Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A judicialização da política e a politização da justiça

A judicialização da política, no sentido da ampliação da influência dos tribunais a zonas antes reservadas a outros poderes, é uma tendência mundial que, como tal, registra múltiplas causas. A primeira, positiva, é a ampliação de direitos. Em muitos países, principalmente aqueles herdeiros de uma tradição liberal, o Poder Judiciário dedicou-se, basicamente, a proteger a liberdade num sentido negativo, ou seja, a liberdade individual e a propriedade privada. Porém, num movimento que começou no século 20 e ganhou impulso a partir do pós II Guerra, foram se somando a esses direitos elementares os direitos da segunda geração, relacionados às condições de vida, ao trabalho e ao bem-estar das pessoas, e mais tarde, na década de 80, os chamados “direitos difusos”, que não se referem às pessoas, e sim, à sociedade como um todo (ao meio ambiente saudável, à cultura etc.).

Com suas nuances e particularidades, a Argentina acompanhou esta tendência, primeiramente através da “Constituição social” do primeiro peronismo e seu principal legado, o artigo 14 bis, e depois com a reforma menem-alfonsinista de 1994. O novo catálogo de direitos possibilitou litígios e demandas vinculados a cada vez mais temas, principalmente a partir de 1983, quando a recuperação da democracia deu oportunidade a um novo protagonismo dos tribunais. Trata-se, como sustenta o sociólogo Javier Couso [“Consolidación democrática y Poder Judicial: los riesgos de la judicialización de la política”, Revista de Ciencia Política de la Universidad Diego Portales, vol. XXIV, nº 2, Santiago de Chile, 2004], de um fenômeno comum aos países da terceira onda de democratização: ao longo dos anos, e em alguns casos – como Espanha, Portugal e, num processo não contínuo, a Argentina – décadas de ditadura, a sociedade começou a depositar nos “juízes liberais” a esperança de uma rápida correção dos abusos autoritários de uma classe política à qual ainda se considerava contaminada pelo autoritarismo e populismo do passado, conforme a famosa apologia de Tocqueville ao poder dos magistrados como freio à tirania das assembleias políticas.

Fortalecidos por uma autoestima renovada e, ao contrário de outros poderes do Estado, com seus recursos institucionais intactos, os juízes avaliaram esta nova “cultura de direitos” que crescia à medida que se protegia a democracia, para ampliar seu raio de ação até abranger um número cada vez maior dos aspectos da vida pública. Nem todas as consequências foram negativas: um caso claro de ativismo jurídico positivo é o do Juicio a las Juntas e seu posterior transbordamento, que levou o alfonsinismo a tentar frear a avidez justiceira dos magistrados por meio das leis de Obediência Devida e Ponto Final.

Cada país viveu o fenômeno de maneira diferente. A tendência à judicialização ganhou força com projetos institucionais que tendem a dispersar o poder – por exemplo, com sistemas federais como o nosso, ou que incorporam novos mecanismos legais, como a proteção, elevada a categoria constitucional na reforma de 1994. E, mais decisivamente, cresceu naqueles lugares em que se registrou uma mobilização legal a partir de baixo – estruturas especializadas de apoio para que as organizações de direitos humanos, as ONGs ou os movimentos sociais canalizem seus pedidos junto ao Poder Judiciário, seja através de uma entidade progressista (como, digamos, o Colégio de Estudos Legais e Sociais – CELS) ou conservadora (como, digamos, o Colégio de Advogados da capital federal).

Efeitos

O Poder Judiciário tem a obrigação de proteger os direitos de todos os cidadãos, como, por exemplo, os das minorias impopulares, e os habituais excessos das maiorias: se o governador de uma província argentina quisesse proibir o acesso ao sistema de educação, ou de saúde, aos bolivianos (ou peruanos, ou judeus), provavelmente todos concordaríamos que a justiça agiria corretamente se o proibisse. O problema surge quando os juízes ultrapassam a estrita proteção dos direitos, quando seu papel de “legislador negativo”, no sentido de anular decisões consideradas inconstitucionais, passa a ser o de “legislador positivo”, quando ao invés de controlar as leis passam a acomodá-las, num molde.

Por que isso é um problema? Em primeiro lugar porque os juízes não têm as ferramentas adequadas para dar resposta a muitas questões sobre as quais costumam manifestar-se. Sua qualidade contra-majoritária – no sentido de que, às vezes, devem ir contra a opinião preponderante – decorre do status específico que ocupam no Estado: o Poder Judiciário, como se sabe, é o único dos três poderes cujos integrantes não são eleitos democraticamente e, por isso, não podem ser punidos na eleição seguinte; é também o único que garante estabilidade no cargo e obriga seus membros a terem diploma universitário e a manipular os rudimentos de um palavrório tecnológico tão obscuro e, inclusive, mais azedo, que o dos economistas. Os juízes não estão preparados – nem institucional, nem doutrinariamente – para resolver muitos dos problemas que enfrentam: podem errar, ou tomar uma decisão errada, mas não podem governar.

