Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vera Guimarães Martins

Nada como a magnitude de um impeachment em processo para transformar em coadjuvante um escândalo da proporção dos “Panama Papers”, o vazamento dos arquivos do escritório panamenho Mossack Fonseca, especializado em abertura de empresas offshore.

A divulgação da lista de clientes figurões tem provocado excitação pelo mundo, mas no Brasil entrou na fila dos temas de segunda linha, o que não é de espantar para quem tem uma Lava Jato só para si.

Sorte da Folha, que mais uma vez está fora do grupo de publicações escolhidas pelo Consórcio Internacional de Jornalismo Investigativo (ICIJ na sigla em inglês) para divulgar as apurações. Em 2015, quando estourou o Swissleaks, o vazamento das contas secretas do HSBC suíço, a primazia da cobertura em território brasileiro foi de Fernando Rodrigues/UOL (portal ligado ao Grupo Folha) e “O Globo”. No caso dos “Panama Papers”, de Rodrigues/UOL e “O Estado de S. Paulo”.

Sem acesso direto à fonte, a Folha tem recuperado reportagens, longe dos furos de quem está na linha de frente. Seu diferencial nesta semana: uma entrevista com Charles Lewis, o criador do ICIJ.

Ex-produtor do “60 Minutes”, talvez o mais famoso programa de jornalismo investigativo de TV, Lewis fundou o consórcio em 2003, mas já coleciona números impactantes. No caso dos “Panama Papers”, quase 400 jornalistas de 107 veículos em 76 países vasculharam 11,5 milhões de dados armazenados pela Mossack Fonseca de 1977 a 2015.

Da peneira brotaram nomes reluzentes de todos os setores, do pai do premiê britânico David Cameron a amigos do presidente russo Vladimir Putin, do cunhado do líder chinês Xi Jinping ao jogador do Barcelona Lionel Messi e ao diretor de cinema Pedro Almodóvar –todos ligados em algum momento à criação de uma offshore. A divulgação derrubou pelo menos uma cabeça, a do primeiro-ministro da Islândia. No Brasil, saltaram as empreiteiras e figuras envolvidas na Lava Jato.

“O futuro do jornalismo é a colaboração”, disse Lewis à Folha. É fácil concordar, ainda mais quando estão em jogo crimes ou ilegalidades que desconhecem fronteiras, mas confesso que tenho reservas quanto a vazamentos por atacado.

No caso do HSBC, por exemplo, não era e não é ilegal ter conta secreta no exterior desde que ela seja informada à Receita Federal. Da mesma forma, nem toda offshore tem o objetivo de lavar dinheiro sujo ou esconder patrimônio. Só que, em ambos, a mera divulgação dos nomes descobertos joga uns e outros no mesmo saco de suspeição.

Quem não deve sempre pode vir a público se explicar, mas ao custo de abrir mão de parte da vida pessoal e sem garantia de que conseguirá reparar o dano à imagem.

O ICIJ tem sido cuidadoso com a divulgação, mas nenhum nome conhecido escapa da publicidade numa hora dessa. O que leva à pergunta: Almodóvar deve ter sua situação revelada só porque é famoso? O nome do ex-ministro Joaquim Barbosa deveria ter entrado numa narrativa com ares de escândalo devido a um suposto débito de US$ 2.000, que nada tem a ver com nada?

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A ONO, organização dos ombudsmans de notícias, promove a partir deste domingo seu congresso internacional, neste ano em Buenos Aires. A ombudsman da Folha foi convidada a relatar a experiência da cobertura da crise política no painel Radical politics and the ombudsman, que discute como a imprensa pode promover o pluralismo diante de posições políticas extremas.