em mão, de um tripulante para o outro. Eram os nomes dos colegas envolvidos no acidente. Cadapessoa que lia os nomes entregava o papel já aos prantos para o colega ao lado. Quando recebi o papel e vi o nome da Sandra, foi como levar um soco no estômago.”

A Tati Zapata perdeu a tia, que faleceu há um ano de câncer no ovário. “Em em seu último e-mail ela me contou o que estava acontecendo e pediu para que não contássemos para a própria filha, que estava fazendo um intercâmbio no exterior”. Entre a data de envio e sua morte passou-se quase um mês, “tempo durante o qual eu tive esperanças de ir encontrá-la no hospital e poder falar com ela”, contou a Tati, que preferiu trocar os nomes dos familiares para a publicação do e-mail.

 

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Enviado: 23 de dezembro de 2014
Assunto: “dessa vez só tem a notícia ruim”

“Meus queridos,Espero que esteja tudo bem com todos!

Comigo não está.
Semana passada fiz uns exames de ultrassom de rotina e o resultado foi muito ruim. Estou com um tumor nos ovarios que tem caracateristicas de malignidade. Tem varias outras alterações no abdomen, linfonodos aumentados, figado esquisito e por aí vai. Uma merda total.No ano passado eu não tinha nada disso.Estou numa correria para fazer ressonancia e tomografia (farei amanhã) e já consultei ontem um cirurgião oncológico que me disse que nada pode fazer enquanto não tiver mais dados, que teremos nesses proximos dias.Existe uma pequena chance de não ser maligno, mas… parece que o quadro não é bom, porque tem umas alterações importantes também no exame de sangue.

Sei lá, tenho que aguardar, é um limbo horrivel, eu queria que ele abrisse minha barriga e tirasse esse bicho que está me comendo, mas ele disse que não pode ser assim, pois pode me colocar em risco desnecessariamente.

Tá bem foda e Marina e Rafaela com certeza sabem do que estou falando! Não sei o que vai acontecer e minha cabeça oscila entre pensar que ano que vem tenho muito coisa legal para fazer e que talvez eu não consiga.

Tem predominado a força, eu não vou morrer desta porra!

Suzana está nos EUA e não sabe de nada por enquanto e não quero que ela saiba DE JEITO NENHUM porque ela não vai poder fazer nada por enquanto. Quando ele traçar o tratamento e se eu for operada mesmo ou confirmar a malignidade, eu contarei a ela para que tenha a opção de voltar se quiser. Por enquanto não, então peço que sejam muito cuidadosos de não espalhar ou mencionar qualquer coisa a ela.

Também não queria te contar isso antes do natal, queria ter noticias melhores, mas acredito que quanto mais gente amada estiver me enviando boas energias, melhor ficarei!

Não cancelei ainda minha ida a Brasilia. Se nada for acontecer na semana que vem eu irei! Prefiro ficar aí com vocês beijando criancinhas fofas do que aqui pensando besteira. Talvez eu tenha que ir dia 30 ou 31,para ir numa consulta dia 29 que originalmente seria minha viagem, mas mantenho vocês avisados.

Beijo grande!!!
Maria”

A resposta da Tati:

 

“Tia,

pode deixar que a Suzana não vai ficar sabendo!
As energias do Natal e Ano Novo esse ano vão todas pra você!!

Beijo enorme”

 

Ela não conseguiu ir para Brasília. Foi internada e de lá nunca mais saiu. “A gente sempre acha que tem mais tempo, foi tudo tão rápido”, me disse a Tati.

“Pode publicar, tenho certeza que a Sofia vai curtir quando souber ler”, me disse o Alexsander Rosa.

“O último email que recebi da Fabi, três dias antes do AVC fatal. Nenhum texto, apenas anexos: 3 fotos da Sofia, então com uma semana de vida.”

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Enviado: 05 de julho de 2013
Assunto: “Bom dia papai!!!”

 

 

 

 

 

 

 

 

“No dia seguinte tivemos nossa última conversa via GTalk. Eu escrevi: “Saíram os times da Impedcopa [campeonato de futebol], LAS MANDARINAS DE BRANDSEN. Estou no time do Volkart”. Ela respondeu com uma pergunta: “Isso é bom?”

A Fabi sofreu o AVC no dia 8 daquele mesmo mês, ficou 15 dias em coma e faleceu no dia 23.

