Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As divergências em torno da convergência

O tom do secretário-executivo do Ministério das Comunicações, Paulo Lustosa, ao reiterar que não haverá outro adiamento na entrega dos trabalhos que deverão subsidiar a implantação de um sistema próprio de TV digital, deve ser entendido no que ele tem de político, muito mais do que de técnico.

Lustosa falou na quinta-feira (19/5), ao participar da abertura do fórum sobre política de telecomunicações realizado pela Secretaria de Telecomunicações do Ministério das Comunicações (Minicom). Pela primeira vez o governo disse em público que a idéia da criação de um sistema originalmente brasileiro pode ser abandonada.

O secretário não viu isso como uma possibilidade remota – bem pelo contrário: ‘Eu avisei na última reunião que se a TV digital não for entregue até 10 de dezembro, acabou o modelo brasileiro’.

Um dia antes, falando ao 23º Congresso Brasileiro de Radiodifusão, promovido em Brasília pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Lustosa criticou o excesso de grupos de trabalho criados no governo. ‘O único animal que um grupo de trabalho conseguiu fazer foi um dromedário, todo desengonçado, que não consegue carregar ninguém.’ O registro foi feito pela repórter Cristiana Nepomuceno, do Telecom Online (19/5).

Faltando seis meses para o prazo final de entrega desses trabalhos, e oito meses para a definição do modelo de referência da televisão digital no país, há uma densa névoa envolvendo tanto o conhecimento do assunto quanto os interesses nele envolvidos. Protegidas por essa névoa, flechas voam em todas as direções confundido movimentos de ataque, defesa, combate organizado e fogo amigo.

Panteras e elefantes

Durante o congresso da Abert, encerrado na sexta-feira (20/5), um dos advogados da Globo, José Francisco de Araújo Lima, tentou encostar na parede o secretário-geral do Sistema Brasileiro de TV Digital, Augusto Gadelha.

José Francisco disse não entender como se daria a interatividade que o governo vê como premissa para o sistema. Deveria ter sido informado que a capacidade interativa é justamente o que há de mais notável na implantação das plataformas digitais – muito mais que a melhoria da definição da imagem, por exemplo. E que se alguém a essa altura já soubesse como domá-la, possivelmente não estaria trabalhando no governo, mas teria se transformado num forte rival de Bill Gates na indústria de tecnologia de ponta.

Contudo, não era sobre isso que o advogado da Globo estava falando. O recado passado à platéia é que o governo não deveria estar discutindo o fato de que o ideal de um modelo de TV digital apóia-se hegemonicamente no HDTV, e não num cenário de convergência. Mas essa discussão está acontecendo. E o que se debate é o balanço possível entre a manutenção dos paradigmas atuais no modelo da radiodifusão e a extensão do seu avanço.

Como Lustosa, José Francisco estava preocupado com a criação de dromedários. Deixou de considerar a hipótese de que a discussão, ainda que por vezes lenta e rançosa, possa também favorecer o surgimento de animais com a agilidade de panteras e a força de elefantes.

Samba convergente

A idéia de convergência está por trás de todas as discussões, por cima e por baixo do pano, que se travam neste momento no âmbito da radiodifusão no Brasil, seja digital ou não. Ela se irradia para dois debates diferentes, em arenas diferentes, com interlocuções diferentes – mas que em última análise chegam ao mesmo lugar.

Por um lado está a luta dos radiodifusores para evitar que os serviços de telecomunicações possam veicular também conteúdo audiovisual. As emissoras de televisão sabem que essa é uma guerra perdida, mas a estratégia nesse momento consiste em retardar o processo, controlar os danos e, se tudo der certo, lá na frente tirar proveito da nova ordem.

Um bom esforço de propaganda nesse sentido foi feito na quarta-feira (18/5), logo no início do congresso da Abert. A associação preparou um vídeo reiterando a necessidade de que as empresas de telecomunicações fiquem restritas à oferta de infra-estrutura; e chamando atenção para o perigo que a distribuição de conteúdo por essas empresas representa para as emissoras de rádio e TV (e para o usuário, que recebe informações de fontes nem sempre confiáveis e muito menos sujeitas a qualquer tipo de controle).

