Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A islamofobia como ferramenta política

Quando, em 2006, as caricaturas blasfemas contra o Islã que foram publicadas por um jornal dinamarquês provocaram 205 mortos, o então secretário-geral da Organização de Cooperação Islâmica, Ekmeleddin Ihsanoglu, visitou o responsável pelas relações exteriores da Europa, Javier Solana.

Na época, a posição oficial da União Europeia era de que não havia islamofobia de forma alguma e que se tratava de um incidente isolado. Desde então, essa vem sendo mais ou menos a mesma posição das instituições europeias. Mas agora assistimos a uma autêntica negação da realidade. Durante três anos, manifestações maciças na Alemanha, principalmente em Dresden (dirigidas por um homem com antecedentes penais), vêm se sucedendo semanalmente sob a bandeira dos Pegida (Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente).

Em 2011, o massacre de 77 pessoas em Oslo por Anders Behring Breivik também foi condenada como a ação de um louco solitário. Atualmente, reconhece-se a existência de mais de 20 ações de islamofobia diária exclusivamente na Alemanha.

O congresso do AfD (Alternativa para Alemania – Alternative für Deutschland) – um partido xenófobo e nacionalista que, em apenas dois anos, conseguiu ter representantes em oito estados da República Federal da Alemanha – foi realizado no dia 30 de abril, recebendo pouco espaço nos meios de comunicação. O congresso se realizou logo depois das eleições de março, que provavelmente consolidaram a AfD como terceira maior força política do país.

A proposta da Afd e a de Hitler

Semanas antes do congresso da AfD, os xenófobos do Partido da Liberdade da Áustria (FPO – Freiheitliche Partei Österreichs) obtiveram o maior número de votos nas eleições presidenciais. Isto depois que os nacionalistas do Partido Nacional Eslovaco (SNS – Slovenská národná strana) conseguissem fazer parte do novo governo eslovaco e que, na Polônia, a direita ultraconservadora da Lei e Justiça (PiS – Prawo i Sprawiedliwość) tivesse acedido ao poder.

Uma cadeia ininterrupta de vitórias da extrema-direita nos últimos – na Suécia, Finlândia, Dinamarca, Holanda, Alemanha, França, Suíça, Áustria, Hungria, Itália e Grécia – foi recebida com uma indiferença generalizada. O congresso da AfD, no entanto, transmitia a ideia de que uma maré xenófoba, nacionalista e populista se está apoderando da Europa.

A linguagem adotada no congresso seria impensável dois anos atrás. Uma das resoluções declarou o Islã incompatível com a Europa, o que, consequentemente, implicaria a expulsão de todos os muçulmanos da Alemanha. O fato de que 87% deles vivem naquele país há mais de 15 anos e que, portanto, são claramente cidadãos alemães, perfeitamente integrados na sociedade e com seus direitos protegidos pela constituição é um obstáculo que seria resolvido com uma reforma constitucional.

Quando um jornalista, na entrevista coletiva, perguntou como se procederia para expulsar subitamente milhões de pessoas do mercado de trabalho, a resposta foi: Hitler fez isso com seis milhões de judeus, que estavam muito mais integrados e tinham mais poder, e não aconteceu nada.

Lembremos, entretanto, que Hitler declarou os judeus incompatíveis com a Europa, privando-os de sua nacionalidade para em seguida deportá-los para campos de concentração (a AfD seria mais caridosa e simplesmente os expulsaria). Mas a proposta da Afd não provoca um déjà vu?

Judeus, muçulmanos e cristãos viviam pacificamente na Espanha

Exatamente na véspera do congresso da AfD, a islamofobia foi o tema central de uma bem-sucedida conferência organizada pelo Centro de Genebra para o Progresso dos Direitos Humanos e pelo Diálogo Global e pela missão do Paquistão na ONU. Notáveis oradores, como Idriss Jazairy, da Tunísia, Uhsanoglu, da Turquia, e Tehmina Janjua, do Paquistão, tomaram a palavra numa conferência em que participavam vários países para debater o tema da religião.

Foram feitos esforços para demonstrar que o Corão não incita à violência e que a organização Estado Islâmico nada mais é que um desvio do autêntico Islã. Na realidade, todos os palestrantes muçulmanos – uns, sufis, outros sunitas – teriam sido considerados apóstatas pelo Estado Islâmico e rapidamente executados. Nenhum representante do wahabismo ou do salafismo (a versão puritana do Islã) esteve presente.

