Há algumas semanas, o repórter Denilson Vasconcelos enviou-me uma mensagem solicitando informações para uma reportagem que estava escrevendo para o Unidade, o jornal mensal do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (ver ‘
Onde foi parar nossa imprensa alternativa?‘). O assunto das indagações era a imprensa alternativa brasileira dos anos 1960 e 70, isto é, os jornais da resistência política e cultural à ditadura brasileira, que marcaram época por sua tenacidade e criatividade.O regime militar, como se sabe, apesar das recentes tentativas de reescrever a história do período desde um ponto de vista benevolente, foi mesmo um regime de força que matou, perseguiu, torturou e cerceou as liberdades civis, entre elas a liberdade de imprensa. Porém, durante os processos de mobilização contra as arbitrariedades e a censura no país (assim como na América Latina), surgiu no cenário uma ‘imprensa guerrilheira’, nas palavras de Denilson Vasconcelos, que era formada por mais de uma centena de publicações, que fustigavam os governos, lutavam pela democracia, os direitos humanos e até pelo socialismo (expressão hoje substituída pelo eufemismo ‘uma sociedade mais justa e igualitária’).
Mas não só. Alguns desses jornais – utilizando os poucos espaços de liberdades públicas existentes – avançaram também em suas propostas, rompendo com os modelos editoriais pré-estabelecidos pela imprensa clandestina de oposição. Opinião, Pasquim, Movimento, Coojornal, Em Tempo, De Fato, entre outros tantos, formavam a biodiversidade daquela floresta de papel e ideias. Cada um deles, a seu modo, foram experiências jornalísticas bem-sucedidas e, até certo ponto, sustentáveis apesar das dificuldades. Versus, uma criação jornalística de Marcos Faerman, na São Paulo de 1975, foi um dos principais jornais daqueles tempos. Fui um dos editores de Versus durante os quatro anos em que se manteve presente nas bancas, contribuindo para ampliar os horizontes de seus leitores e colaboradores. O texto a seguir é meu breve relato sobre esta experiência, que redigi a pedido de Unidade.
Alguém já disse que o dístico da bandeira brasileira deveria ser Caos e Progresso, em vez do tradicional Ordem e Progresso. Isto porque, neste planeta cada vez mais multipolar, veloz e desenfreado, só é possível progredir no olho do furacão, o que resulta em abandonar de uma vez por todas as antigas noções de ordem. Versus era assim, desordenado, indisciplinado, inventivo. Mas, com o tempo, aprendemos o suficiente para fazê-lo do nosso próprio jeito.
Marcos Faerman, o Marcão, foi um dos jornalistas mais talentosos e carismáticos que conheci e, ao redor dele, a partir do final de 1975, Versus articulou-se para viver um terremoto por dia. O jornal foi lançado poucos dias depois de anunciada a tragédia de Vladimir Herzog, um marco na história da imprensa brasileira e das lutas por nossas liberdades civis. Faerman trazia com ele a vivência que ganhou na redação no jornal EX, outro tablóide que marcou época no jornalismo alternativo brasileiro. Mas, lá, durante o processo surgiram muitas diferenças irreconciliáveis. Ele decidiu, então, deixar a redação do EX, que editou por algum tempo, e trilhar por outro caminho editorial.
Esta via levou Faerman a criar Versus, no qual incorporou sua paixão pela palavra e pelo new journalism, além de suas experiências anteriores, relevantes em sua carreira, como sua passagem pela editoria de Zero Hora e como repórter especial do Jornal da Tarde.
Democracia imperfeita
Ainda no EX, ele entrevistou o jornalista e escritor Eduardo Galeano, que lhe abriu os olhos para a experiência de Crisis, em Buenos Aires. Crisis reunia, além de Galeano, intelectuais e jornalistas ativistas de qualidade. Um deles era Juan Gelman, o maior poeta argentino e primeiro chefe de redação da revista, para citar apenas um exemplo. Faerman ficou vivamente impressionado com o que viu. Logo transferiu para o projeto de Versus uma parte do modelo proposto por Crisis.
Claro que a realidade política e a profunda tradição cultural argentina acentuaram bastante, com o passar do tempo, a distância entre as duas publicações, mas a temática da América hispânica que Versus incorporou de forma inédita no Brasil teve inspiração em Crisis. Conhecer a realidade repressiva latino-americana foi um choque em nosso espírito provinciano, em geral muito mais acostumado e sensível aos assuntos e debates da moda em Paris ou Nova York. Mas não só. Versus trabalhava sobre os mitos, a história, as culturas do continente com emoção. Por intolerância, algumas vezes fomos acusados de ‘viúvas da revolução’.
Na realidade, o Brasil sempre tratou de cima para baixo a América Latina, assim como ainda ocorre hoje. Basta ver o tratamento subalterno que a imprensa tradicional dedica em seus editoriais a Hugo Chávez, Evo Morales, Fernando Lugo e Rafael Correa, para falar só de alguns presidentes eleitos democraticamente na América do Sul, nos últimos tempos. A imprensa brasileira, assim como boa parte da classe política, ambas regionalistas, teimam em não ver as transformações da realidade mundial e a importância dos blocos econômicos e de países.