O Vini Stein foi um artista talentoso. Seus desenhos podem ser vistos aqui no Medium, como esse, no qual ele se auto-retrata preparando um cookie:

O Luiz Augusto de Barros era amigo de longa data, e foi procurar nos arquivos o último e-mail que trocaram. “Para a minha surpresa, o assunto do último email foi Despedida do Vini”, disse. Um convite burocrático para uma festa antes de uma mudança, agora com tanto significado.

“Lembro que tínhamos grandes planos, ele iria pintar vários quadros e depois ia fingir um suicídio ou assassinato pra ver se as “últimas obras de um jovem pintor” iam ser vendidas na Sotheby’s, por um valor exorbitante! Que bom se fosse verdade. Não chegamos na Sotheby’s (ainda), também não importa. Não há valor terreno que compre o tempo que ele esteve com cada um de nós, essa obra é única e intransferível…”.

Também o Leandro Pereira guarda um último e-mail, trocado com o pai. Uma mensagem cotidiana, com um erro que parecia um prenúncio a facilitar a vida da família em poucos dias.

“Ele tinha me mandado uma planilha de Excel com as aplicações que eu ainda tenho no Brasil, já que moro na Austrália. Só que não se deu conta que as outras abas do mesmo arquivo tinham todas as aplicações dele.” O Leandro apontou o equívoco do pai, que respondeu: Putz. Que merda!. “Eu falei que nem olhei muito, e a resposta final dele foi Hehe, não é este o ponto. Não tenho segredo com vocês. Beijos. Aconteceu menos de um mês antes da morte acidental dele. Na hora de resolver o inventário, o engano acabou facilitando a burocracia.”

O Fernando Cesarotti me escreveu em fevereiro.

“Cara, a pessoa que mais me faz falta no mundo é meu pai, que morreu no Natal de 2010.
Ele era curioso digital, apesar de já ter passado dos 60, mas nos comunicávamos pouco por email, tô vendo aqui. Era mais coisas formais, do tipo depositar grana ou algo assim. Dos últimos cinco e-mails que achei, quatro são com o número do código de barras do cartão dele que eu pagava porque ele tinha feito um empréstimo pra mim. O último é bem seco, ele só pede que eu mande os recibos pagos nos meses anteriores que eu estava devendo. Já o anterior é curioso, menciona um almoço que ele aparentemente curtiu. Nos nos falamos pela última vez na noite de 23/12, ele me ligou pra saber que horas ele iria na minha sogra vestido de Papai Noel, queria se programar pra ir na missa. Não ficou o registro físico, só a memória. De madrugada, ele teve um infarto fulminante.”

 

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Enviado: 29 de novembro de 2010
Assunto: “Fernando”

“O almoço de ontem estava muito bom. Precisamos repetir em outros dias.”

 

“O sonho do meu pai sempre foi escrever uma música”, me disse a Ana Becker. “Ele falou a vida toda sobre isso. O último e-mail que ele me mandou foi com a letra que ele escreveu (e depois me mandou um SMS dizendo que não era pra eu ler porque ele tava morrendo de vergonha). O último que eu mandei – totalmente não relacionado – foi um link pra um vídeo sobre religiões que, coincidentemente, foi a única aba que ficou aberta no computador dele. Ele me mataria se soubesse que eu publiquei isso, mas eu morro é de orgulho do meu velho”.

 

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Enviado: 14 de fevereiro de 2015
Assunto: “Minha música”

“Nada como uma noite sozinho, ouvindo música e bebendo. Escrevi minha música! Com certeza não pode ser musicada, mas é o que eu gostaria de dizer, caso fosse. Tô me achando o Bob Dylan!!!! Beijos

* * *

TE LIGA

Só gostas de uma cor
E admiras uma única flor?
Te liga, meu amigo!

Coisas novas te causam espanto
E preferes te isolar no teu canto?
Te liga, te liga, te liga.

Pobres e mendigos te são indigestos
E condenas quaisquer formas de protestos?
Te liga, te liga, te liga.

Menosprezas a pele que é diferente
E pregas a superioridade de tua gente?
Te liga, te liga, te liga.

As ofensas que proferes são merecidas
E não perdoas as que te são dirigidas?
Te liga, te liga, te liga.

Amor homossexual, pra ti, é afrontoso
E diferenças culturais são algo danoso?
Te liga, te liga, te liga.

Tua religião está acima do bem e do mal
E só teu partido político é que é legal?
Te liga, te liga, te liga.

És o dono de toda a verdade
E justiça social te parece caridade?
Te liga, te liga, te liga

Defendes tuas ideias acima de tudo
E acreditas, mesmo, que devo ficar mudo?
Te liga, te liga, te liga.

