Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornal inglês pesquisa o lado sombrio dos comentários na internet

Como parte de uma série de matérias sobre o fenômeno global da perseguição online, cada vez mais intensa, o Guardian encomendou uma pesquisa dos 70 milhões de comentários deixados em seu site desde 2006 e descobriu que, entre os 10 autores de comentários mais ofensivos, oito são mulheres e os dois homens são negros. Leia abaixo o texto de três desses pesquisadores, explore as informações e ajude-nos a organizar melhores conversas online.

Os comentários permitem aos leitores responder a um artigo instantaneamente, fazendo perguntas, mostrando erros, dando novas dicas. As melhores sequências de comentários são reflexivas, esclarecedoras e engraçadas: nas comunidades online, os leitores interagem com jornalistas e outras pessoas de maneiras que enriquecem o jornalismo do Guardian.

Mas as piores são algo inteiramente diferente.

O Guardian não foi o único site de jornalismo a divulgar comentários nem foi o único a descobrir que parte daquilo que é escrito “abaixo da linha” é vulgar, preconceituoso e detestável. Em todos os sites de jornalismo que oferecem comentários, frequentemente são ditas coisas aos jornalistas e a outros leitores que seriam inimagináveis num bate-papo – e o Guardian não é uma exceção.

Uma nova pesquisa feita entre nossas sequências de comentários fornece as primeiras provas quantitativas daquilo que as jornalistas [femininas] suspeitavam há muito tempo: que os artigos escritos por mulheres são mais ofensivos e mais desdenhosos do que aqueles escritos por homens, independentemente do tema de que trate o artigo.

Embora a maioria dos autores de nossos comentários mais assíduos seja de homens brancos, descobrimos que aqueles que foram vítimas de um maior índice de ofensas e insultos não eram. Entre os dez comentaristas assíduos que foram mais ofendidos, oito eram mulheres (quatro brancos e quatro não brancas) e dois eram homens negros. E, das oito mulheres entre as “dez mais”, uma era muçulmana e a outra, judia.

E os dez comentarias assíduos menos ofensivos? Todos eram homens.

Dados a serem explorados

Como deveriam as organizações jornalísticas de mídia digital reagir a isso? Algumas pessoas dizem que é simples – “Não leia os comentários” ou, melhor ainda, apague-os todos. E muitas dessas organizações fizeram exatamente isso, eliminando seus comentários para sempre por estarem se tornando demasiado exigentes para se preocupar com eles.

Mas em muitos casos o jornalismo é enriquecido pelas reações de seus leitores. Por que eliminar todos os comentários quando somente uma pequena minoria representa um problema?

No Guardian, achamos que já estava passando do tempo de examinar o problema, e não voltar as costas. Decidimos tratar os 70 milhões de comentários que foram deixados no jornal – e, em particular, os comentários que haviam sido bloqueados por nossos moderadores – como um enorme conjunto de dados a ser explorado, e não como um problema a ser varrido para baixo do tapete.

O que descobrimos foi o que se segue.

Até hoje, 1,4 milhão de comentários (2% do total) foram bloqueados por moderadores do Guardian porque transgrediam os padrões de ética da comunidade do Guardian. A maioria deles era ofensiva, até certo ponto (podem ser em linguagem insultuosa ou em argumentos que apelam para a emoção, e não para a razão ou a lógica), ou tão fora de contexto que atrapalhava a conversa.

1º de 6 – Para ver se homens e mulheres eram tratados de maneira diferente pelos comentaristas, começamos por classificar os autores dos artigos por gênero. Embora o número de artigos publicados aumentasse com o tempo, a diferença de gênero dos comentaristas permanecia bastante semelhante, como se deu na maioria das organizações jornalísticas.

2º de 6 – Essa diferença de gênero é maior em algumas seções. A seção Esporte foi a que teve a menor proporção de artigos escritos por mulheres, mas as Notícias Internacionais e Tecnologia não ficaram muito atrás. A única seção que tinha um número significativamente maior de artigos escritos por mulheres era a Moda.

3º de 6 – Os artigos escritos por mulheres tiveram mais comentários bloqueados (ou seja, ofensivos ou destrutivos) em quase todas as seções. Mas quanto mais a seção tivesse uma maioria de autores masculinos, maior era o número de bloqueios de mulheres comentaristas (vide Esporte e Tecnologia). A Moda, onde a maioria dos artigos era escrita por mulheres, foi uma das poucas seções em que comentaristas masculinos sistematicamente recebiam mais bloqueios.

4º de 6 – Uma outra maneira de avaliar é que, desde cerca de 2010, o9s artigos escritos por mulheres sistematicamente atraem uma maior proporção de comentários bloqueados do que artigos escritos por homens.

5º de 6 – Algumas seções atraíram mais comentários bloqueados do que outras. Notícias Internacionais, Opinião e Meio Ambiente tiveram um número de comentários de natureza ofensiva ou destrutiva acima da média. Assim como Moda.

