Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma pauta de pepinos e abacaxis

Pepinos e abacaxis compõem a grande safra do ano, pelo menos para o presidente interino Michel Temer, ou, se ela retornar ao poder, para a presidente Dilma Rousseff. Na semana de afastamento da presidente, muito espaço foi dedicado, nos maiores jornais, ao inventário da enorme colheita de cucurbitáceas e bromeliáceas. Parte das informações apareceu na cobertura dos planos e promessas da nova administração, especialmente no capítulo das contas públicas. Outra parte foi apresentada aos poucos, nem sempre de forma articulada com o noticiário principal, em matérias sobre esqueletos financeiros e sobre balanços de bancos e outras entidades ligadas direta ou indiretamente ao poder federal.

Henrique Meirelles Wikimedia

Henrique Meirelles / Foto Wikimedia / CC

A primeira entrevista do novo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, foi noticiada em manchetes ou com grandes chamadas nas primeiras páginas. Os títulos destacaram o possível aumento de impostos e a proposta de idade mínima para a aposentadoria. Se a tributação for elevada, ressalvaram os jornais, será por tempo limitado, de acordo com o ministro.

A recriação do imposto do cheque, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), foi mantida como possibilidade pelo ministro. O projeto já estava no Congresso quando foi afastada a presidente Dilma Rousseff. Tanto no material sobre a entrevista quando nas opiniões coletadas pelos jornais, o assunto foi tratado como simples aumento em vez de um aumento da carga tributária, rejeitado por muitos empresários.

Recriar a CPMF, no entanto, é algo muito mais sério que instituir a cobrança de “mais um imposto”. Trata-se de um tributo muito especial, sem similar na maior parte do mundo – ou, talvez, no resto do mundo. Impostos, taxas e contribuições cobrados em economias modernas incidem sobre fatos bem delimitados: produção e circulação, renda, operações financeiras, heranças, doações, propriedade e serviços públicos são exemplos clássicos. Também se cobram contribuições para a formação de fundos de aposentadoria e de ajuda a trabalhadores.

A CPMF é algo muito diferente. Não incide sobre um fato econômico específico, mas sobre a mera movimentação de contas bancárias. Quando um consumidor compra uma geladeira, o preço do produto inclui vários tributos incidentes sobre a produção e circulação. Se a compra for a prazo, haverá um imposto sobre o financiamento. Além de pagar todos esses valores, o comprador ainda será taxado pelo simples ato de pagar, como se a entrega do dinheiro ao comprador fosse uma operação econômica a mais. Em outras palavras, paga-se o imposto do cheque simplesmente porque se paga a conta, Ou, ainda, paga-se um valor pela conta e outro pela realização do pagamento.

Uma pesada herança de problemas

Do ponto de vista de qualquer doutrina tributária moderna, a CPMF é uma aberração. Além disso, já contraria a ordem brasileira simplesmente porque a sua cobrança envolve a incidência de tributo sobre tributo, proibida pela Constituição.

Tratar a CPMF como “um imposto a mais” ou como um simples aumento da carga tributária é deixar de lado, portanto, questões muito mais graves. Além disso, é preciso saber se o governo estará disposto a dividir a receita desse tributo com os Estados, para conseguir apoio à sua recriação. Se essa divisão for negociada em troca de apoio no Congresso, será possível, mesmo, extinguir o imposto do cheque depois de um período limitado, como indicou o ministro da Fazenda? Cuidar de questões desse tipo seria uma forma de diferenciar a cobertura realizada pelos meios impressos. Afinal, os jornais, diz-se há muito tempo, deveriam oferecer aos leitores algo a mais que a informação proporcionada muito mais agilmente pelos meios eletrônicos.

Mas a herança de problemas –para o governo interino, para o suspenso temporariamente ou para qualquer outro – é muito maior que aquela apontada na maior parte dos comentários e discussões. A crise fiscal pode ir muito além das dificuldades orçamentárias até agora previstas para este ano. O entrave nos investimentos pode ser bem mais amplo que aquele associado às limitações do Tesouro e à desconfiança dos empresários. Isso foi mostrado, embora sem muita articulação entre as informações, em matérias publicadas antes e depois do afastamento da presidente.

Esqueletos fiscais da gestão da presidente Dilma Rousseff podem passar de R4 250 bilhões, noticiou o Estado de S. Paulo em 9/5, segunda-feira, com base em levantamento encomendado a especialistas. Mas o número real pode ir bem mais longe, se algumas hipóteses muito feias se confirmarem.

Bancos federais, empresas e outras entidades ligadas ao governo federal também vão mal. No primeiro trimestre o lucro da Caixa foi 46% menor que há um ano. Foi preciso provisionar cerca de R$ 700 milhões para possíveis calotes –valor 22% maior que o do primeiro trimestre de 2015. Um dos focos principais de risco é a Sete Brasil, empresa criada para fornecer sondas à Petrobrás.

Em recuperação judicial, essa companhia também prejudicou o balanço do Banco do Brasil e de grandes bancos privados, além de provocar um buraco nas finanças da Petros, a fundação de seguridade dos funcionários da Petrobrás. Segundo informou o jornal Valor Econômico, as perdas somadas de bancos, fundos de investimento e fundações com a Sete chegaram perto de R$ 14 bilhões.

Na quarta-feira o Estadão noticiou um novo impasse para a Petros: a PwC, grande empresa de auditoria, continuava recusando assinar o balanço, gravemente afetado por maus investimentos. Em 2014 a PwC já havia hesitado em avalizar o balanço da Petrobrás, só publicado meses depois. Petrobrás e Eletrobrás, também com as contas em mau estado, são problemas importantes para o governo central e podem complicar as finanças publicas, se forem necessários aportes do Tesouro.  O balanço da herança de problemas continua incompleto, mas a parte conhecida já aponta desafios importantes para o governo. Os jornais deveriam manter o assunto no alto da pauta econômica e política.

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Rolf Kuntz é colaborador de O Estado de São Paulo e professor titular de Filosofia Política na USP