Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Juízes e editores de jornais trocam acusações na Inglaterra

“Nunca fique tão alto, pois a lei está acima de você.” Quando essa expressão foi inventada, em 1733, não havia comunicação eletrônica, muito menos a internet. Na jurisdição dos tribunais ingleses, a lei era suprema. Todos os cidadãos, fossem eles políticos ou jornalistas, estavam sujeitos às normas da lei.

Quase três séculos depois, em meio a uma revolução digital que tornou um disparate as fronteiras geográficas, nem todos os mandados emitidos pelos juízes ingleses – inclusive as que aguardam os trâmites na mais alta corte do país – têm a garantia de que vão vigorar.

Os mandados – ou “leis da mordaça” (determinações legais que restringem informações de serem tornadas públicas), como os jornais preferem chamá-los – ainda impedem a publicação no foro da jurisdição. Mas não podem impedir que segredos sejam divulgados em outros lugares e não podem impedir que as pessoas os acessem de dentro da jurisdição.

A privacidade, como observaram há tanto tempo tantos pioneiros da era digital, como Mark Zuckerberg, morreu.

Esses são os bastidores da guerra que se trava entre juízes ingleses e alguns editores de jornais nacionais que se opõem à decisão da Suprema Corte que confirma o mandado judicial que impede a identificação de uma celebridade envolvida num encontro sexual tripartite.

As propensões sexuais da celebridade

A briga legal do Sun on Sunday para publicar a matéria é apoiada por vários concorrentes seus, como o Daily Mail, o Daily Mirror, o Daily Telegraph e o Times. Todos eles publicaram artigos na sexta-feira (20/05) criticando os juízes da Suprema Corte – e os políticos – por sua decisão.

De maneiras distintas, alguns jornais ousaram ridicularizar a lei fornecendo claras insinuações sobre a identidade da celebridade.

Em seu centro, como mostrou Max Mosley em seu artigo no Guardian, esta batalha é sobre interpretações do que é interesse público. Para os jornais populares, há um interesse público na vida sexual das celebridades. Para os juízes, e para uma minoria de editores, esses assuntos podem ser interessantes para o público, mas não são de um verdadeiro interesse público (ou benefício público).

Nessa interpretação distinta também um debate central sobre o direito da sociedade à liberdade de imprensa por oposição ao direito individual à vida privada.

E o que têm a dizer os editores que apoiam o Sun on Sunday? O Daily Telegraph mostrou seu interesse ao optar por uma expansão da matéria. Seu artigo principal começou por dizer que o jornal não tinha interesse nas propensões sexuais da celebridade conhecida nos documentos do tribunal como PJS. Porém, disse o Telegraph, seu desejo de impedir a publicação de uma matéria sobre ele “levantou questões do mais claro interesse público, sobre a elaboração e a aplicação das leis, sobre as responsabilidades de juízes e políticos e sobre a liberdade de expressão de que dependem todas as liberdades britânicas”.

“Rebentar o mandado judicial”

No entanto, considerando que a identidade já foi vazada via websites nos Estados Unidos e jornais na Escócia, a proposta de manter o anonimato “foi espetacularmente contraproducente” e “até os juízes reconhecem que sua decisão pode ser um convite ao ridículo”. Para o Daily Telegraph, a culpa é da decisão “lamentavelmente imprudente” do governo de Tony Blair, em 1998, de aprovar uma lei de direitos humanos de forma a “proteger legalmente, como uma relíquia, a Convenção Europeia de Direitos Humanos”. Por conseguinte, o jornal reivindica uma emenda àquela lei no sentido de criar um padrão de qualidade superior para mandados relacionados à privacidade e critica os juízes por usarem inadequadamente “uma lei ruim para usurpar um direito do parlamento e assumir o poder para amordaçar a mídia”.

