Domingo (8/3) foi o Dia Internacional da Mulher. Para Cartola, mais que gênio, oxigênio de nosso cancioneiro popular, a mulher amada exala o perfume que rouba das rosas.
Mas, vejam vocês, como a mulher vem sendo maltratada em nosso cancioneiro popular – bonita expressão, entretanto substituída frequentemente por song book – por força da decadência do ensino, entre outras razões, pois nossos jovens não estão recebendo a devida educação.
Podemos verificar isso nas letras das músicas mais populares. ‘Vou mandando um beijinho/ Pra filhinha e pra vovó/ Só não posso esquecer/ Da minha eguinha Pocotó’.
Os leitores sabem que estes versos assim profundos e sutis, complexos, que atingiram as fronteiras mais ousadas da criatividade artística, estavam ou ainda estão na boca do povo. São de autoria de um compositor chamado MC Serginho.
Nestes versos, ele pegou leve, como se diz na gíria. Em outras canções foi mais ousado, como se percebe já nos títulos, todos de grande sucesso: ‘A lacraia gosta’, ‘Vai lacraia’ e ‘Eu quero a cachorra’. Há outras 46 letras de canções suas disponíveis na internet. De resto é comum comparar a mulher bichos domésticos, não apenas a cachorra, mas a gata, a perua, a vaca, a potranca etc.
E semana passada deu-se um pega no Congresso quando o ex-presidente Fernando Collor, agora representando Alagoas no Senado, disse que a senadora Ideli Salvatti, que representa Santa Catarina, ciscava para dentro. Enfureceram-se em defesa de minha conterrânea, mas sem motivo. Ela foi redimida porque o falecido Tancredo Neves usava a expressão para definir o bom político. Ah, bom! Mas o latim ciccus, que deu cisco, de onde se formou ciscar, designa qualquer coisa insignificante. E, além do mais, Tancredo poderia estar fazendo uma de suas conhecidas ironias, bom mineiro que era.
Versos elaborados
Nem sempre foi assim. Eis o belo exemplo de ‘As rosas não falam, as rosas exalam’, composição de Cartola.
‘Bate outra vez,/ Com esperanças o meu coração,/ Pois já vai terminando o verão, enfim/ Volto ao jardim,/ Com a certeza que devo chorar,/ Pois bem sei que não queres voltar para mim./ Queixo-me às rosas, mas que bobagem,/ As rosas não falam,/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti, ai./ Devias vir/ Para ver os meus olhos tristonhos/ E, quem sabe, sonhavas meus sonhos,/ Por fim’.
Na cadeira do dentista, enquanto ele devasta os tártaros dos meus dentes com a diligência habitual, vou ouvindo esses versos. Demorei a descobrir um bom dentista no Rio, mas o Brasil tem os melhores dentistas do mundo. É uma pena que poucos ainda tenham acesso aos bons tratamentos preventivos. E assim a maioria do povo recorre à segunda via, a dentadura. Políticos populistas distribuem dentaduras de graça em comícios, o que serviu de mote para um bom trecho de Rubem Fonseca.
Cartola recebeu este apelido porque, órfão de mãe aos quinze anos, abandonou a escola para trabalhar de servente de pedreiro. E usava um chapéu-coco para proteger-se do cimento que caía em sua cabeça.
Agenor de Oliveira, seu nome verdadeiro, nasceu em 1908 e passou a infância no bairro de Laranjeiras. Tendo apenas o curso primário, sabia o que é ‘exalar’ e ainda fez um bonito verso: ‘As rosas não falam, as rosas exalam o perfume que roubam de ti’. Num vestibular para a universidade, quantos candidatos saberão o que é exalar ou saberão escrever frases tão perfeitas como os versos elaborados por um servente de pedreiro que tinha apenas o curso primário? O ensino caiu ou não caiu? Comparem com os versos de ‘Eguinha Pocotó’.
Boa figura
Cartola fez grande sucesso nos anos 1930 e teve suas composições gravadas por Aracy de Almeida, Francisco Alves, Carmen Miranda e Sílvio Caldas, entre outros cobras.
Na década de 1940, ele sumiu. Dizem que teve várias doenças, entre as quais meningite. Quem o redescobriu, em 1956, foi o jornalista Sérgio Porto, mais conhecido pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta. Cartola estava trabalhando de lavador de carros em Ipanema, no Rio. Por aí vocês vejam como o Brasil trata seus criadores e artistas.
O conhecido humorista levou Cartola a vários programas de rádio e ele voltou a gravar. Em 1964, ele e sua esposa, Dona Zica, abriram um restaurante, o Zicartola, na Rua da Carioca, no Rio, ponto de encontro de intelectuais e jovens da Zona Sul e de sambistas dos morros.
Cartola tinha 66 anos quando em 1974 gravou o primeiro de seus quatros discos. No final da década de 1970 mudou-se do Morro da Mangueira para o bairro de Jacarepaguá, onde morou até morrer, em 1980.
Não entrou para a ABL, mas não faria má figura ao lado de nossos imortais, muitos do quais o apreciam muitíssimo.
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)