Te liga, meu amigo!
Nosso cérebro é maior do que tu pensas
E é capaz de suportar diferenças.”

 

Mensagens eletrônicas também têm o poder de desencadear histórias represadas pela vida real. A Anna Silveira me contou como se aproximou de um irmão com o qual ela jamais havia tido contato.

“Meu pai e minha mãe se conheceram na faculdade. Ele era 12 anos mais velho que ela, era casado e tinha uma filha. Eles namoraram durante oito anos. No sexto ano, eu nasci. Ele continuou casado durante esse tempo e teve outro filho, meu irmão Márcio.

Eu nunca convivi (ou falei) com a primeira família do meu pai. Mesmo com meu pai, os contatos foram poucos. Especialmente depois que mudamos de cidade, minha mãe e eu. Eu tinha 10 anos.

Quando fiz 23 anos, minha filha Julia nasceu. E meu pai apareceu novamente, pra conhecer a neta. Ele estava em Porto Alegre pq meu irmão Márcio tinha feito um transplante de medula. O Márcio tinha cerca de 27 anos. Ainda não nos conhecíamos.

Poucos meses e dois encontros depois, meu pai morreu. Isso foi em 2006.

Dois anos depois minha mãe encontrou os perfis dos meus irmãos no Orkut. Minha irmã sempre foi a que mais negou minha existência. Do meu irmão Márcio eu sabia muito pouco. Mas acabei arriscando e mandei um pedido de amizade.

Ele me respondeu com um longo email, em que explicava pq não podia aceitar o pedido naquele momento. Mas também contava como já acompanhava a minha vida pelo Orkut e como sempre quis me conhecer, mas nunca teve coragem.

Trocamos emails por um tempo. Começamos a nos falar pelo MSN. E finalmente nos conhecemos. Viramos amigos. Eu finalmente começava a ter um irmão.

Em agosto de 2008, ele não retornou os emails ou os chamados no MSN. Eu estranhei. Até que ele respondeu, explicando que havia passado por dias ruins, com complicações pulmonares (sequelas de uma radioterapia). E que a gente precisava de um plano para que eu fosse avisada de qualquer coisa que acontecesse com ele. Nossa aproximação ainda era segredo para o resto da família dele.

Dias depois, um plano que ele fez sem me consultar foi posto em prática. Recebi uma ligação da mãe dele, a primeira mulher do meu pai, explicando que ele tinha voltado para o hospital e que as chances de sobreviver eram poucas.

Questionei durante um tempo pq o mundo me deu o Márcio por seis meses depois de ter nos deixado distantes por 26 anos. Eu não sei pq exatamente. E desisti de tentar achar uma LIÇÃO nisso.

Quando li a tua idéia de escrever sobre as últimas cartas, pensei que poderia ter um último email cheio de significado, mas eu não tenho. Tenho seis meses de primeiros emails que já eram os últimos com alguém com quem eu deveria ter dividido uma parte da vida.

Foi importante pra mim contar essa história depois de oito anos.

Obrigada.
Um beijo,
Anna”

Pedi também para que meu colegas do Medium de outras partes do mundo procurassem por histórias como as relatadas no Brasil. Da Itália, o editor Martino Galliolo mandou esta, enviada por Francesco Nguyen.

“Não sei se este e-mail tem a ver: é uma troca de mensagens com a minha namorada da época, e em resumo é a única vez que falamos sobre minha mãe por e-mail. Descobriríamos em poucos dias que ela tinha um câncer. Hoje eu até acho graça”, disse o Francesco.

 

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Enviado: 14 de outubro de 2008
Assunto: “seppia”

“Um misto de coca cola e xarope está eliminando qualquer tipo de doença em mim, e também a todos os órgãos que ainda funcionavam. Estou esperando uma pizza, um prêmio por ter passado uma tarde inteira assistindo a talk shows na TV com minha mãe.”

 

Da Espanha o editor Fernando Valverde mandou duas histórias.

“Quando pensamos que entardece, alguém nos surpreende e amanhece, Quando pensamos que estamos vivendo o ocaso e nos maravilhamos com o Ocidente, resulta que descobrimos o Oriente e nos encontramos novamente. Sempre é assim, quando acreditamos firmemente em algo, acaba que tudo está por começar.”

Este foi o último e-mail que escreveu o pai de um dos amigos do Jesús Díaz Da Rin. “Ele nunca foi um grande pai, creio que me escreveu para que eu transmitisse a mensagem a seu filho”, disse Jesús. “No velório eu recitei as palavras ao meu amigo, mas nunca contei que eram do seu próprio pai.”