Mas é evidente que a islamofobia nada tem a ver com religião. Na realidade, o Corão e o Evangelho têm muitos pontos em comum. As guerras entre religiões quase nunca foram um tema que envolvesse os cidadãos, pois sempre tiveram origem em reis e sheiks. A guerra dos Trinta Anos, que, matando 20% da população da Europa, causou uma destruição com a qual o Estado Islâmico só pode sonhar, teve início com o imperador Fernando da Boêmia.

Protestante e católicos viviam pacificamente lado a lado. Assim como judeus, muçulmanos e cristãos na Espanha, até que Isabel e Fernando decidiram expulsar os judeus e os muçulmanos. E quando líderes religiosos como Girolamo Savonarola, em Florência (um cristão wahabi), ganhavam seguidores, o papa rapidamente interveio para executá-lo, como em outros casos o fizeram reis e príncipes.

A cobiça e o medo

Já está na hora de reconhecermos que o Islã foi aprisionado por uma crise interna ocidental. Mas o mesmo Islã também passa por uma crise interna, quase desconhecida do resto do mundo. Há várias escolas do Islã [madhāhib], além da principal divisão, entre sunitas e xiitas. Mas as brigas dentro do Islã sempre tiveram origem com reis, imames e aiatolás que utilizaram a religião como ferramenta do poder.

Um dos argumentos contra o Islã é que os cristãos estão abandonando o mundo árabe fugindo do fanatismo muçulmano. No entanto, ninguém para para pensar por que os cristãos viveram ali, durante gerações e gerações, até o dia de hoje… Não está claro quem irá ganhar esta luta interna, mas sem dúvida não será o Estado Islâmico – e tampouco o wahabismo – apesar das centenas de milhões de dólares investidos pela Arábia Saudita para a criação de mesquitas com imames radicais pelo mundo todo. O Islã continuará sendo uma religião com diversas correntes, que aprenderão a coexistir. Mas ninguém sabe quanto tempo levarão para fazê-lo.

Mas voltemos aos dias de hoje. O Ocidente encontra-se numa grave crise interna, uma crise de democracia: é uma crise de natureza econômica e social, assim como de incapacidade do sistema política para enfrentá-la. Temos que reconhecer que até a crise econômica de 2008, que teve origem na bolha imobiliária, nos Estados Unidos, e foi seguida pela bolha da dívida soberana, na Europa, o sistema criado depois da II Guerra mantinha-se de pé.

Muitos historiadores afirmam que a história é movida pela cobiça e pelo medo. Desde a queda do muro de Berlim, em 1989, entramos num período de capitalismo selvagem, onde a avareza é considerada um combustível positivo para o crescimento. Nem 20 anos se haviam passado e a cobiça deu lugar ao ressurgimento da desigualdade social que acompanhou a revolução industrial. Os números são claros e conhecidos: 200 pessoas detêm uma riqueza equivalente à de 2,2 milhões de pessoas. A classe média foi reduzida: segundo0 o Banco Mundial, caiu 3% na Europa e 7% nos Estados Unidos.

A ferramenta política

No Brasil, onde 40 milhões de pessoas passaram a ser de classe média, agora saem milhões às ruas por medo de voltar a cair na pobreza. À cobiça, deve-se acrescentar o medo. É o medo que incentiva a ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos (e, para ser justos, a de Bernie Sanders) e por toda a parte as pessoas receiam perder esse mundo que conheciam e no qual se sentiam comodamente e seguros.

A mensagem da direita radical foi a de um ontem melhor: voltemos a uma Europa pura e ordenada e vamos acabar com os burocratas de Bruxelas, que nos tornam a vida impossível. O nacionalismo e o populismo estão de volta. Vamos acabar com o euro, recuperemos nossa soberania monetária e vamos expulsar todos os estrangeiros, que estão destruindo o mundo que conhecíamos. O sistema político atual está cheio de corrupção e não responde às necessidades dos cidadãos: converteu-se num mecanismo de reprodução de uma casta. Vamos acabar com os partidos tradicionais, que são um instrumento dos interesses financeiros e econômicos.

Nesse contexto, o nacionalismo e o populismo acham muito conveniente juntar a xenofobia, que se tornou islamofobia. Não é uma coincidência que a Universidade de Tel Aviv informe que este ano os incidentes antissemitas são os menores da última década. Não por acaso, a islamofobia teve origem na França, que tem a maior comunidade muçulmana da Europa.