Entretanto, Faerman teve outra iluminação que muito contribuiu para Versus alcançar o sucesso editorial que nos levou à tiragem de 30 mil exemplares mensais: tratou de estabelecer pontes e abrir espaços na Universidade, que até então vivia cerceada pela ditadura. O processo de diálogo com setores engajados da Academia trouxe à redação intelectuais de qualidade, como Fernando Henrique Cardoso, Boris Schneiderman, o grande tradutor de russo, Modesto Carone, Octavio Ianni, Francisco Weffort, Gabriel Cohn e tantos outros. Mas não só os principais professores, também os estudantes ficaram mais próximos de nós, à medida que Versus politizou ainda mais seu discurso e passou a debater os rumos da Universidade e do Brasil, na batalha da democracia.
Quando os jovens assumiram a vanguarda da luta pela redemocratização do país, os estudantes passaram a apoiar Versus de forma incondicional, independentemente de correntes partidárias clandestinas ou legais.
Depois, as principais bandeiras foram arrebatadas pelo movimento operário, no ABC paulista, o que mudou por completo a dinâmica da política da época, com resultados até hoje bem vivos, que comprovam as brutais diferenças entre o passado, sob a ditadura militar, e o presente. Hoje praticamos uma democracia que enfrenta dificuldades e graves distorções, mas oferece uma oportunidade única para a nova geração de brasileiros, tanto no campo da política como em relação ao econômico e o cultural.
Clube de esquina
Versus, em seu permanente processo de transformação editorial, esteve à frente do processo, e antecipou as mudanças estruturais que estavam por acontecer. Cumpriu seu papel, apesar dos equívocos que cometemos e das evidentes fragilidades de nosso projeto jornalístico. Acredito, também, que não tínhamos plena consciência no que se refere à importância do jornal naquele cenário e, em algumas ocasiões, nos deixamos levar pelas mesquinharias típicas das redações de jornais. Ainda assim, em uma homenagem inesquecível, recebemos o Prêmio Vladimir Herzog, por um depoimento que publicamos denunciando a violência contra os presos políticos no país. O título era: ‘Carta de um torturado ao presidente Geisel’. Escrita no cárcere, era um libelo em favor dos direitos humanos. Foi um choque.
Versus foi uma experiência que não se repetirá. O país mudou muito desde aquela época – mais de 30 anos já se passaram! Penso que, hoje, as novas tecnologias que impulsionam a Internet que abrem um campo infinito de possibilidades. E, em especial, para a informação comprometida com a construção de uma sociedade mais justa e de um jornalismo crítico, muito mais amplo do que praticávamos com os poucos meios disponíveis há décadas. Na redação de Versus ficávamos felizes por termos, de vez em quando, um telefone para usar. Toda a comunicação com os autores, por exemplo, era feita por carta ou pessoalmente, quando alguém viajava a trabalho por outros estados ou para o estrangeiro. Sempre brincávamos dizendo que o melhor repórter do jornal era o carteiro, que trazia as matérias e colaborações.
Se compararmos aquela situação com a atual velocidade de processamento na web, com todas as ferramentas tecnológicas à mão e a um custo cada vez mais baixo, é fácil aí identificar as incríveis diferenças com o passado. Hoje, aos 56 anos, diante de um computador online dia e noite com o mundo, ainda não sei como ‘sobrevivi’ ao tempo que dediquei ao Versus. Foram quatro anos editando o jornal, quase sem recursos, carregando montanhas de jornais nas costas, cobrando o pagamento de jornaleiros, passando as noites nas gráficas mais sujas do planeta, e ainda com a censura, a polícia política e o aparato da ditadura – DOPS, CIEx, Polícia Federal, Receita Federal etc. – nos nossos calcanhares o tempo todo.
Agora nosso clube da esquina está na internet. O site ViaPolitica, que edito em conjunto com a jornalista Sylvia Bojunga, desde Porto Alegre, reúne parte da equipe remanescente de Versus. É uma prova de que companheirismo, amizade e confiança são valores mais fortes do que as distâncias e as diferentes visões de mundo. Sim, podemos conviver fraternalmente sem um pensamento único. No presente, fazem parte atuante da rede de apoiadores de ViaPolítica, muitos parceiros de Versus: Luiz Rosemberg Filho, Jorge Pinheiro, Toninho Mendes, Paulo de Tarso Venceslau, Renan Antunes de Oliveira, Mouzar Benedito, Luiz Egypto, Rosa Gauditano, Bruno Liberati, Mario Augusto Jakobskind, Halley Margon Jr., Claudio Willer, Beth Lima, Valfrido Lima, e outros mais que contribuirão, com sua experiência renovada, para enfrentar o desafio da web e das novas utopias.
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Jornalista, cineasta e tradutor, editor do Via Política e organizador do livro Versus – Páginas da Utopia (Azougue Editorial e Laser Press Comunicação)