Também a Ana Rosas decidiu mandar sua história da Espanha.

“Estive procurando por alguns e-mails em minha caixa e tenho alguns que me fizeram chorar um pouco. Porque um dia encontrei o amor da minha vida e de repente ele não estava mais lá. Eu perdi tudo. E é bom poder contar que se pode sair disso”, escreveu a Ana. E depois disse: “Minha última carta? Ao contrário do que se pensaria neste mundo super tecnológico, o último que guardo é uma folha rosa de papel com caligrafia terrível porque eu estava chorando quando escrevi”.

 

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Carta enviada em 25 de setembro de 2012

“Oi anjinho barrigudo:

Antes de começar com as palavras doces e ternas devo reclamar e te repreender porque nos termos do contrato do nosso pré-matrimônio diz muito claramente que você é terminantemente proibido de me fazer chorar tanto. Me preocupaste tanto e eu não sabia com quem sentar e chorar por meu marido, porque meu melhor amigo estava trancado no hospital. Eu não soube de onde tirar forças para não começar a chorar, para vestir minha cara de tranquilidade, para não encher de pânico tuas tias e teu pai.

Estou na cama e não sabes o vazio que sinto. Fazes muita falta a meu lado. Quero me grudar em ti e nos encher de carinhos e beijos, mas te mantêm no hospital. E vontade não me falta para te tirar daí e ter comigo em casa. Mas sei que osdoutores te mantêm aí para te devolver bom-e-são.

Dou graças a Deus e a todos os nossos anjinhos porque você já está bom. Bem, com a barrigada costurada, mas está bem. Burramente me ponho a pensar o que eu faria sem você ao meu lado e isso desmorona meu mundo. Não me imagino de outra maneira se não passar a vida contigo. És minha razão, minha força, o melhor que tenho. Obrigado por confiar tanto em mim. Obrigado por decidir viver comigo. És meu melhor marido, a melhor pessoa. Deixem te mimar bastante, é o teu momento para que te levem o café da manhã na cama. 🙂

Com todo meu amor, sua esposa Ana.”

 

 

“Às vezes, quando a releio, volto a sentir essa sensação de alívio que me durou somente um par de dias antes de me falarem, no hospital, que o amor da minha vida tinha partido.”

E-mails ainda continuam a ser enviados mesmo depois das despedidas. Recebi mensagens de pessoas que continuam a se comunicar com seus entes amados através das caixas de saída. A Amanda Buonafortuna [nome fictício] perdeu o marido de 47 anos em setembro do ano passado.

pressentia medos e dores futuros, ou acordava de um pesadelo, tua mãozinha ali, e tua voz dizendo, com calma, calma, gatinha, já vai passar.

Falta ainda meu desejo de ter te dado um beijo de despedida, mesmo que eu deteste despedidas, e que tu sempre tenha feito bobagens em nome de despedidas. Faltou eu te dizer ou gritar o quanto te amo.

Faltou te dar a minha mão na hora em que tu mais estava sozinho, encarando a morte. Nunca vou esquecer tua falta.

Faltou eu brigar mais, enxergar menos o meu medo de te perder e ter coragem de ter te internado, assaltado um banco, matado um médico, tua mãe e tua irmã cruéis, faltou eu denunciar tua psiquiatra por negligência, faltou a fuga para Berlim, Rostock, qualquer lugar longe do que te levaria a morrer. Faltou eu ser mais invasiva, talvez se tivesse brigado contigo, tu ficasse pra sempre magoado, me detestasse, mas estaria vivo. É só o que importava, tu vivo. Sem ti eu vivo, sem tua existência parece que perdi metade de meu corpo. E dói. Como dói.

Falta, meu querido, como tu faz falta. Tão impertinente, inadequado, do “Não sei a causa da morte, não fui convidada para o velório, não vi o corpo e só fui informada pela irmã dele quando já tinha sido cremado, por meio de SMS. É uma história longa e trágica que envolve a família. Ainda me assombra que ele não esteja mais vivo, é como um fato inacreditável”, ela me disse.

Ela também ainda envia mensagens para ele como forma de amenizar a dor e o luto.

 

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Enviado: 4 de outubro de 2015
Assunto:

Daqui a três dias faz um mês que tu morreu.

Deixou a mim e a gatinha e um amor imenso em dor, tão grande que não sei o que fazer disso. Então eu pensei agora, depois de fazer um backup, e mais uma noite nesta cama estranha, na qual estamos há três meses, na tua falta. Falta o teu abraço na hora de dormir.

