Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Campanha do Supremo desrespeita o cidadão

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) lançaram, em 29 de dezembro de 2008, a campanha ‘Começar de Novo’, que tem como objetivo incentivar a população a acolher ex-presidiários, oferecendo-lhes oportunidade de reinserção social. A campanha consta de anúncios para a imprensa escrita, uma peça para rádio e duas para TV, as três últimas produzidas pela Fundação Padre Anchieta. Ela acompanha os mutirões carcerários, criados pelo Conselho Nacional de Justiça com o objetivo de libertar presos que estão cumprindo pena indevidamente.

Uma das peças, Judas, mostra cenas de uma criança brincando de queimar um boneco, com outras crianças e adultos. O locutor informa: ‘João participou do dia da malhação de Judas. E o pior: ele nem sabe quem foi esse homem.’ Nesse momento, o cenário muda: aparecem grades, um corredor ao fundo e, saindo por ele, um homem com um misto de desamparo e esperança no olhar. O locutor diz: ‘Atitudes sem pensar não levam a nada. Esqueça o preconceito e participe do Projeto Começar de Novo do CNJ. Dê uma segunda chance para quem já pagou pelo que fez.’ Esta última frase é trilha de uma cena idílica, em que o ex-presidiário abraça a esposa, com o rosto banhado em pranto e acompanhada pelo filho, pendurado no abraço do pai.

A outra peça, Pedras, mostra uma mesa, num cenário escuro, com o locutor dizendo: ‘Marcos foi preso por furto. Passou seis anos na prisão.’ Ao ouvir-se a palavra furto, uma mão masculina desce sobre a mesa e agarra a pedra que repousa nela. O locutor alerta: ‘Mas, antes de atirar a primeira pedra, é importante saber que Marcos cumpriu sua pena.’ Nesse instante, a mão hesita e repõe a pedra na mesa. O locutor diz: ‘Marcos pagou sua dívida com a sociedade e tudo o que ele deseja é uma segunda chance.’ Outras mãos, inclusive femininas, colocam pedras ao lado da primeira, materializando a idéia de construção coletiva. O filme é concluído com a mesma cena da outra peça: o personagem deixando a cadeia e se encontrando com a família, enquanto o locutor conclama as pessoas a participarem da campanha, acolhendo os ex-presidiários.

Propaganda enganosa

A peça publicitária é tão enganadora que escolhe como personagem um homem preso por furto. É claro que quem comete esse tipo de crime merece mesmo uma chance. E tem muitas, desde o Código Penal de 1940, que, no artigo 155, estabelece que furto é ‘subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel’. Uma galinha, por exemplo. A pena é de reclusão (de um a quatro anos) e multa. Mas prevê-se também a possibilidade de nem haver cadeia para quem furta. Diz o parágrafo 2º do referido artigo: ‘Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.’ Ladrões de galinha (quando havia galos, noites e quintais nos bairros populares) sempre foram tolerados pela população, tanto que faziam parte do folclore.

Portanto, com base em que lei penal a campanha ‘Começar de Novo’ afirma que o autor de um furto é condenado a seis anos de prisão? O CNJ e o STF precisam se explicar perante o Conar (Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária). Estão fazendo propaganda enganosa. Hoje, sentenças condenatórias até quatro anos, como é o caso do furto, são cumpridas em regime totalmente aberto, mediante penas alternativas, como pagamento de cestas básicas. Nem autores de crimes hediondos (figura jurídica abolida pelo Supremo) costumam permanecer seis anos na cadeia. Todos sabem que os traficantes que queimaram vivo o jornalista Tim Lopes, em junho de 2002, já estão soltos.

Um deles, o traficante Elizeu Felício de Souza, o Zeu, ficou apenas cinco anos na cadeia – um ano a menos do que o Bom Ladrão da propaganda do Supremo. Em setembro de 2007, o traficante que ajudou a queimar Tim Lopes foi beneficiado com saídas temporárias e desapareceu – como era óbvio que iria ocorrer. Mesmo assim, a Justiça não aprendeu a lição. Em 30 de dezembro de 2008, apenas seis anos depois do bárbaro assassinato, os traficantes Claudino dos Santos Coelho, o ‘Xuxa’, e Cláudio Orlando do Nascimento, o ‘Ratinho’, também condenados a 23 anos e 6 meses de prisão pela morte de Tim Lopes, foram beneficiados pela Justiça com o regime semi-aberto. Ou seja, já voltaram a comandar o tráfico; afinal, que inspetor de polícia terá coragem de subir o morro para verificar se estão mesmo trabalhando honestamente como manda a lei? Algum juiz se habilita a fazer pessoalmente essa averiguação?