É mais do que sabido que, à luz desses e de muitos outros argumentos, sobretudo os de cunho jurídico, os radiodifusores estão cobertos de razão. Mas é igualmente claro que a essa altura fica meio difícil informar a 70 milhões de usuários de telefonia móvel que de agora em diante seus aparelhos têm que voltar ao tempo em que apenas recebiam e faziam ligações telefônicas.

É perfeitamente sabido ainda que antes mesmo da entrada em operação das plataformas digitais de televisão terrestre no Brasil, a telefonia móvel será provavelmente a principal fonte de informação primária do cidadão brasileiro. E que, enquanto este texto está sendo produzido, uma nova forma de distribuição de conteúdo por serviços estranhos à radiodifusão estará sendo criada.

A questão, portanto, já não consiste em barrar os serviços de telecomunicação num baile em que eles já entraram e estão ganhando mais espaço. Trata-se apenas de entender como aproveitar a música para criar novas danças em conjunto.

Regras equânimes

A Grã-Bretanha resolveu esse problema criando uma única agência para regular ao mesmo tempo comunicações e telecomunicações, o Office of Communications (Ofcom). O modelo, que foi implantado há menos de dois anos, está funcionando em velocidade de cruzeiro e não tem sido alvo de reclamações. Seus sete únicos princípios regulatórios são um extraordinário exemplo de clareza, concisão e autonomia – mesmo num ambiente dominado por Rupert Murdoch. O leitor pode examiná-los aqui .

As seis áreas de deveres específicos do Ofcom consistem em assegurar a otimização da utilização do espectro eletromagnético; assegurar uma ampla gama de serviços de comunicação, inclusive serviços de alta velocidade; assegurar igualmente uma ampla gama de serviços de radio e televisão de alta qualidade; manter a pluralidade desses serviços; proteger as audiências contra material ofensivo; e protegê-las contra injustiças e invasão de privacidade.

Só isso, e nada mais.

Que um dia o Brasil se obrigará a implantar uma instância como o Ofcom, poucos podem duvidar, embora estejamos longe disso. Difícil é saber quem sai ganhando com o retardamento deste processo.

É significativo que o vice-presidente de relações institucionais da Globo, Evandro Guimarães, raposa imbatível na discussão dessas questões, tenha admitido, talvez pela primeira vez em público, a tendência de irreversibilidade do processo de convergência: ‘Será que há algo a ser feito ou devemos ver isso como a lei da gravidade?’, perguntou.

Uma resposta veio do próprio secretário Lustosa: ‘Os interesses dos senhores não prevalecerão integralmente e outras opiniões serão contempladas’. Lustosa apelou para que os que costumam dizer ‘sejam também criativos em lugar de esperar apenas soluções regulatórias’. Pouco antes, o ministro Luiz Gushiken, representando o presidente Lula, sustentava que tempos de inovações tecnológicas devem servir para o estabelecimento de ‘novos paradigmas’.

Em outros contextos, os radiodifusores têm expressado com veemência sua rejeição a essas ‘soluções regulatórias.’ Quando entram em cena as teles, aí os papéis se invertem rapidamente.

Três dias depois da expressão desse dilema, num ato que guarda uma forte carga emblemática, a Globo conseguiu da 43a Vara Cível do Rio de Janeiro uma liminar para impedir que o portal UOL continuasse exibindo os vídeos dos gols do Campeonato Brasileiro de futebol, do qual a rede detém os direitos de transmissão.

Não se deve esquecer que existe no Congresso uma proposta de emenda constitucional apresentada pelo senador Maguito Vilela (PMDB/GO), grande aliado dos radiodifusores, que estende aos demais meios de comunicação e telecomunicações – internet inclusive – as mesmas regras existentes para a televisão.

Conteúdo e cidadania

Uma peculiaridade da Globo sobre os demais radiodifusores, em especial as emissoras de televisão, é ter adotado o discurso da construção da cidadania através da produção do conteúdo brasileiro.

Esta é uma estratégia que começou no ano passado, resultou em campanhas institucionais de valorização da cultura brasileira e até num documento tirado de um encontro promovido para esse fim, o ‘Conteúdo Brasil – Seminário de Valorização da Produção Cultural Brasileira’, realizado pela Globo no início de 2004, em parceria com a PUC-SP.

Na luta contra as teles, a maior rede de televisão do país elege a invasão do conteúdo estrangeiro como a grande inimiga, não apenas da Globo, mas de toda a sociedade brasileira – e vai cavando aliados até mesmo em ações como a de absorção de pequenos documentários realizados por produtores independentes, exibidos Fantástico.

Se o inimigo é a invasão do conteúdo estrangeiro, a Globo, com mais de 80% de nacionalização e quase 3 mil horas de teledramaturgia brasileira por ano, é a natural guardiã da nacionalidade. Não por outra razão, no seminário da Abert, Evandro Guimarães conclamou ‘que a prioridade do que fizermos daqui para frente seja a soberania nacional e o respeito aos valores regionais’.

Interesse coletivo

No outro front da batalha da convergência está o cenário de negócios a ser desenhado pelo Sistema Brasileiro de Televisão Digital – SBTVD (decreto nº 4.901, de 26/11/2003) para implantação depois de fevereiro de 2006. A hegemonia de um cenário de convergência significa ali um poder maior dado às redes não-comerciais de televisão, além da entrada de novos players no mercado.

Os que preconizam o favorecimento a um cenário voltado hegemonicamente para as transmissões em alta definição sustentam que a adoção de qualquer avanço na qualidade da imagem de televisão cria imediatamente um novo paradigma e fica impossível o retorno a uma situação anterior. Nisso estão cobertos de razão. Seria difícil imaginar algum usuário cogitando em retornar para o estágio da TV em preto e branco, por exemplo.

Mas não só na imagem de TV isso se aplica. Não há registro de situações em que novos paradigmas decorrentes do avanço tecnológico enfrentem situações de reversão. Há quem sinta alguma nostalgia pelos chiados dos long-plays ou das bolachas que tocavam em 78 rpm, mas isso não põe em risco a indústria digital de CDs.

Portanto, não há como deixar de ter certeza, para um futuro próximo, de um ambiente de TV em alta definição que transforme em história a qualidade de imagem – e som – a que o usuário está hoje acostumado. É também inevitável que este seja o primeiro passo para a consolidação de cenários que avancem sobre a maneira em que a televisão se organiza hoje no Brasil.

Se o governo tiver ele próprio o bom senso que espera dos radiodifusores, isso vai se aplicar também ao modelo de televisão pública vigente. O espectador brasileiro não merece a televisão pública que tem, sobretudo num ambiente em que terá possibilidade de conviver com mais e melhores imagens, mecanismos mais eficientes para acessá-las e possibilidades de interagir com elas.

A essa altura, um duelo entre governo e radiodifusores só aponta para perdedores, nenhum vencedor.

Da mesma forma como já é claro que as teles continuarão distribuindo mais e melhores conteúdos audiovisuais, é inevitável também que um ambiente de televisão digital caminhará no sentido da interação entre as mídias. Num caso e no outro, como sustenta a Globo, é imperioso que se ampare o conteúdo brasileiro. E mais: que se crie condições para o desenvolvimento de modelos específicos de conteúdo, buscando recursos para isso (como se buscou para o desenvolvimento de um modelo tecnológico cujo caminho é agora incerto), e não se tape o sol com a peneira de retóricas evasivas, como perguntar ‘como se dará a interatividade?’.

O maior consenso, neste momento, é que o tempo está se esgotando. Já que se chegou a ele, até por falta de outras alternativas, pode-se pensar na hipótese de o governo, sociedade e radiodifusores (estes, mais distintos entre si do que a própria sociedade) mergulharem no interesse coletivo e construírem um ambiente não só de TV digital, mas de comunicação social – que melhore muito o que existe e, ao contrário do que existe agora, seja capaz de beneficiar a todos.