Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Porque não o jornalismo público?

Quando se fala em jornalismo público no Brasil costumamos ter uma forte tendência à desconfiança. A ideia majoritária no senso comum e sobretudo entre os próprios jornalistas parece ser de que o jornalismo feito em instituições públicas é sinônimo de censura e falta de autonomia, de uma mera propaganda oficial, uma comunicação pública para promover a imagem dos governantes. De fato, a influência política é um risco que se corre em iniciativas desta natureza. Mas será que a ameaça à autonomia é um mal exclusivo do jornalismo público? Não deveríamos estar igualmente preocupados com o jornalismo feito nas iniciativas privadas? Por que tememos tanto um e não o outro?

Para pensar estas questões, é interessante antes refletir um pouco sobre a origem do jornalismo e o seu papel na sociedade.

Os primeiros periódicos se desenvolveram no período do mercantilismo europeu, um contexto marcado pela censura dos poderes absolutistas e da Igreja, onde as publicações eram restritas a troca de informações estratégicas entre os mais poderosos. Como aponta Daniel Cornu, na obra Ética e verdade (1999), o interesse público passa a ser alvo dos jornais após a queda destes poderes, quando os estados em formação carecem de instrumentos de mediação entre as decisões políticas e a opinião pública.

Assim, os jornais se colocaram como uma alternativa de comunicação com potencial mais abrangente que os espaços e instrumentos de representação formal, como assembleias e decretos, que por sua vez não garantiam acesso em pé de igualdade à esfera pública. Neste sentido, como aponta Daniel Cornu, este período, de formação da esfera pública, representa para as publicações um primeiro espaço de liberdade.

A liberdade de imprensa e o interesse público passam a ser, a partir daí, os dois principais fundamentos da atividade, que, no entanto, vão coexistir com um terceiro aspecto: a natureza privada das instituições jornalísticas. Por um lado, é este o aspecto que vai garantir, em um primeiro momento, a autonomia das publicações frente aos poderes. Por outro, na medida em que a atividade se desenvolve como negócio, é o mesmo quem vai comprometer que o interesse público seja plenamente atendido.

Fica desenhado assim um conflito ético estrutural na profissão: é uma atividade que visa atender o interesse público, mas tem natureza privada. Conflito típico da esfera pública contemporânea que trata-se na visão de Wilson Gomes de uma “esfera da representação pública dos interesses privados que não ousam assumir tal condição”, como aponta no texto Esfera pública política e comunicação em Mudança estrutural da esfera pública de Jurgen Habermas (2008, p.52).

Na tentativa de conciliar aspectos de caráter tão oposto, assistimos a formação de um jornalismo cínico, como bem caracteriza o professor e pesquisador do objETHOS Francisco Karam.

Quem dá conta de atender ao interesse público?

Quando insistimos em acreditar que o jornalismo privado é ainda um espaço de total liberdade e de legítima defesa do interesse público, ignoramos  que da mesma forma que a Igreja, os governos absolutistas e os governos republicanos, que em diferentes momentos históricos e países assumiram – e ainda assumem – faces ditatoriais, no jornalismo comercial também está colocado, mesmo que de forma implícita, um tipo de controle, que também pode vir a se manifestar em atos de censura, com a omissão de debates caros ao interesse público, de acordo com seus próprios interesses. E o seu interesse primordial será sempre manter a sua condição objetiva, de um negócio que precisa lucrar.

É evidente que nem sempre esse interesse vai entrar em conflito com o interesse público. Se consegue, muitas vezes fazer bom jornalismo, com contribuições relevantes para a democracia. Mas não é incomum que nas redações, sobretudo as de jornais locais, ainda se oriente – a boca pequena, ou nem tanto – que determinadas prefeituras ou políticos não sejam criticados ou denunciados, por manterem relações comerciais com o jornal. E quem está nas redações ou tem amigos por lá sabe disso. Então, sejamos francos. A iniciativa privada não nos poupa dos constrangimentos tão temidos em relação ao jornalismo público. E, se é assim, por que não o jornalismo público?

O conflito pela autonomia é intrínseco à atividade jornalística, será sempre um desafio a ser perseguido, algo a ser reivindicado  – e, evidentemente, nunca será plenamente alcançado, a autonomia completa não é possível, sobretudo em uma atividade de caráter social tão forte como é o jornalismo.

No entanto, é necessário pensar, ainda mais no atual momento que vive a profissão, quais são as estruturas onde há mais espaço para esta busca. Nos dois casos, público e privado, o exercício do jornalismo sem restrições depende de transparência e de dispositivos de fiscalização que assegurem que a atividade cumpre o seu papel de informar prezando pelo interesse publico e pela pluralidade. Enquanto no jornalismo público estes dispositivos são previstos por lei, na mídia brasileira as empresas atuam sem regulamentação, ignorando a legislação vigente em uma série de aspectos e sem se preocupar com contrapartidas ao espaço que ocupam na sociedade.

O desmonte da EBC

As ações que visam o desmonte da EBC (Empresa Brasil de Comunicação) tomadas pelo presidente interino Michel Temer desde que assumiu de forma ilegítima o governo demonstram a fragilidade do jornalismo público no país e reforçam a necessidade que o mesmo seja desvinculado de vez do poder executivo.

Apesar da notável atuação da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e da Frente Em Defesa da EBC e da Comunicação Pública no caso, as saídas públicas para o jornalismo ainda parecem intimidar boa parte da classe. Trata-se de uma bandeira que poucos parecem dispostos a levantar. Democracia saudável e instituições públicas que funcionam, estas sim, caminham sempre juntas. Há de se lutar por ambas.

Referências

CORNU, Daniel. Jornalismo e verdade: para uma ética da informação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

GOMES, Wilson. Esfera pública política e comunicação em Mudança estrutural da esfera pública de Jurgen Habermas. In.: Comunicação e democracia: problemas e perspectivas. São Paulo: Paulus, 2008.

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Mariana Rosa é mestranda no POSJOR e pesquisadora do objETHOS-