Isso não significa que não façam política – num sentido ou no outro. Com origem, de uma maneira geral, no mesmo estrato social e frequentemente defensores de uma mesma ideologia, os juízes, como sustenta Lucas Arrimada [“Los jueces como actores estratégicos”, Infobae, 25-8-2014], não são alheios ao sistema político, e sim, um produto da política e dos consensos multipartidários com aqueles foram nomeados. Muitos deles, inclusive, têm uma trajetória política desenvolvida a partir dos bastidores, a ponto de que alguns partidos, como o Partido Radical, se encontram nitidamente sobre-representados nos tribunais.

Mas as consequências da judicialização da política não se limitam aos riscos de delegar ao mais aristocrático dos órgãos de governo decisões que deveriam ser adotadas pelos representantes do povo. Talvez o problema central resida no fato de que a judicialização não resolve, mas adia os conflitos. Mais do que uma consequência da ânsia de protagonismo dos magistrados, a judicialização é, na maioria dos casos, uma reação à dificuldade que têm os dirigentes e os partidos em encontrar respostas: como afirma Arrimada, é um resultado do silêncio da política.

Tendência internacional

Devido à dispersão institucional que resulta de suas dimensões continentais, à profundidade de seu federalismo e a uma tradição liberal que se transformou numa desconfiança quase genética na concentração do poder, os Estados Unidos contam com uma longa história de ativismo jurídico, com momentos particularmente conflitivos durante o governo de Roosevelt, quando a Suprema Corte tentou frear boa parte da legislação da New Deal até que o presidente, fortalecido após sua reeleição, ameaçou investigá-la – com exemplos mais positivos nas decisões da Corte Warren, contra a segregação racial nas escolas e no transporte. A famosa “advertência Miranda” – “Você tem o direito a ficar em silêncio e qualquer coisa que diga poderá ser usada contra você…” – é uma garantia baseada numa decisão do tribunal [de 1966].

Na Argentina, após décadas durante as quais o Poder Judiciário acompanhou de maneira bastante passiva os distintos governos, a judicialização da política converteu-se num fenômeno diário, que se pode comprovar com uma rápida leitura dos jornais. Sua quantificação é difícil, mas não impossível: em “La Corte Suprema frente al gobierno” [exposição preparada para o XII Congresso Nacional de Ciência Política, organizado pela Sociedade Argentina de Análise Política e pela Universidade Nacional de Cuyo, Mendoza, de 12 a 15 de agosto de 2015], Gustavo Arballo analisou 502 casos “politicamente perfilados”, definidos como aqueles que fazem parte da agenda do debate público, resolvidos pela Corte Suprema entre 1984 e 2013, e chegou à conclusão de que se registrou um aumento significativo na última década.

Em todo caso, uma simples revisão da história recente confirma que iniciativas do Poder Executivo apoiadas por amplas maiorias legislativas pluripartidárias – o tratado de Beagle, durante o alfonsinismo, as privatizações, durante o menemismo, e a Ley de Medios, durante o kirchnerismo – terminaram definindo-se, em alguns casos, por meio da Câmara Penal [órgão para o qual uma decisão é delegada caso os integrantes da Corte Suprema não cheguem a um acordo], o que nos põe na situação um pouco incômoda de aceitar a legalidade de decisões que muitas vezes não compartilhamos. Nesse sentido, é interessante assinalar que a impugnação judicial partiu – nestes três casos e em muitos outros – dos partidos que haviam perdido o debate no parlamento, o que confirma que os principais responsáveis pela judicialização da política são, quase sempre… os políticos.

E há, finalmente, exemplos de uma extravagância caribenha. No Brasil, a justiça se arrogou o direito de frear uma decisão tão ostensivamente política como a nomeação de um ministro (Lula, que não pode assumir como chefe da Casa Civil) sob o argumento de que o cargo lhe daria ferramentas para evitar processos contra ele. Na Argentina, diante da impossibilidade do kirchnerismo e o macrismo coordenarem de maneira razoável a transferência de poder, uma juíza (Servini de Cubría) decidiu que os constituintes haviam sido tão descuidados a ponto de deixar o país acéfalo durante uma noite, da entrega do bastão presidencial ao juramento do novo mandatário, o que resultou na festejada presidência desse ícone das redes sociais em que se converteu o sereno, educado e sóbrio Federico Pinedo [presidente do Senado].

Por estes dias, o ativismo jurídico encontra seu lado mais melodramático na corrupção, que reaparece cronicamente quando se apaga um ciclo político, com suas denúncias, detenções e confissões de minuto a minuto. De certo modo, isso é inevitável. Desde o momento em que a personalização política concentrou o foco da atenção pública nos dirigentes, e não nos partidos, ou programas, a reputação pessoal se transformou num capital decisivo e os esforços no sentido de a demolir são um recurso essencial. No entanto, como demonstra a sequência italiana Mani Pulite [operação Mãos limpas] – crise de representação – Berlusconi, nem sempre o ideal higienista leva ao destino esperado, o que não implica, sem dúvida alguma, que devam ser evitados os processos, ainda que simplesmente para advertir para as consequências. Isto porque se os juízes ganham poder, então a reação natural dos políticos será tentar influenciá-los. As caras da lua são duas: a judicialização da política leva à politização da justiça.

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José Natanson é diretor da versão argentina do jornal mensal Le Monde diplomatique