Pelo menos que eu saiba, felizmente não vivo nem perto da cultura do estupro, mas vivo, sim, dentro da cultura do estupor. Vivemos todos.
Não ouço piadas machistas. Não consumo nem ouço músicas apelativas ou com conteúdo violento – nem sobre a mulher nem sobre ninguém. Não dou legitimidade nem por hipótese a preconceitos, seja de que espécie forem. Entretanto, porque não viva em contato direto com ela, a tal cultura do estupro, não é por isso que vou dizer que não exista. E isso porque esse é o mesmo comportamento negacionista de quem vive na cultura do estupor e não percebe.
A cultura do estupor é quase o mesmo que a cultura da indiferença, com a diferença de que ela implica uma espécie de assombro perpétuo sempre sem ação, estéril, de quem não age, de quem não toma qualquer atitude, de quem tem toneladas de informação, mas ação que é bom, quase nenhuma. Na cultura da indiferença, por outro lado, há uma escolha prévia, o que a torna ainda mais comprometedora, pelo menos no que diz respeito às mentalidades. Dessa eu não vivo dentro, mas fatalmente vivo perto porque em alguma medida todo mundo vive. Uns mais, outros menos.
Não estou querendo dizer que a cultura do estupor é mais grave que a do estupro porque não é, mas elas têm entre si um alto grau de parentesco, se é que uma não está contida na outra. Só que, enquanto uma vítima de estupro se vê forçada a reinventar a própria vida, na cultura do estupor às vítimas resta apenas trocar a fonte, o canal ou o link dos terrores diários. Sair e voltar a entrar no Facebook, por exemplo.
Uma excrescência do convívio social
Mesmo dentro disso que chamo de cultura do estupor, parece haver graus variados de acometimento. Pode ir do embasbacamento à inconsciência. Da surpresa à alienação. Da imobilidade à dessensibilização completa. Da empatia seletiva à misantropia, essa que parece ser sua forma mais extremada.
Confesso que tive de ler bastante sobre tudo o que se divulgou sobre a cultura do estupro após o trágico evento do Rio de Janeiro para entender como é que isso me afetava e a resposta que encontrei é que, como a maioria dos homens, pelo menos os que não tiveram a sombra do estupro rondando sua vida, é um assunto quase extraterreno. É como uma hipótese sobre a qual não se quer nem pensar. Mas isso é assim porque não estamos no lugar de ser sem mais nem menos uma vítima ocasional da situação e por isso minimizamos o horror alheio, submersos na cultura do estupor.
De certa maneira, eu penso que o bombardeio dos últimos dias, em sua extensa maioria feito por mulheres, foi providencial e, embora acredite na necessidade de uma política penal eficiente contra os criminosos, é preciso vencer o estupor social. Denunciar e não só denunciar, não permitir a impunidade, desnormalizar a violência de gênero. Não se trata apenas de empatia, mas de um compromisso do laço humano em não se fechar em si mesmo e na sua perspectiva individual. Nesse ponto de vista, a questão de violência de gênero é até primária e simples demais, mas é justamente (e não coincidentemente) dela, da integridade do corpo feminino, que viemos todos.
Lembro ainda que, assim como o estupro, violências sexuais acontecem diariamente – quase sempre na invisibilidade – contra pessoas com deficiência (especialmente a intelectual), crianças de qualquer sexo, gays, travestis, transgêneros, idosos e quaisquer pessoas em situação de vulnerabilidade. A violência é uma excrescência do convívio social e deve ser punida e combatida em sua origem, sob pena de sua permanente reprodução.
A lição das mulheres
A questão é bem mais complexa que um meme. Embora se assuma rápida e repetidamente a atribuição de culpabilização social e se deseje fazer crer que esta seria uma característica encruada na sociedade brasileira, eu discordo dessa ideia. Penso que não existe este ente coletivo: a sociedade brasileira. Existem sociedades brasileiras. No plural. E a exacerbação da violência costuma acontecer em territórios conflagrados, não necessariamente os periféricos.
Discordo que a violência seja um traço cultural da sociedade brasileira, população acostumada a enfrentar violências e privações seculares sem maiores registros de levantes e revoltas populares. A violência extremada implica um complexo dinâmico envolvendo tanto a expressão do ódio quanto o escasso cerceamento moral. Não por acaso, costuma ocorrer contra segmentos vulneráveis, como os indígenas e moradores de rua – eventualmente incinerados em espaços públicos –, contra prostitutas e contra pessoas sem qualquer defesa.
Não se trata de invocar aqui mais uma vez a platitude da necessidade de investimento em educação, mas na de uma educação humanizante, cujos resultados não visem meramente ao sucesso econômico e social, mas ao aprendizado do humano e suas pulsões e de uma ética capaz de garantir, ou pelo menos promover, a integridade de todos e o respeito ao sujeito e às individualidades.
Ainda assim, apenas o investimento em educação pública poderia de fato reverter a banalização da violência e substituí-la por acesso a outros e mais complexos elementos culturais. É bem pouco simples porque a cultura da violência parece também ser uma mimese de uma cultura de poder. Ou seja, reproduz-se com argumentos precários e de dominação violenta aquilo que em outras esferas econômicas e culturais está dito e representado de outra maneira, mas de uma forma essencialmente idêntica, que é a preponderância do poder econômico e sua simbologia.
Seja como for, é preciso seguir o exemplo das mulheres que, diante do horror de uma situação inadmissível, como a que se repetiu recentemente no Rio de Janeiro, romperam justamente a acachapante cultura do estupor, como irrompendo de dentro de uma bolha estourada. É absolutamente triste que precisemos de casos tão extremados para fazê-lo, mas esse é justamente o indicativo do alto grau de naturalização cultural da violência social em que vivemos todos.
A cultura do estupor funciona como a película dessa bolha, abrigando em seu interior diversos tipos de violência, entre os quais o de gênero e a própria cultura do estupro. Se regularmente é possível viver em seu interior longe de uma ou de outra, mais ou menos repugnante, é de perguntar como podemos nos abrigar dentro disso e com estes mesmos valores. E como e por que razões, uma vez saídos dali, desejaríamos voltar. A multiplicação de denúncias e o expurgo coletivo em função do crime de estupro coletivo, desta vez no RJ, que não deveria ter existido nem sequer ter nenhuma função social, eu quero crer que pelo menos serviu para nos mostrar o quão hediondo é ter de viver sob a cultura do estupor e o quanto nos habituamos e dessensibilizamos em suas muitas derivações violentas.
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Lucio Carvalho é autor de Inclusão em Pauta (Ed. do Autor/KDP), A Aposta (Ed. Movimento), do blog Em Meia Palavra (http://emmeiapalavra.com) e co-editor da Inclusive – Inclusão e Cidadania (http://www.inclusive.org.br)