Embora pensando que essas batalhas sobre privacidade sejam de mau gosto, o Times acredita que a decisão da suprema corte sobre o “agora famoso” mandado judicial, além da lei na qual se apoiou, seja “preocupante numa sociedade livre”. E oferece três motivos: o primeiro, o precedente. “As revelações horripilantes de Jimmy Savile não deveriam deixar ninguém duvidar que a fama é uma forma de poder que pode ser explorada como qualquer outra forma de poder”. O segundo, o sentido prático. A privacidade não pode ser protegida na era da internet. As identidades das pessoas envolvidas no caso “foram amplamente compartilhadas nas redes sociais, mesmo na Inglaterra e no País de Gales. E terceiro, “o principal inconveniente”: o caso “já não se limita à privacidade… mas à liberdade e ao controle. Ele afeta a liberdade de todo mundo. Este mandado judicial põe qualquer cidadãos comum que mande mensagens pelo Twitter correndo o risco de ser processado; um abuso extraordinário numa democracia”.

O Daily Mail, cuja suíte do caso tinha como título “Os quatro Canutos da justiça britânica” [Four Canutes of British justice], afirmava que a decisão da suprema corte fora “surpreendente” e “profundamente deprimente”. Os juízes, disse o jornal, “penduraram sua autoridade atrás da proibição ridícula e insustentável… A lei é uma besteira para defender um mandado judicial que já provou ser tão permeável que se tornou virtualmente sem sentido”. E continuou: “Tamanha obstinação judicial cega está ameaçando lançar o descrédito sobre as normas da lei.” Elogiou um juiz, Lorde Toulson, por ter “a coragem e o realismo de divergir do parecer”, concluindo: “Quanto mais cedo seus colegas comecem a concordar com ele, tanto mais cedo irão parar de fazer uma paródia da lei.”

Num comentário curto, o Daily Mirror afirmou que “há muito pouca solidariedade popular para com celebridades que procuram usar os tribunais para encobrir atividades consideradas constrangedoras”. Disse o seguinte: “Estamos assistindo à disseminação do incentivo a rebentar o mandado judicial’ – em especial nas redes sociais –, quando o público, sobretudo de fora desta jurisdição, propositalmente viola o mandado legal.”

As decisões dos juízes e dos editores

De maneira nada surpreendente, o Sun soltou os cachorros. Sua primeira página, “O dia em que a liberdade de expressão se afogou numa piscina de azeite”, fez-se acompanhar por uma suíte, “A autoridade dos trapaceiros” e pelo artigo principal, “Esnobes da corte reinam supremos”. Chamou a decisão de “ilógica e idiota” e chamou os juízes “velhos patetas fora da realidade com um previsível esnobismo depreciativo em relação aos jornais populares e a nossos milhões de leitores”.

Eximiu Lorde Toulson por “ter usado a cabeça” ao dizer que aquela corte “deve viver no mundo como ele é, e não como gostaria que fosse”. Ele foi rechaçado, disse o Sun, “por quatro colegas analógicos, perplexos com a era digital”. E ainda afirmou: “Os juízes deveriam decidir de acordo com a lei, e não impor seus preconceitos arrogantes sobre matérias de tabloides que consideram “eróticas”. Não cabe a eles decidir o que é de interesse público ou se uma coisa difere daquilo que interessa ao público.”

Na realidade, trata-se do contrário. A lei exige, sim, que os juízes tomem decisões baseadas em sua interpretação do interesse público. Os editores podem querer que seja de outra forma, mas – pelo menos, por enquanto – a realidade é essa.

O que me leva de volta à opinião que Max Mosley tem há muito tempo, de que acredita que os juízes tomam decisões mais sábias sobre direitos à privacidade que os editores. E isso, naturalmente, nos leva diretamente à contradição principal: qualquer restrição ao que um jornal pode ou não publicar deve significar uma negação da liberdade de imprensa.

Essa é uma verdade inevitável que nós, que acreditamos que seja de mau gosto expor a vida sexual privada das pessoas ao exame público e que achamos que o argumento do “direito a saber” dos editores é completamente falso, temos que aceitar.

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Roy Greenslade é professor de Jornalismo e tem um blog no Guardian