A crise por que passa o Brasil é profunda. Além dos óbvios aspectos político e econômico, há algo também na esfera da moralidade social que preocupa. A cultura da militância virtual ao mesmo tempo em que turbinou a participação política também ajudou a tirar das sombras o que há de mais tenebroso em nosso comportamento social. A falta de timidez com que a intolerância de toda sorte, o ódio de classe e de credo, o racismo, o machismo e outros ismos abomináveis circulam na internet ou nas ruas torna a comparação com a Europa do início do século passado quase inevitável. O clima de exacerbação política, de maniqueísmo ideológico e de irracionalidade discursiva deixa muito pouco espaço para a reflexão livre e honesta e para o debate baseado em ideias.
Além da preocupação óbvia sobre onde tudo isso pode nos levar (e a história mostra que a resposta causa arrepios só de pensar), é importante também pensar no que pode ter nos trazido até aqui. Quem ou o que alimenta esse fascismo que agora rosna confiante?
Obviamente que, como um fenômeno complexo, esse tipo de comportamento social tem causas diversas. Tenho o palpite, no entanto, de que a mobilização dessa militância fascistoide tem muito a ver com os formadores de opinião e com a maneira como reagimos à influência dos outros e à autoridade dos especialistas.
Na década de 1950, o psicólogo social polonês Salomon Asch realizou um experimento que consistia no seguinte: sob o pretexto de participar de um teste de acuidade visual, o voluntário da experiência era colocado em um grupo com mais sete pessoas que tinham de responder a perguntas simples e com respostas óbvias, como escolher entre três linhas retas qual era a de maior comprimento.
Ocorre que todos os demais participantes do grupo eram atores, instruídos para, propositadamente, escolherem uma alternativa claramente errada. Por mais óbvia que fosse a resposta certa, o teste mostrou que 75% dos participantes escolhiam a resposta errada em pelo menos uma das catorze rodadas de perguntas apenas para se alinhar ao grupo; 37% dos voluntários erraram a maioria das perguntas.
26 dos 40 participantes aplicaram o choque letal
Além da constatação perturbadora de que a convicção de um grupo distorce nossa própria percepção e confiança, o teste também mostrou que a discrepância do erro não interferia no resultado. Ou seja, o absurdo do erro não diminuía a taxa de adesão do participante à alternativa do grupo.
Outro experimento interessante foi feito uma década depois por um discípulo de Solomon Asch, o norte-americano Stanley Milgram, exatamente no ano em que o mundo se agitava em torno do julgamento de Adolf Otto Eichmann por seus crimes no comando da máquina de genocídio nazista. O experimento (que acaba de virar filme) foi o seguinte: um anúncio de jornal convidava pessoas a participarem de um estudo que supostamente mediria os efeitos da punição nos processos de aprendizado. Uma vez no laboratório, era explicado aos participantes que alguns deles fariam o papel de professor e outros de aluno.
Um questionário era aplicado pelos professores e, a cada resposta errada, ele deveria acionar um botão, que aplicaria uma carga elétrica no aluno na outra sala. Para demonstrar o funcionamento da máquina, um choque real de 45 volts era aplicado no voluntário. Os choques a serem dados no aluno cresceriam em intensidade a cada erro, de 45 volts, inofensivo, até 450 volts, potencialmente letal. Tudo isso era acompanhado por um suposto pesquisador, vestido em um jaleco de cientista.
Ocorre que tanto o cientista quanto o aluno eram atores e os participantes do teste eram somente os professores que aplicariam os choques, e que também eram simulados. Os verdadeiros objetivos da pesquisa eram ver em que momento o voluntário desistiria de participar do experimento, já que o suposto sofrimento do aluno aumentaria em intensidade até a morte, e observar seu comportamento ao ser submetido à autoridade do pesquisador.
Os resultados foram impressionantes. Nada menos que 26 dos 40 participantes (65%) foram até o final e aplicaram o choque letal de 450 volts. Mesmo com os protestos e urros de dor vindos da sala ao lado, que cresciam até o silêncio, os participantes simplesmente obedeciam aos comandos do pesquisador em seu jaleco cinza, que repetia frases padronizadas como “por favor, continue”, “é necessário que você continue para o sucesso do experimento” ou “os choques não causam nenhum dano permanente aos tecidos”.
O preço a se pagar é alto demais
O que tudo isso tem a ver com os nossos fascistas? Em primeiro lugar, os estudos de psicologia social aqui referidos e a experiência histórica mostram que a linha que divide a civilidade e a barbárie moral e política é muito tênue, sobretudo em um contexto social de longa cultura autoritária, como o brasileiro. A autoridade exercida por figuras influentes do jornalismo ou da política, os grandes comunicadores, os formadores de opinião, têm efeito muito significativo em comandar e chancelar o fascismo que se avulta. Nem é preciso citar os nomes.
O silêncio, a complacência ou mesmo a militância das pessoas comuns que, inebriadas pelo clima de guerra e pela distorção cognitiva de achar que tudo se justifica, desde que ajude a derrotar o inimigo político do momento, também servem como vitamina para o monstro que estamos alimentando.
Como demonstra o estrago social, político e humanitário do nazi-fascismo europeu, não se deve brincar com certas coisas, pois o preço a se pagar é alto demais e nem de longe compensa o efêmero e mesquinho deleite de derrotar um inimigo eleitoral. A história, além disso, é implacável e não costuma perdoar os que, por conveniência momentânea, se permitem abraçar com o que há de mais sombrio na humanidade. Ainda há tempo para reagir.
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Adilson Carvalho é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, graduado em Letras e mestre em Teoria Literária