Dois outros fenômenos promoveram a utilização da islamofobia como ferramenta política. O primeiro foi a criação do Estado Islâmico, em 2014, com atentados na Europa que difundiram um medo generalizado. O segundo foi a crise dos refugiados, vista na Europa como uma invasão maciça e sem precedentes. A islamofobia, assim como o nacionalismo e o populismo, ajudou imensamente na guinada à direita do continente.

Uma guerra entre religiões

Mas atribuir toda a responsabilidade à onda de refugiados e ao Estado Islâmico significa uma leitura superficial da situação. Não esqueçamos que o governo anti-europeu da Hungria foi eleito em 2010, quando não existia o Estado Islâmico nem a crise dos refugiados. Antes de 2014, o populismo e o nacionalismo, alimentando-se do medo e da cobiça, foram responsáveis por essa onda crescente.

Em 2015, na Polônia, país em que a União Europeia despejou subvenções como em nenhum outro, o governo caiu nas mãos do partido Lei e Justiça (PiS – Prawo i Sprawiedliwość) sob o lema: isolemo-nos do que ocorre na Europa. Finalmente, o Brexit [referendo sobre a continuidade ou não da Grã-Bretanha na União Europeia] foi proposto pelo Partido pela Independência do Reino Unido (United Kingdom Independence Party – UKIP), uma força política principalmente nacionalista e anti-europeia que pouco tem de islamofóbica – tanto assim que o próximo prefeito de Londres será um muçulmano.

Mas agora estamos todos obcecados com o Islã, que se converteu num fácil boda expiatório graças ao Estado Islâmico e à crise dos refugiados. O fato de que muitos dos refugiados fogem de guerras que foram iniciadas por nós é completamente esquecido. Atualmente, uma avaliação de como construir, em termos de futuro, uma política de imigração, é politicamente impossível. Depois do sucesso inquestionável do Partido da Liberdade da Áustria (FPO – Freiheitliche Partei Österreichs), a coalizão governamental socialista-democrata cristã declarou que não permitirá que a direita monopolize a bandeira da integridade nacional e levantará, inclusive, uma fronteira com a Itália.

No entanto, um fato inegável é que não podemos voltar à Europa de antigamente. No ano 1800, a Europa constituía 24% da população mundial e no final deste século representará apenas 4%. Quando a Inglaterra obrigou a China a aceitar suas exportações de ópio, em 1839, tinha uma população de 19 milhões de pessoas, diante dos 354 milhões da China. Atualmente, o Reino Unido tem uma população branca de 41,5 milhões, enquanto na China vive 1,6 bilhão de pessoas.

A Europa vai perder 50 milhões de habitantes em três décadas. O sistema de aposentadoria desmoronou e não tem como ser substituído. É possível imaginar 50 milhões de imigrantes cristãos? E por que, até poucos anos atrás, ninguém se queixava dos 20 milhões de muçulmanos vivendo na Europa? Sem uma política de imigração, como ignorar que o número total de pessoas que vivem fora do país em que nasceram é hoje de 240 milhões, o que equivaleria ao quinto maior país do mundo? Como selecionar e aceitar os que realmente necessitam?

Estamos nos esquecendo de tudo isto, a ponto de a Europa abandonar a Carta dos Direitos Humanos, a Constituição europeia e sua apregoada identidade para negociar com o pouco recomendável e cada vez mais autocrático presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, e chegar a um acordo que contempla a troca de um milhão de sírios por 6 milhões de euros [R$ 24 milhões] e abre as portas da Europa a 70 milhões de turcos.

O Ocidente está fazendo o jogo do Estado Islâmico, cujo sonho é uma guerra entre religiões: obrigar os muçulmanos que vivem na Europa e nos Estados Unidos a optarem entre se converter em apóstatas, pondo-se ao lado do Ocidente apesar de sua rejeição, ou unir-se à luta pelo renascimento do Islã e à guerra contra os cruzados. Esta é sua estratégia. E a onda crescente de nacionalismo, populismo e, agora, de islamofobia, que paralisou o sistema político tradicional, não representa apenas o declive da democracia. Também abre caminho para a insegurança e para a busca pelo homem forte do passado.

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Roberto Savio é um jornalista ítalo-argentino, co-fundador e ex-diretor geral da Inter Press Service (IPS). Co-fundador do serviço jornalístico não lucrativo Other News