Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

De “cheerleader” a cartógrafo

Hoje compro briga com os jornalistas” disse o Pirula com seu olhar desafiador no programa de abril focado no jornalismo científico. Mas quando um dos melhores, e para alguns, o melhor divulgador de ciência do Brasil expõe suas ideias, ele não gera enfrentamentos: muito pelo contrário, começa um debate interessantíssimo.

O propósito do Pirula foi nobre: que a divulgação e o jornalismo cientifico melhorem no Brasil. O caminho que ele escolheu, porém, foi torto. Pirula põe como exemplo o jornal britânico Daily Mail, que não e’ considerado um veiculo de jornalismo sério, e o coloca em oposição a sites brasileiros de curiosidades. “A gente tem um sério problema no jornalismo científico” conclui. Uma grande verdade, mas não completamente pelas razões que o biólogo e divulgador científico enxerga.

Pirula coloca sal na ferida do sempre difícil relacionamento com as fontes. “O texto do repórter é sagrado, e é importante que ele tenha autonomia, porém no jornalismo cientifico…” começa a argumentar. E justificando-se no fato inegável de que o jornalista cientifico não tem como saber de tudo, sugere que os textos sejam corrigidos previamente a difusão, para que o cientista consultado como fonte não passe mico por eventuais erros do jornalista. Aliás, oferece seu olhar compassivo aos cientistas que por experiências previas, próprias ou não, “tem medo, pavor, ódio do jornalista”.

Formado em ciências, Pirula esquece que o diálogo do jornalista com o pesquisador exige um esforço extra de ambas partes. Entre outros motivos, porque a precisão é para os cientistas como a pontualidade para os suíços, um valor por cima de tudo. E essa regra não é apropriada em todas as situações. Se o problema fosse apenas o jargão científico, uma solução para evitar mal-entendidos poderia ser entrar no mundo técnico hiper-especializado exigindo ao interlocutor deixar por um momento de se dirigir imaginariamente a seus colegas e se expressar com a voz do povo. Simplificar o complexo é, sem dúvida, uma cortesia da inteligência. Mas tem que haver uma troca: o necessário esforço prévio do repórter para pesquisar o assunto, e se colocar na cabeça do homem ou da mulher de ciência para reduzir as diferencias.

Equipes científicas nas redações

Enviar os textos às fontes antes da divulgação é inaceitável para os jornalistas de outras seções, mas é uma alternativa que muitos de nós, que trabalhamos em ciência, saúde e tecnologias já fizemos, com resultados diversos. O jornalista Reinaldo José Lopez, que já trabalhou na redação da Folha enfrentou experiências inesquecíveis, como a maioria dos seus colegas que tentaram essa opção alguma vez. Ele lembra até de cientistas que em lugar de indicar a existência de erros “procuram virar editor de estilo”. Mas as limitações de uma consulta previa dependem também do próprio conteúdo: “Cientista é gente, diz Reinaldo. Às vezes fazemos matérias sobre preconceitos, investimentos errados, plágios, brigas políticas”. Ele propõe uma solução melhor que o controle: investir em equipes especializados em ciência. “Sem plantel de especialistas, não vai ter jeito.”

Entregar de volta a matéria ao cientista é absurdo, irrealista e autoritário” se enfurece Devamil, outro videoblogger que como Reinaldo se declara fã do Pirula, e como ele também se permite discordar publicamente em uma emissão do seu canal “Alimenta o Cérebro”. “Para isso temos o preparo e a ética do próprio profissional.” Devamil, que mudou a carreira de astronomia pela de jornalismo, oferece no programa dele uma explicação simples e didática sobre as diferenças entre jornalismo, divulgação, ciência e relações públicas. “Talvez existam cientistas que não querem entender o que é o jornalismo, … mas a solução é conversar mais com os cientistas. Vocês não imaginam como pode ser acessível falar com um Prêmio Nobel” se entusiasma.

Também Mauricio Tuffani, editor do Direto da ciência, entrou na conversa em rede depois do vídeo do Pirula. “ O jornalismo não se restringe a “simplesmente traduzir” a linguagem científica para o público leigo, pois o trabalho da imprensa deve envolver também uma atitude crítica com relação às próprias fontes. Também deve, sempre que possível, envolver o contraditório. Uma reportagem sobre ciência que aborde posições antagônicas sobre um tema correrá o sério risco de não prosperar se for submetida previamente a suas fontes. Graças à pressão da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em novembro de 2003 o Conselho Federal de Medicina (CFM) revogou sua “resolução da mordaça”, expedida dois meses antes, que obrigava médicos entrevistados por jornalistas a exigir destes a submissão prévia de seus textos.”

O problema dos cientistas que se fecham à imprensa não é do Brasil. No curso on line de jornalismo científico, desenvolvido pela Federação Mundial dos Jornalistas Científicos e a Rede de Ciência e Desenvolvimento (disponível em portugues), a sul africana Christina Scott propõe um meio termo interessante: “Se o cientista estiver relutante em conceder a entrevista, pergunte-lhe por números de telefone para que você possa ligar e ler as partes mais importantes do seu texto para garantir sua precisão. Enviar por e-mail o texto completo faria com que você perdesse o controle de sua matéria, por isso telefonar é melhor. Mas nunca se ofereça para fazer isso se você não pretende fazê-lo. Além disso, não leia seus textos para políticos, incluindo ministros da ciência e seus assessores de imprensa ou porta-vozes. Tome cuidado com pessoas que tentam alterar o que você escreveu. Insista que você só quer checar os fatos”.