6º de 6 – Também descobrimos que alguns assuntos atraem mais comentários ofensivos e destrutivos do que outros. As conversas sobre palavras cruzadas, críquete, corridas de cavalos e jazz foram respeitosas; discussões sobre o conflito entre Israel e os palestinos não foram. Artigos sobre feminismo atraíram um número muito alto de comentários bloqueados. O mesmo aconteceu com o caso de estupro.

Um indicador de comportamento ofensivo

Centramos nossa pesquisa no gênero em parte porque queríamos testar a teoria de que as mulheres são mais ofensivas do que os homens. Tanto os jornalistas quanto os moderadores observam que minorias étnicas e religiosas e pessoas do grupo LGBT parecem ser desproporcionalmente ofensivas.

O que entendemos como “ofensa”?

Imagine você indo para o trabalho todo dia e atravessando uma multidão de pessoas dizendo ‘Você é uma idiota’, ‘Você é horrível’, ‘Você é asquerosa’, ‘Não acredito que você seja paga para fazer isso’. É uma maneira horrível de ir para o trabalho” (Jessica Valenti, jornalista do Guardian).

No Guardian, os autores dos comentários devem acatar os padrões da comunidade, que procuram manter a conversa respeitosa e construtiva – os que infringem esses padrões são bloqueados. Os moderadores do Guardian não bloqueiam comentários simplesmente por não concordar com eles.

O Guardian também bloqueia comentários por motivos legais, mas isso representa uma proporção muito pequena dos bloqueios. Os spam não são bloqueados (ou seja, substituídos por uma mensagem-padrão do moderador), mas apagados – e não são incluídos entre os que descobrimos; também não o são as respostas a comentários bloqueados, que são automaticamente apagadas.

A grande maioria dos comentários bloqueados, portanto, foi bloqueada porque eles foram considerados ofensivos, até certo ponto, ou destrutivos em relação à conversa (fora de contexto, por exemplo). Portanto, para os objetivos desta pesquisa, usamos os comentários bloqueados como um indicador de comportamento ofensivo e destrutivo. Mesmo levando em consideração o erro humano, o grande número de comentários bloqueados deu-nos confiança nos resultados.

O discurso do ódio raramente é visto

Mas o que consideramos um comportamento ofensivo e destrutivo?

Em seu lado mais extremo, a ofensiva online assume a forma de ameaças de morte, de estupro ou de mutilação. Felizmente, esse tipo de ofensa é raro no Guardian – e quando aparecer foi imediatamente bloqueado e o autor do comentário foi banido.

A ofensa ao autor dos comentários menos extremada – o discurso humilhante e insultuoso dirigido ao autor do artigo ou a outro comentário que lhe tivesse sido feito – é muito mais comum em sites jornalísticos e também constitui uma proporção significativa dos comentários que foram bloqueados no Guardian. Eis aqui alguns exemplos: uma jornalista faz a cobertura de uma manifestação em frente de uma clínica que pratica abortos e um leitor responde: “Você é tão feia que se ficasse grávida eu próprio a conduziria à clínica”; uma muçulmana britânica escreve sobre suas experiências de islamofobia e recebe o recado: “Case com um combatente do Estado Islâmico e depois veja com o que ficou parecendo”; um correspondente negro é acusado de ser “um racista que odeia pessoas brancas” quando divulga a notícia de que outro norte-americano negro foi morto pela polícia. Não toleramos esse tipo de insultos no jornal impresso e no Guardian também não o toleramos online.

O Guardian também bloqueou agressões (em linguagem insultuosa ou através de argumentos que apelam para a emoção, e não para a razão ou a lógica) tanto a leitores quanto a jornalistas: comentários como “Você é tão ignorante”, “Você se intitula jornalista?” ou “Você é pago para fazer isto?” são vazios e em nada contribuem para valorizar o debate.

Ofensas desdenhosas também foram bloqueadas: comentários como “Pega leve, meu caro”, que ridicularizavam ou descartavam o autor do artigo ou outros leitores, e não se envolviam com o texto propriamente dito.

Sabemos que as ofensas online nem sempre se dirigem a pessoas. O discurso do ódio, tal como é definido por lei, raramente é visto em sequências de comentários no Guardian (e quando aparece, é bloqueado e o autor do comentário, banido). Mas a xenofobia, o racismo, o sexismo e a homofobia são vistos constantemente. Vejam-se, por exemplo, alguns dos comentários deixados no rodapé de um artigo sobre o número maciço de homens, mulheres e crianças imigrantes afogados no Mediterrâneo: “Essas pessoas não contribuem em nada para os países em que entram”, “Quanto mais corpos boiando no mar, melhor”, “Que se afoguem todos!”. No Guardian, comentários como esses são considerados ofensivos e foram impedidos de aparecer no site.

Um floco de neve numa avalanche

O Guardian também bloqueou comentários que poderiam confundir ou desviar o debate de seus objetivos: vários tipos de “achismo” ou observações claramente fora de contexto. Embora não sejam propriamente ofensivos, esses comentários servem para tornar um debate construtivo impossível e mostram falta de respeito em relação ao jornalista e a outros autores de comentários.

Às vezes, as decisões do moderador são fáceis, mas também pode ser difícil saber onde traçar a linha de separação. Todas têm por base os padrões de ética da comunidade do Guardian, e não as preferências ou opiniões pessoais dos moderadores.