Penas fictícias

Segundo reportagem do portal da Rede Globo, ‘as investigações revelaram que `Ratinho´ torturou o jornalista e foi o maior incentivador do assassinato’. E esse não era seu primeiro crime. Já havia fugido da cadeia em 1996 e também fora condenado por roubos, receptação e porte ilegal de armas. Seu comparsa, o ‘Xuxa’, também tinha outras condenações por tráfico de drogas. Esses os crimes conhecidos pela Justiça, claro, porque no Estado paralelo dos morros eles devem ser autores de muitos mais, inclusive de cadáveres devolutos, queimados em pneus como Tim Lopes. Juntos, receberam da Justiça penas fictícias que passam de 70 anos de prisão. Cumpriram apenas seis cada um. Graças ao fim da Lei dos Crimes Hediondos, decretado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

O ministro Gilmar Mendes ousaria sustentar que eles ‘pagaram sua dívida com a sociedade’? O Supremo garante que uma escola pode contratá-los como porteiros? Não há nenhum risco de tentarem aliciar alunos para o tráfico de drogas? Se o diretor da escola levantar essa suspeita, ele é um malhador de Judas, que não hesita em atirar a primeira pedra? E o que falar dos estupradores reincidentes soltos pela Justiça? Também eles podem ser contratados como motoristas de crianças? A mãe deve confiar cegamente na campanha ‘Começar de Novo’, transformando seus filhos em cobaias do bom-mocismo penal? Tenham a santa paciência! Se até ministros não são capazes de indagações tão óbvias antes de proferir sentenças, então Darwin estava completamente enganado – o homem não veio dos primatas, está virando um, ao menos nesta parte do planeta.

Em artigo publicado no blog do jornalista Ricardo Noblat, em 8 de janeiro de 2009, o senador e promotor Demóstenes Torres, do DEM de Goiás, que foi procurador-geral de Justiça e secretário de Segurança Pública em seu Estado, observa que, ao longo dos anos, muitos operadores do direito se mostraram tão obcecados no combate à Lei 8.072, de 1990, a chamada Lei dos Crimes Hediondos, que chegava a parecer que o problema dos delitos graves não eram seus autores, mas a lei: ‘Acabando com a Lei dos Crimes Hediondos, acabariam com os crimes hediondos.’ O senador faz uma síntese nada alentadora sobre como opera a Justiça brasileira em relação a criminosos que cometem barbaridades e não simples furtos:

‘Não é fácil capturar os que cometem crimes como o esquartejamento de pessoas. Detidos, é difícil mantê-los presos. Mantidos, é raridade levá-los a julgamentos. Julgados, é pouco freqüente condená-los. Condenados, geralmente recorrem da sentença. Quando apelam, nem sempre a decisão é validada. Aí, após investigar, descobrir, capturar, manter preso, levar ao tribunal, julgar, condenar e conservar a sentença, não se consegue justiça porque o bandido alcança as ruas pelas portas largas da formação pseudo-libertária de alguns operadores do direito.’

O senador escreve ‘alguns’ num evidente eufemismo porque o correto seria escrever ‘quase todos’. Nas faculdades de Direito impera a doutrina do direito penal mínimo e até do absenteísmo penal, que, cada vez mais, encontra guarida nas cortes de Justiça do país, como prova a campanha ‘Começar de Novo’. Quando aprovaram as peças publicitárias da Fundação Padre Anchieta, os ministros do STF e do CNJ deviam ter-se envergonhado desta frase: ‘Marcos pagou sua dívida com a sociedade e tudo o que ele deseja é uma segunda chance.’ Ela é um acinte ao cidadão de bem, numa época em que o Supremo, capitaneado pelo ministro Gilmar Mendes, resolveu rasgar sentenças condenatórias até dos tribunais ao decidir que nenhum criminoso pode ser preso enquanto não se não esgotar o último recurso de sua ação.