A relação por vezes conturbada entre cientistas e jornalistas brasileiros está detalhada também numa série de reportagens sobre jornalismo científico, da revista da FAPESP onde há uma proposta interessante: “Uma compreensão mais apurada dos processos de produção do conhecimento científico pelos jornalistas e – algo raríssimo nas universidades brasileiras – um treinamento dos cientistas para falar com a imprensa certamente levaria a reportagens mais satisfatórias“, escreveu Carlos Fioravanti.

O que o jornalista científico faz?

O chute no ar do Pirula foi longe, porque levou a discussão até o papel dos jornalistas e das equipes de divulgação vinculadas a universidades e museus. Reinaldo Lopez, apresentado pelo próprio Pirula como um dos três melhores jornalistas científicos do país (junto ao Carlos Orsi e Herton Escobar) rebate em seu videolog a importância atribuída pelo Pirula a estas fontes privilegiadas que, sem dúvida nenhuma, facilitam a vida dos repórteres, mas não são nem fonte direta nem jornalistas. “Raramente os bons veículos reproduzem o trabalho que chega facilitado. Tentam fazer trabalho original com a fonte original, o paper acadêmico ou o cientista.” De fato, ninguém espera que os profissionais que são pagos para fazer releases bonitos, adotem os mesmos critérios do jornalismo independente. Com o domínio da linguajem dos habituados a utilizar boas metáforas, Reinaldo ensina o aos futuros repórteres de ciência a ter um olhar mas critico: “Não vire cheerleader de cientista”.

A situação ficou confusa porque os escritórios de comunicação das organizações, que previamente trabalhavam apenas como fontes, agora produzem conteúdo com métodos de apresentação jornalística dirigida a audiências não especializadas. Em consequência, as funções e práticas do jornalista “original” também mudou. “O trabalho (do jornalista científico) se parece hoje mais ao de um crítico artístico ou literário, com uma função interpretativa muito importante – avalia o professor de jornalismo Declan Fahy. “Uma metáfora mais apropriada para descrever o trabalho de um repórter científico é o de um cartógrafo, que guia aos leitores a traves da informação científica, mapeando o território e iluminando as notícias”.

E muito inspirador ler as ideias de Fahy, publicadas no site Big Think, e na Columbia Journalism Review, sobre o novo ecossistema ciência- mídia. Ele destaca que além de descrever o produto final da ciência, os jornalistas estão agora examinando os processos, avaliando, comparando, iluminando os cantos, se fazendo perguntas. “Mais do que o furo, os jornalistas hoje pretendem ter credibilidade e autoridade, saber mais e melhor, compreendendo o assunto com mais alcance e profundidade. ” Fahy que é professor do curso de Jornalismo em Saúde, ciência e meio ambiente da Escola de Comunicação da American University, em Washington e seu colega Matthew Nisvet, chegaram à conclusão que nos últimos dez anos, devido a questões econômicas e tecnológicas, o jornalista científico mudou, tendo agora uma pluralidade de funções que as vezes se superpõem.

Os jornalistas estão virando cada vez mais curadores de conteúdo científico, por exemplo, catam a informação, as opiniões e os comentários da web e a apresentam de forma estruturada. Fahy indica uma seção do jornal britânico The Guardian, chamada Story Trackers onde os repórteres seguem o desenvolvimento das histórias, e nas horas e dias que seguem aos grandes anúncios científicos, eles atualizam e oferecem links a fontes externas de informação e comentários. Isso permite aos leitores seguir a história num único lugar. Ele cita ao editor de Meio ambiente e Ciência James Randerson: “Fizemos uma decisão muito consciente para dar valor as histórias fazendo o trabalho de curador. E basicamente admitindo que não somos a fonte de conhecimento, que temos a habilidade de apresentar informação em um modo útil e decidir que informação é útil ou inútil”.

Você conta com os dedos da mão de Lula os bons jornalistas científicos no Brasil”, disse o Pirula no seu canal de Youtube. É’ um erro, evidentemente, porém seria bom mudar essa ideia não apenas no debate entre colegas, mas como boas matérias. Sejam escritas, curadas ou comentadas por jornalistas científicos. Com pequenos erros ou melhor sem eles, precisamos mudar a percepção não apenas do Pirula mas, e especialmente, do público.

Endereços das referências citadas no texto:

Pirula (#143, 16 abr.2016)

Resposta do Reinaldo Jose Lopez

Resposta do Alimente o cérebro

Resposta do Mauricio Tuffani (Direto da ciência)

Artigo da revista da FAPESP

Curso on line de jornalismo científico da Federação Mundial de Jornalistas Científicos. 

Site Big Think

Artigo Fahy

Blog de RJLopez

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Roxana Tabakment é  bióloga e jornalista. Autora de “A saúde na mídia. Medicina para jornalistas, jornalismo para médicos.” Ed. Summus.