Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A cultura do estupro

Após ter virado notícia o estupro coletivo de uma menina de 16 anos, o tema “cultura do estupro” tomou conta das mídias sociais. Escancarada no nosso dia-a-dia, nos nossos costumes, nos jornais, nas propagandas e na indústria cultural. De tão naturalizada que está passa despercebida para grande parcela da população e formadores de opinião.

Baseia-se, essencialmente, na transformação do que é humano em objeto. Objeto é aquilo que possui razão de uso, de posse temporária ou propriedade de outrem. Este é o conceito básico de objetificação da mulher e que orienta a cultura do estupro. A mulher tem seu corpo utilizado das mais diversas formas, inclusive na imposição do ato sexual. Nós as desumanizamos para tê-las e usá-las. Fazemos isso há tanto tempo que é comum ouvirmos discursos de que sempre foi assim, agarrando-se a isso grande parte do movimento conservador (mas não só). Perdemos a noção, inclusive, do tempo. Um costume nosso.

Desumanizamos ao tirar-lhes direitos e/ou oportunidades. Há quem use esses artifícios – separação de direitos e deveres entre homens e mulheres – para angariar votos para projetos políticos de permanente segregação entre os sexos. Ganham a alcunha de “mito”, por mais que existam de verdade (infelizmente).

Isso não tem apenas a ver com educação. A escola não deve ser considerada o único, nem o mais importante, local em que se transmite os equipamentos intelectuais e teóricos da sociedade, mas não se pode negar que possui papel privilegiado neste quesito, favorecendo ou freando sua divulgação nos mais diferentes grupos sociais. As diferentes mídias, da televisão ao cinema, dos quadrinhos às revistas semanais, também perpetuam a ideia de que mulher é objeto e é admirada como tal. Os veículos jornalísticos, de maneira geral, comumente atuam como reforçadores dessa objetificação, mesmo que de forma dissimulada.

O corpo hipersexualizado

Impossível não se lembrar da época em que parcela importante das receitas dos jornais eram provenientes dos Classificados, área do jornal dedicada à compra, venda e troca. Desde muito tempo, normalmente sob o título de “Oportunidades” ou “Profissionais Liberais”, parte dos classificados abrange o corpo da mulher como algo a ser vendido, usado e explorado temporariamente através do simples pagamento monetário.

Como também não perceber que as usamos para vender os mais variados produtos, de carro a sabão em pó, de planos de academia as mais variadas marcas de cervejas, sempre com enormes propagandas estampadas em nossos jornais. Ou ignorar o fato de que grande parcela da mídia jornalista, esportiva ou não, se utilizam de imagens de mulheres seminuas em suas capas misturadas às demais notícias para chamar a atenção do público consumidor. O corpo hipersexualizado das mulheres vem, há muito tempo, nos ensinando a consumir.

Impossível ignorar também as inúmeras manchetes e reportagens que relativizam a violência sexual contra mulheres, como o site diariodocentrodomundo (DCM), logo após a comoção social entorno do estupro coletivo, para chamar atenção do público leitor com a sua “Como a garota do Rio, Dilma também foi vítima de estupro coletivo”, utilizando-se de um acontecimento cruel que em nada pode ser comparado, a menos para aqueles que não fazem ideia do drama físico, social e psicológico causado às vítimas de estupro. Ou ainda jornais e sites, notadamente regionais e de pequena circulação e acesso, que expõem a vida particular da vítima anterior ao estupro, como forma de relativizar a violência sexual por ela sofrida, reforçando a separação em que de um lado estão as mães, irmãs, mulheres “casáveis” – a bela, recatada e do lar – (passível de desejo, admiração ou respeito) e consideradas interditas de sofrerem tal violência, portanto classificadas como vítimas de crime hediondo, em contraposição às demais mulheres consideradas objeto (passível de uso) e que, provavelmente, fizeram por merecer.

As mulheres não podem ser objeto/propriedade e cidadãs plenas de direitos ao mesmo tempo. Será que veremos o dia em que a sociedade como um todo deixará de consumir produtos fruto de trabalho escravo de crianças e adultos, homens e mulheres, assim como deixaremos um dia de comprar ou acompanhar jornais e revistas que insistem em colocar em suas páginas, dissimuladas ou não em suas propagandas, manchetes e classificados, a cultura do estupro?

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Alexandre Marini é sociólogo e professor