Teu cheirinho de leite.

Tua voz doce, dizendo amor, gatinha, eu te amo tanto!

Faltam teus olhos verdes, cheios de amor e carinho e tanta coisa imensa.

Falta o calor do teu corpo, encaixado de costas com a bunda quente em mim.

Até teus roncos, delírios sonâmbulos, pedidos incoerentes, peidos sonoros seguidos de ui!, desculpe.

Faltam tuas mãos lindas e delicadas, a pegar nas minhas, quando eu sentia ou teu jeito, tocando guitarra como ninguém na frente de casa. Dizias: vou acabar como o Holdsworth, tocando num Baked Potatos. Nossas comidas indianas, as batatinhas. Como era mesmo o nome? Tuas gostosuras, nossa culinária. Como seria se tivesse eu a ter morrido? Como tu sentiria? Teria feito backups, certamente.

Não sei o que sentir, me atormento, mas o choro não sai, as lágrimas até caem, porém nunca serão suficientes, tampouco necessárias, já que não te trazem de volta. Preferia que tu tivesse me trocado por uma amante, me traísse, ou tivesse ido para a Alemanha. Que deixasse apenas um bilhete: gatinha, amor, fui para o Heimat. A vida é muito triste. Tua morte foi uma tragédia, a pior coisa que podia acontecer, da pior forma possível, com tua mãe te desrespeitando até o último respiro, passando por cima de qualquer coisa que tenha a ver com humanidade. A pior forma. Te recolheu primeiro para um colchão na casa dela, depois proibiu os médicos de falarem comigo, para saber o que ocorria, tentouproibir as visitas, mas isso eu consegui furar. E depois, como se o teu e o nosso sofrimento fossem néctar para ela, te pegou morto, escondeu de mim e queimou, levando tudo com ela.

E como se fosse ainda pouco, pegou tuas coisas, nossas coisas, como se dela fossem, e colocou no lixo, tudo, nossa casa, tuas coisas que a ninguém mais teriam valor, teus pensamentos, tuas reflexões, tuas obras. Meu querido, como eu posso não me revoltar? Como tu deixou tua mãe te matar aos poucos? Sabias que as coisas seriam assim? Creio que não.

Se puder, fica um pouco comigo. Não sei onde estás, não pude chorar agarrada em ti, mas tô aqui, pensando em ti. As lágrimas caem abundantes, em silêncio. Fica comigo. Alguma coisa deve ter sobrado de ti.

Lembro que a gente falou um dia sobre cremação. Eu te disse que queria ser doada para alguém: órgãos, o que desse para aproveitar, para ajudar as pessoas ou a ciência. Tu me disse que também queria isso, mas que tinhas pouco de saudável a aproveitar. E eu te falei o quanto seria bonito teus olhos em uma criança cega, os pulmões para quem não tem como respirar. E choramos um pouquinho, de mãos dadas.

Se sobrou algo de ti, por favor, não faça como acontecia de não me ouvir e deixar desesperar. Fica comigo, nem que seja por hoje, aqui. Saudade é uma palavra pobre para definir isso. Estou partida por dentro e não sei como arrumar.
Te amo tanto, amor!”

 

A Camila Lobo contou a história do seu vestido de casamento, em um e-mail que enviou para sua mãe após o falecimento.

“Às vezes utilizo o e-mail pra aliviar a saudade da minha mãe, que faleceu há quatro anos. Ainda mando e-mails pra ela, como o que enviei logo depois de ter comprado meu vestido de casamento, quando eu morava em Barcelona e ela no Brasil)”.

 

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Enviado: 24 de junho de 2014
Assunto: “Vestido!”

Oi mama!!

Tenho vestido pro casamento!!

Comprei hoje, fiz bate-volta em Madri mas valeu a pena!! O vestido é lindo. A minha cara — e acho que a sua também! Super moderno e elegante!

Gostei também porque foi super pratico, vesti, ficou bem, e so falta fazer bainha. Não tem que fazer o vestido do zero e fazer mil provas, sabe?

Acho que voce iria adorar, se tivesse comigo na loja ia falar: é esse, Milinha! Se nao levar pra voce eu levo pra mim! Heheheheheh

Te amo demais!

Queria muito que você estivesse aqui pra dar palpite em tudo…

Beijos mil,
Mila :)”

 

Obrigado a todos que compartilharam suas histórias.

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Leandro Demori é jornalista e editor do Medium/Brasil

Colaboraram Rachel Glickhouse, Mateusz Zimek e Ahmet Özkale