Jornalistas profissionais não gostam de ser criticados ou corrigidos, muito menos em público, nem mesmo quando escrevem bobagens e erram. Não que nós outros não tenhamos também nosso amor-próprio ou uma certa dose de soberba, mas essa aversão parece ser algo incrustado na pele do jornalista. Arrisco mesmo a afirmar que isso tem a ver com os afazeres de repórteres e editores no dia-a-dia das redações: eles estão habituados a lidar diretamente com os fatos, embora apresentem apenas uma parte disso ao público (i.e., leitores, ouvintes ou telespectadores). Em outras palavras, seja por conveniência pessoal, do editor-chefe ou da empresa onde se trabalha, ou por falta de espaço (afinal, matérias competem entre si por uma quantidade limitada de espaço), os jornalistas habitualmente se comportam como verdadeiros filtros entre os fatos (‘nus e crus’) e o público.
Na grande maioria dos casos, os jornalistas sabem que aquilo a que o público está tendo acesso não é exatamente a fina flor da realidade – além de omissões freqüentes, distorções grosseiras costumam ser deliberadamente introduzidas no que se divulga sob o rótulo genérico de ‘notícia’. Isso para não ter que mencionar o que nos dias de hoje bem poderia ser classificado como a ‘maldição do jornalismo preguiçoso’ ou o ‘jornalismo do press-release’ – a publicação, quase ipsis litteris, de notas divulgadas pela assessoria de imprensa de órgãos do governo, de empresas privadas ou mesmo de pessoas físicas.
Como ninguém é de pedra, essa situação toda termina gerando em muitos profissionais uma recorrente sensação de frustração ou mesmo de impotência – não deve ser por predisposição genética que os jornalistas estão entre os profissionais que mais consomem drogas, notadamente álcool e nicotina. Todavia, o fato de se comportar como filtro tende também a exacerbar entre eles um certo sentimento de onipotência – seja porque o jornalista tem consciência de que sempre sabe mais do que o público sobre os acontecimentos que aborda em suas matérias, seja porque ele termina se vendo como um personagem que também pode influenciar o rumo dos acontecimentos.
No chamado jornalismo ambiental, por exemplo, é comum que repórteres e editores dêem uma mãozinha na divulgação de notícias oficiais positivas, muitas vezes caindo num insosso jornalismo chapa-branca ou simplesmente descambando para o ridículo. Um dos meus exemplos favoritos é o caso de uma matéria publicada em jornal da Zona da Mata mineira, anos atrás, envolvendo três personagens: uma turma de alunos do Ensino Fundamental, o gramado de uma agência bancária e uma única muda de palmeira. As crianças se deslocaram da escola até o gramado da agência e lá plantaram ou ajudaram a plantar a muda solitária de palmeira. O que o jornal fez? No dia seguinte, publicou uma foto com uma legenda embaixo, dizendo que o banco fulano de tal estava promovendo a educação ambiental entre as crianças da cidade. (Pessoalmente, fiz questão de ligar para a agência local do banco e dizer que aquele tipo de coisa era motivo mais do que suficiente para que eu jamais abrisse uma conta lá.)
Respostas fundamentadas
Mas talvez seja no jornalismo esportivo (leia-se, futebol) que os últimos resquícios de razão que herdamos de nossos primos antropóides estejam sendo jogados na lata de lixo. Não é fácil encontrar entre os profissionais de projeção nacional um exemplo de jornalista esportivo que seja (ao mesmo tempo) razoavelmente bem-informado, crítico e isento; não, comportam-se todos como torcedores – desse ou daquele time, desse ou daquele jogador, às vezes até mesmo desse ou daquele patrocinador! De resto, comentaristas e observadores estão habituados a analisar uma partida de futebol ou um campeonato inteiro usando apenas o senso comum, às vezes nem isso. Chuta-se em todas as direções, na esperança de que a bola, quem sabe, ao menos bata na trave…
É raro, por exemplo, ver ou ouvir alguém, durante uma transmissão ao vivo de uma partida de futebol, reconhecer e simplesmente pedir desculpas por um erro cometido – o que seria mais do que esperado; mas não: há sempre uma desculpa esfarrapada para as maiores barbeiragens. Como todos (ou quase todos) os profissionais agem assim, a verdade em torno dos fatos, inclusive em torno de questões polêmicas, que mexem mais com o torcedor – qual é o melhor jogador profissional em atividade no país?; qual foi o melhor time do ano?; qual é a melhor forma de disputa do Campeonato Brasileiro?; e assim por diante –, torna-se apenas o resultado de um segundo campeonato: a ‘verdade’ é apenas o berro da turma que grita mais alto, em meio a uma gritaria generalizada. (Apesar do nome pomposo, o Campeonato Brasileiro – que já foi chamado Copa Brasil e, acredite, Copa União, por conta de um hilário contrato com patrocinadores – não reúne times que representem todas ou sequer a maioria das 27 unidades da Federação.) De acordo com a emissora sintonizada, o torcedor pode ouvir opiniões e comentários diametralmente opostos. E, assim, o nosso jornalismo de esportes (leia-se, de futebol) prospera em meio a um caldo ralo, que mistura provincianismo e tendenciosidade com doses generosas de surrealismo.
Acha que estou exagerando? Pois, tente obter com algum jornalista esportivo respostas fundamentadas (i.e., não valem respostas do tipo ‘é porque é’) para as seguintes questões: qual foi o maior jogador de todos os tempos? E o mais habilidoso? Qual foi o melhor time de todos os tempos? A chamada seleção brasileira de fato representa uma seleção dos melhores? Por que o chamado Campeonato Brasileiro levou tantos anos para ser estruturado de modo a premiar (sem subterfúgios) a melhor equipe ao longo de toda a competição (como aconteceu com o Cruzeiro, em 2003)? E mais: as escolinhas de futebol servem para formar craques? Como os craques são formados? Há uma predisposição genética para ser ou não um craque? Em caso afirmativo, haveria algum tipo físico particular mais favorecido? Seriam os afro-descendentes, por exemplo, inerentemente mais habilidosos com a bola do que os não-afro-descendentes?
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Biólogo, autor do livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)