Na manhã de quinta-feira (5/3) assisti, no Bom Dia Brasil, à polêmica entre o médico Sérgio Cabral e o arcebispo de Olinda e Recife. O médico sugeriu um aborto para uma menina que foi estuprada e o arcebispo disse que ele será excomungado em razão disto. O debate me causou algum estranhamento e no percurso para o trabalho consegui dar forma ao mesmo.
A cena do arcebispo proferindo a sentença de excomunhão me fez lembrar das diversas versões cinematográficas que tenho da história de Joana D´Arc. No princípio do processo, um clérigo adverte o bispo Cauchon, que foi encarregado de conduzir os trabalhos, de que uma decisão excomungatória só pode ser proferida quando terminar o processo e nunca antes disto.
É impossível dizer se o fato retratado na cena citada ocorreu ou não. Mas se sabe que ‘Cauchon convocou a Inquisição para o processo’ (Joana D´Arc – a lenda e a realidade, Francês Gies, Zahar, 1982). Também é sabido que de ‘acordo com os procedimentos das cortes de direito canônico, baseados nas das cortes de direito romano, os acusados tinham que testemunhar contra si mesmos, não tinham oportunidade de contestar as testemunhas da acusação, não tinham acesso a advogado e quase sempre não podiam recorrer’ (op. cit.).
Sentença sem processo
Seis séculos separam-nos de Cauchon e, portanto, é bem possível que o arcebispo brasileiro não se tenha inspirado nele ou nos princípios do processo canônico inquisitório. A mim parece mais verossímil que sua eminência tenha seguido a jurisimprudência do atual presidente do STF.
Sempre que pode ou quer, Gilmar Mendes usa a imprensa para proferir julgamentos jurídicos sobre questões hipotéticas que não lhe foram dadas ao conhecimento num processo regular. Foi assim no caso do Daniel Dantas, tem sido assim em relação aos movimentos dos sem terra (ver aqui). Nunca é demais lembrar que no sistema jurídico brasileiro existem normas expressas dispondo que o magistrado (juiz, desembargador, ministro do STJ e STF) só pode agir mediante provocação. Deixando as normas de lado, Gilmar Mendes se transformou num verdadeiro provocador midiático, numa espécie de parlamentar com mandato da oposição (curiosamente, o mesmo Gilmar Mendes que ataca os sem-terra nunca se manifesta preocupado com as violações do art. 7º, da CF/88, por banqueiros e fazendeiros).
Há semelhanças entre a conduta de Gilmar Mendes e a do arcebispo de Olinda e Recife. Seguindo o exemplo do magistrado laico, sua eminência também proferiu uma sentença condenatória sem que exista um processo.
O habitante do deserto
Admito ser um diletante em questões eclesiásticas. Mas pelo pouco que conheço, o direito canônico também impõe às autoridades eclesiásticas uma série de ritos que devem ser seguidos para que possam proferir uma sentença válida de excomunhão. Os artigos 1.501 e seguintes do código canônico (ver aqui) prescrevem a forma do processo, o exercício do direito de defesa, a maneira como são produzidas as provas (documentos, testemunhas, perícias) e os incidentes. Somente depois de ultimadas todas as formalidades é que pode ser proferida uma decisão canonicamente válida.
Tanto o processo laico como o canônico têm por objeto a supressão de uma conduta inadequada ou sua punição. De maneira geral, o criminoso (uso aqui este termo num sentido amplo para designar todos aqueles que infringem as normas jurídicas válidas) é aquele que coloca seus interesses e vontades acima dos interesses e vontades das demais pessoas com as quais se relaciona. O criminoso age após julgar apenas os benefícios que irá auferir e nunca se preocupa com as conseqüências de suas ações.
Hannah Arendt dizia que a política só existe no espaço voluntariamente criado entre os homens. Onde a truculência e o autoritarismo imperam não há política, mas apenas um deserto. A política produz as normas jurídicas e também é um produto delas. São as normas válidas criadas voluntariamente pela comunidade que permitem sua existência e perpetuação. Nesse sentido, podemos dizer que o criminoso é um habitante do deserto.
Sensação de onipotência
A autoridade laica ou eclesiástica que abandona as formalidades indispensáveis, que nega aos demais o direito ao processo válido, à prova e a um julgamento regular em razão de sua predileção pelos holofotes da mídia, sai da arena política e também entra no deserto. Sua conduta atípica, ilegítima ou ilegal a coloca na mesma condição do criminoso que pretende punir sem a observância das normas.
Um filósofo francês disse que vivemos numa sociedade do espetáculo. Isto é mais ou menos verdadeiro. Se considerarmos as vestes talares dos advogados, promotores e juízes, a linguagem específica que eles são obrigados a utilizar, os rituais formais que são obrigados a realizar para conferir validade às decisões que são produzidas no processo, se pode concluir que o espetáculo também existe no Direito.
Mas há uma diferença entre o espetáculo jurídico e o espetáculo midiático. No mundo jurídico, o espetáculo é um subproduto daquilo que se pretende (distribuir a melhor justiça possível), não uma finalidade em si mesmo. Na imprensa o espetáculo é o produto da atividade do jornalista e o conteúdo mesmo de sua preocupação. Os atores jurídicos cumprem regras que são previamente definidas e que todos são obrigados a conhecer e cumprir, sob pena do ato ser desfeito. Na mídia, os rituais não existem e há uma sensação de onipotência porque um espetáculo pode sempre acarretar outro ou ser desfeito por um novo espetáculo. O problema é que os rituais midiáticos podem produzir conseqüências nocivas para a cena jurídica. Isto já está ocorrendo.
Magistrados laicos e eclesiásticos
Quando juízes e autoridades eclesiásticas se esquecem que também têm que cumprir normas, as próprias normas são violadas. Mais que isto, a autoridade atribuída voluntariamente às mesmas pela comunidade é colocada em xeque e acaba se diluindo. Já que as autoridades não pensam muito nas conseqüências nocivas de suas exibições exageradas, os jornalistas podem muito bem começar a meditar mais sobre o deserto que estão expandindo.
Se os jornalistas não perceberem o mal que podem produzir na cena jurídica e política, retornaremos aos temos da Inquisição. Toda vez que assisto a uma das versões da história de Joana D´Arc ou leio um livro sobre este assunto fico emocionado. Sou advogado e aquele processo conduzido por Cauchon definitivamente não é e nunca vai ser o tipo de processo que me agrada ou convence. É por isto que quando ligo a televisão fico apavorado. Gilmar Mendes e seu discípulo arcebispo de Olinda e Recife estão adotando um processo inquisitório digno de Cauchon. É este tipo de processo que queremos? É esta a justiça que precisamos? É este o tratamento que merecemos? Não sou católico, mas se Deus existir que me livre destes magistrados laicos e eclesiásticos brasileiros. Amém!
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Advogado, Osasco, SP