Licenciosidade penal

Na prática, significa que fica preso quem quer. Não faltam advogados nas portas das cadeias nem recursos na permissiva legislação brasileira. Em meio a essa licenciosidade penal, dificilmente um preso paga sua dívida com a sociedade, seja ela material ou moral. Chega a ser uma suprema ironia a veiculação dessa propaganda quando se sabe que foi o próprio Supremo que acabou com a Lei dos Crimes Hediondos, dando o direito de progressão de pena até para homicidas seriais e estupradores de crianças. Criminosos do gênero, se condenados a 20 anos de prisão, só precisam cumprir 3 anos e 4 meses em regime fechado. E se trabalharem na prisão, voltam antes disso para as ruas.

Daí a indignação de Maria José Miranda Pereira, promotora titular do júri do Distrito Federal, no artigo ‘A hedionda (in)justiça brasileira’, publicado em 8 de março de 2006 no Correio Braziliense, quando da revogação da lei:

‘Triste decisão a do Supremo Tribunal Federal ao decretar impunidade dos criminosos mais horrendos e perigosos. Somos, culturalmente, uma nação que privilegia os criminosos, necessariamente, em detrimento das pessoas de bem. Para os criminosos há direitos humanos, CNBB, assistência judiciária gratuita, pastoral carcerária, OAB, todo o sistema jurídico, jurisprudência, legislação e tantos outros mais que não caberiam aqui relacionar. Quando um latrocida assassina um pai de família, a Previdência Social ampara seus dependentes com um auxílio reclusão. Mas, para a viúva do assassinado, as criancinhas órfãs, a indiferença, o total desamparo… Ninguém, literalmente ninguém, nenhuma instituição governamental baterá às suas portas sequer com uma palavra de consolo.’

Por isso, insisto: a campanha ‘Começar de Novo’ é um desrespeito ao cidadão de bem. A função da Justiça é punir culpados, e não dar bronca em quem cumpre a lei. O cidadão, quando quer ouvir sermões, procura voluntariamente uma igreja. Dízimo é pago para isso; imposto não. Os ministros das nossas altas cortes precisam ter um pouco mais de respeito com quem lhes paga o salário. O Estado tem o dever de fazer campanhas educativas, não o direito de perpetrar campanhas irresponsáveis. Esta é irresponsável porque deseduca. Ela põe em risco a segurança do cidadão, ao induzi-lo a confiar em ex-presidiário brasileiro, um sujeito mal acostumado pela impunidade, que, mesmo preso, não hesita em cometer crimes dentro da cadeia. Se age assim preso, sob o nariz da autoridade, o que esperar dele depois de solto? Como é que o Supremo e o CNJ se arvoram a tachar como preconceito o que não passa de legítimo medo da população? Isso é ou não acinte?

O preso brasileiro nunca se arrepende do que fez porque o próprio Estado não o deixa se arrepender. O arrependimento é o fundamento da recuperação, que deve começar por dentro, na consciência do preso, não a partir de fora, em programas sociais falaciosos. Todavia, dos parlamentares que criam as leis aos juristas que as aplicam, passando pelas universidades que analisam o crime, tudo é pensado para que o preso jamais tome consciência de seus atos. A culpa nunca é do criminoso, mas do meio social. De algoz, ele passa a ser vítima, qualquer que seja a gravidade de seu crime. A reinserção social se tornou um direito inalienável do criminoso e um dever exclusivo de todos nós, como preconiza a campanha de mídia do Supremo. O preso já não precisa provar para a sociedade a sua recuperação, esforçando-se para tanto – à sociedade é que cabe recuperá-lo unilateralmente.

Por mais que um criminoso mate, por mais que estupre, por mais que torture suas vítimas, a Justiça está sempre pronta a dar-lhe mais uma chance, às custas, evidentemente, de novas mortes, novos estupros, novas torturas, porque é assim que a maioria dos ex-presidiários ‘começa de novo’. Para a Justiça brasileira, o crime não decorre do livre-arbítrio dos indivíduos, mas do Pecado Original sociológico – a desigualdade social. Todos nós somos culpados pelo crime de um só. E que a vítima padeça sozinha a sua dor ou recorra a Deus para começar de novo – numa outra vida.

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Jornalista e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO