Erguida sobre a maior província mineral do planeta – a Serra de Carajás -, a cidade de Parauapebas, no sudeste do Pará, está ligada umbilicalmente à Vale desde que se emancipou da vizinha Marabá em 1989. Há três décadas, Parauapebas não passava de um acanhado vilarejo banhado pelo rio de mesmo nome. Mas graças à exploração do minério de ferro pela Vale, que nos últimos anos tem extraído de lá mais de 100 milhões de toneladas por ano da commodity, Parauapebas continua uma potência econômica mesmo em tempos de recessão.
Com 190 mil habitantes, a cidade, que exporta um terço do minério produzido no país, rivaliza com a capital paraense Belém em termos de geração de riqueza. Segundo os últimos dados disponíveis do IBGE, enquanto o PIB de Belém, o maior do estado, alcançou R$ 25,7 bilhões em 2013, o de Parauapebas, na segunda colocação, totalizou R$ 20,3 bilhões. De acordo com a Vale, naquele ano Parauapebas exportou o equivalente a US$ 10 bilhões em minério e recebeu R$ 556,5 milhões em tributos da mineração.
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Mas a queda da cotação internacional do minério, que chegou a atingir 180 dólares por tonelada em 2011, e hoje se encontra em torno dos 50 dólares, castiga a cidade, que amarga a perda de impostos e, como no restante do país, vê o desemprego crescer. Parauapebas também sofre com mazelas sociais típicas de cidades amazônicas, como o alto déficit em saneamento e habitação e os altos índices de criminalidade.
Como a própria Vale reconhece num texto institucional de 2013, sua atividade gera um grande impacto socioambiental, especialmente em municípios do bioma amazônico: “ao mesmo tempo que aumenta exponencialmente as ofertas de trabalho e o nível de renda das pessoas, induz a ocorrência de fluxos migratórios que podem levar problemas para uma área despreparada.” O texto foi produzido pela mineradora para promover seu novo megaprojeto, o S11D, que a partir do segundo semestre irá explorar o ferro em Canaã dos Carajás, município situado a 70 quilômetros ao sul de Parauapebas.
Apesar da crise, a imprensa local é numericamente expressiva, com oito jornais nativos no meio impresso, entre os quais os líderes Carajás – O Jornal e o Jornal de Parauapebas (sem versão on-line). A maioria dos veículos circula semanalmente ou duas vezes por semana, com uma tiragem conjunta estimada em 16 mil exemplares. Parauapebas também exibe uma mídia digital crescente, em que se destaca o site Pebinha de Açúcar.
Impacto e impostos
Era de se esperar que a imprensa de Parauapebas privilegiasse a cobertura de temas de interesse público locais, como o futuro impacto econômico do S11D sobre a cidade e a arrecadação da CFEM, o chamado “royalty do minério.” Mas não é o que revela a leitura de Carajás – O Jornal e do Pebinha de Açúcar, ambos veículos líderes e representativos da mídia local.
Criada em outubro de 2015 pela Câmara Municipal, a chamada CPI da Vale tem sido coberta de forma esparsa e burocrática. A Câmara investiga se a Vale teria utilizado indevidamente empresas subsidiárias para vender o minério de ferro a cotações inferiores às do mercado internacional. Se confirmada, a manobra contábil teria permitido à mineradora reduzir a base de cálculo da CFEM paga ao município.
Mas ao invés de apostar numa cobertura própria da CPI, os veículos analisados parecem privilegiar apenas um lado da história, baseando-se em releases, os textos enviados pelas assessorias de imprensa aos jornalistas para defender a posição de quem os patrocina.
Foi o esse o tom, por exemplo, da recente matéria Comissão pede prorrogação de prazo para CPI investigar Vale, publicada pelo Carajás – O Jornal em 18 de maio. Focada nos aspectos regimentais da CPI, a matéria, que parece adotar o ponto de vista da Câmara, não se aprofunda na acusação contra a mineradora, mas lista o nome dos sete vereadores que integram a CPI e menciona a complexidade da investigação.
O texto se limita a informar que “os parlamentares afirmaram que a dívida da mineradora com o município de Parauapebas pode chegar a R$ 3 bilhões. Deste total, cerca de R$ 940 milhões já foram cobrados pelo DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), por meio de multas aplicadas à Vale.” Segundo a CPI, tais valores dizem respeito ao período entre janeiro de 2013 e dezembro de 2015.
O Pebinha de Açúcar também faz uma cobertura acanhada da CPI. Ao reportar sobre a prorrogação da comissão numa matéria publicada no dia 18 de maio, o site também foca em dados regimentais, e assim como o Carajás – o Jornal, não se aprofunda nas acusações contra a Vale e tampouco reporta o outro lado da história, buscando a palavra da empresa.
Aliás, o Pebinha cita um trecho idêntico ao da matéria do Carajás – Jornal: “o pedido de prorrogação foi baseado no artigo 89 do Regimento Interno da Casa de Leis que diz que ‘não concluir seus trabalhos no prazo que lhe convier ser estipulado, a Comissão será extinta, salvo, se antes do término do prazo, seu presidente requerer a prorrogação por menor ou igual prazo e o requerimento for aprovado pelo plenário em sessão plenária ordinária ou extraordinária.”
Procurada pelo Observatório da Imprensa, a Vale nega as acusações da CPI. E acrescenta que “a Vale segue estritamente o que dispõe a legislação federal aplicável à venda a empresas ligadas e é constantemente fiscalizada pela Receita Federal. Esta questão foi apresentada pelo Município de Parauapebas, ao Ministério Público, que concluiu pela inexistência de irregularidades.” Veja as respostas completas em A Palavra da Vale.
Êxodo gradual
Outro tema local prioritário é o projeto S11D da Vale em Canaã dos Carajás. Assim como Parauapebas já foi parte do território de Marabá, Canaã também obteve sua independência de Parauapebas em 1994. Maior empreitada da história da Vale, o novo empreendimento orçado em US$ 16,3 bilhões tem capacidade para produzir 90 milhões de toneladas por ano e utiliza um sistema de esteiras de última geração para transportar o minério até a ferrovia, dispensando o uso de caminhões e respectivos motoristas. Segundo projeções da Vale, o minério de Parauapebas deve se esgotar por volta de 2034, quando o S11D estará operando a plena carga. No pico das obras, o projeto empregava 10 mil trabalhadores, número que será reduzido para 2 600 durante a fase de exploração.
Na imprensa local, o assunto tem merecido a devida atenção apenas do jornalista e engenheiro de mineração André Santos, colaborador do Pebinha de Açúcar. No artigo Vale reafirma: minério de Parauapebas acaba em menos de 20 anos, de 3 de março, Santos analisa o relatório de 2015 da Vale para investidores, focando no esgotamento do minério em Parauapebas. Ele publica seus artigos em sua página no Facebook e mantém um acordo com o Pebinha para republicação do material.
“A notícia, que nem mesmo a própria Vale se atreve a divulgar por aqui, por questões estratégicas e para não causar alvoroço nas comunidades onde atua, soa como uma bomba para Parauapebas,” diz Santos. “Já em Canaã dos Carajás, dono da maior fatia de minério de ferro medida, provada e provável, correspondente à [mina de] Serra Azul, a exaustão é prevista para 2065, desde que o projeto S11D entre em operação ainda esse ano e produza 90 milhões de toneladas por ano.”
Mas o bom trabalho de Santos contrasta com a produção jornalística local. Seu mérito é produzir não apenas uma análise relevante, como também capaz de mostrar ao público o impacto do esgotamento do minério de Parauapebas e o avanço simultâneo das operações da Vale em sua nova terra prometida, Canaã dos Carajás.
Matérias idênticas
No dia 3 de junho, coincidentemente, tanto o Carajás o Jornal quanto o Pebinha de Açúcar publicaram a mesma matéria, com a mesma foto e o mesmo texto – certamente um release produzido pela Vale para promover seu novo projeto. “Máquinas de pátio do S11D são testadas pela primeira Vez”, dizia o título do artigo.
Única fonte ouvida, o engenheiro da Vale Maurício Gasparini diz: “É mais uma importante etapa superada. Estamos com 86% das obras de construção da mina e da usina concluídas e agora daremos continuidade aos testes para operação do projeto.”
Sem mencionar Parauapebas, o texto publicado pelos dois jornais prossegue: “em cenário desafiador pelo qual passa o mercado mundial de minério de ferro, o projeto Ferro Carajás S11D, com mina e usina, em implantação em Canaã dos Carajás, vai favorecer a manutenção da competividade brasileira no mercado de mineração. Seu produto irá complementar a produção de Carajás, oferecendo um minério de alto teor de ferro, com baixo contaminantes e custo baixo.”
Perguntado pelo Observatório sobre a relação entre seu veículo e a Vale, entre outros temas cobertos pelo site, o editor do Pebinha de Açúcar, Bariloche Silva, disse: “O Portal Pebinha de Açúcar está no ar há nove anos em Parauapebas e região estabelecendo como premissa de sua linha editorial a busca por um jornalismo crítico, apartidário e pluralista.”
O Observatório também entrou em contato com a redação de Carajás, o Jornal, que não respondeu as perguntas enviadas.
A propósito, a mineradora, que era um anunciante de peso no passado, sobretudo para promover suas ações de sustentabilidade, não tem comprado espaço publicitário na mídia local.
“Uma linda festa da democracia”
A relação entre parte dos veículos noticiosos e o poder público local sugere a existência de conflitos de interesse. Mas os jornalistas locais minimizam a questão. Um bom exemplo é o de Pablo Oliveira. Ele é ao mesmo tempo assessor comissionado da Câmara Municipal e dono do site Notícias de Parauapebas. “Trabalho com publicidade da prefeitura, mas sempre noticiamos o fato, sendo bom ou não para o governo”, diz.
Situação semelhante vive o chefe da Assessoria de Comunicação da Câmara Municipal, Waldyr Silva, pai de Bariloche Silva, que por sua vez é dono do Pebinha de Açúcar.
Tanto Waldyr quanto Bariloche já receberam o prêmio Mérito Lojista, organizado pela Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) e patrocinado pela prefeitura de Parauapebas e pela Vale. Waldyr foi homenageado com o título de “Jornalista do Ano” em 2009 e seu filho recebeu a estatueta nas últimas três edições pelo Pebinha. A propósito, durante a organização do concurso, o site exibiu um banner que anunciava o prêmio.
Novamente, a relação de Bariloche e Waldyr com o atual prefeito Valmir Mariano (PSD) sugere mais um conflito de interesse. O chefe de Waldyr é ninguém menos do que o presidente da Câmara Municipal, Ivanaldo Braz (PSDB). E Braz é um forte aliado do prefeito Mariano (PSD).
Candidato à reeleição, Mariano tem merecido uma cobertura visivelmente favorável do Pebinha de Açúcar. É o que demonstra a matéria que reporta o lançamento da campanha de sua reeleição em 21 de maio. Naquele dia, o site também exibia um banner da prefeitura com o slogan “260 obras em três anos.”
Já a matéria chamava o evento de “uma linda festa da democracia.” E acrescentava: “Valmir Mariano se mostrou bastante emocionado com a grande participação popular, e disse ‘estamos transformando Parauapebas nos últimos três anos em um verdadeiro canteiro de obras, mas ainda temos muitas batalhas e conquistas pela frente, precisamos continuar com o desenvolvimento.'”
Indagado pelo Observatório sobre o potencial conflito de interesse em sua cobertura da campanha de Valmir Mariano, Bariloche Silva respondeu: “de forma alguma, tanto que se você pesquisar em nossos conteúdos verá denúncias contra a prefeitura, porém, sempre ouvimos os dois lados.”
O Observatório também solicitou uma entrevista ao prefeito Valmir Mariano para que ele falasse de sua campanha, da relação da prefeitura com a imprensa local e da prefeitura com a Vale. Depois de várias tentativas de contato por e-mail e telefone, veio a seguinte resposta: “a Prefeitura de Parauapebas não vai se posicionar sobre as referidas perguntas.”
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Carolina Marins, Cauê Félix e Letícia Fuentes são alunos da disciplina de Ética, da Graduação em Jornalismo na Escola de Comunicações e Arte, da Universidade de São Paulo.