E o prejuízo?

Mesmo que eu diga a mim próprio que o fato de alguém me chamar crioulo ou bicha não significa nada, isso tem um preço: tem um efeito emocional, tem um preço físico. E com o tempo isso vai crescendo” (Steven Thrasher, jornalista do Guardian).

No Guardian, leitores e jornalistas podem divulgar comentários ofensivos ou fora de contexto e os moderadores irão rapidamente bloqueá-los se infringirem os padrões de ética da comunidade. A moderação minimiza o estrago feito pela ofensa que é postada no site.

Mas para os jornalistas, a ofensa raramente fica confinada ao site em que aparece e em alguns sites e plataformas de redes sociais é muito difícil conseguir eliminar comentários ofensivos. Para eles, portanto, a ofensa que recebem no rodapé do artigo que escreveram não é considerada um fato isolado: cada comentário sarcástico, cada tuíte maldoso é (como disse uma vez Zoe Quinn) apenas um floco de neve numa avalanche.

Como analisar 70 milhões de comentários

E as avalanches acontecem facilmente na internet. O anonimato desinibe as pessoas tornando algumas delas facilmente ofensivas. Turbas podem se formar rapidamente: desde que um comentário ofensivo seja postado, muitas vezes empilham-se outros, competindo para ver quem é mais cruel. Esse tipo de ofensa pode transitar pelas plataformas a alta velocidade – do Twitter para o Facebook e para os blogs – e pode ser visto em vários dispositivos – o desktop, no trabalho, e o celular em casa. Para a pessoa que recebe, o autor do comentário pode estar em qualquer lugar: em casa, no escritório, no ônibus ou na rua.

Porém, além do prejuízo psicológico e profissional que as ofensas e o assédio online podem causar as pessoas, também há prejuízos sociais. Uma pesquisa recente feita pelo Centro Pew constatou que não só 40% de pessoas adultas passaram por assédio online, como 73% delas haviam sido testemunhas de outras pessoas passando igualmente por assédio. Isto com certeza tem um efeito paralisante, silenciando pessoas que poderiam contribuir para debates públicos – em especial mulheres, pessoas do grupo LGBT e minorias raciais e religiosas, que veem outras pessoas sendo ofendidas em termos raciais e sexuais.

Seria este o tipo de cultura em que queremos viver?

Seria esta a internet que queremos?

Como podemos criar a internet que queremos?

Eu acho que manter os comentários abertos é um projeto digno, mesmo se você não gosta do que os leitores estão dizendo ou da maneira como o fazem. Os jornalistas têm que ser desafiados” (Nesrine Malik, jornalista e comentarista).

Cinco anos atrás, as ofensas e o assédio online eram descartados como coisa sem importância. Hoje, não. Há uma preocupação pública muito difundida e mais apoio às propostas anti-assédio. Mas ninguém finge que isto é um problema fácil de consertar – não no caso da sequência de comentários do Guardian, onde a maioria dos autores dos comentários é respeitosa e há um alto nível de moderação, e também não na internet como um todo, onde às vezes não existe proteção alguma.

O Guardian se comprometeu a abordar o problema. Esta pesquisa é parte disso: uma tentativa de ser aberto e de compartilhar publicamente aquilo que for descoberto. Esperamos pesquisar ainda mais para ir mais fundo no problema e descobrir não só o que leva as conversas a darem errado, mas também o que as organizações jornalísticas podem fazer para nos ajudar a melhorar as conversas e até mais.

O comportamento ofensivo não é normal nem inevitável

O Guardian já tomou a decisão de reduzir o número de lugares em que se abrem comentários relativos a alguns assuntos particularmente controvertidos, como imigração e raça. Isso permite aos moderadores manter mais de perto uma observação sobre conversas que sabemos que são mais plausíveis de atrair ofensas.

Entretanto, ao contrário de muitos sites jornalísticos, o Guardian não pretende fechar os comentários de vez. Em sua maioria, os leitores enriquecem o jornalismo do Guardian. Só 2% dos comentários são bloqueados (e mais 2% são apagados porque são spam ou respostas a comentários bloqueados); em sua maioria, os comentários são respeitosos e muitos são maravilhosos. Uma boa sequência de comentários dá satisfação de ler – e é mais comum do que pensam seus detratores, que dizem “Não leia os comentários”.

Como diz a professora Danielle Keats Citron em seu livro Hate Crimes in Cyberspace, o comportamento ofensivo não é normal nem inevitável. Onde ele exista, é um problema cultural que, coletivamente, devemos tentar resolver usando os meios à nossa disposição: tecnológicos e sociais.

Que é onde entra o leitor. Nós queremos ouvir dos leitores do Guardian: quando se trata de viabilizar um espaço em que todos se sintam capazes de participar, o que é que o Guardian vem fazendo de acertado e como pode melhorar? Reflita por um momento, por favor, para nos dizer aqui.

N.R.  Esta é uma nova versão corrigida e ampliada da tradução original.

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Becky Gardiner, Mahana Mansfield, Ian Anderson, Josh Holder, Daan Louter e Monica Ulmann, do The Guardian